Por Claudia Wasserman, historiadora e professora da UFRGS
Ataques à liberdade de imprensa, ao sistema eleitoral e ao equilíbrio dos poderes e disseminação de notícias falsas evidenciam que a democracia brasileira está ameaçada. Vivemos, desde 1985, o maior período democrático de nossa história, 36 anos. O segundo maior período democrático, entre 1946 e 1964, 18 anos, foi igualmente ameaçado por eventos que culminaram no suicídio de Getúlio Vargas e nas tentativas de impedir as posses de Juscelino Kubitschek e de João Goulart. Nos dois períodos, houve quebra da ordem constitucional e assalto ao poder do Estado, mas os contextos nacional e internacional são diferentes.
O mundo da Guerra Fria, polarizado entre capitalismo e socialismo, acirrado pela Revolução Cubana, definia os comunistas como inimigos a serem eliminados e determinava o combate à classe política burguesa que defendia reformas sociais que visavam promover a diminuição da desigualdade social. Nesse caso, as Reformas de Base eram propostas pelo vice-presidente João Goulart e vistas como perigosas no contexto da bipolarização. As Forças Armadas, junto com grupos civis contrários às reformas, preconizavam a implantação de Regimes de Segurança Nacional, através de golpes militares que implantariam ditaduras apoiadas por civis.
Os ataques mais recentes à democracia têm origem em contexto no qual, embora o comunismo tenha enfraquecido, a redemocratização permitiu a reorganização e a ascensão da esquerda ao poder no início do século 21, com a retomada de projetos de reformas sociais propensas a melhorar as condições de vida da população pobre na maioria dos países da América Latina. Neste, como naquele caso, as elites brasileiras não admitem a diminuição de seus lucros para promoção de redistribuição de renda.
As ditaduras não nascem da noite para o dia. A escalada do autoritarismo é um processo que vai desgastando a democracia e abrindo caminho em meio a diversas resistências. Em 1961, nos 13 dias que abalaram a República, a legalidade democrática abalada foi heroicamente defendida no Rio Grande do Sul, sob liderança do governador Leonel Brizola. A partir da renúncia do presidente Jânio Quadros, em uma sexta-feira, 25 de agosto de 1961, os ministros militares, Odílio Denys, Grum Moss e Silvio Heck, emitiram uma nota conjunta contra a posse do vice-presidente evocando supostas ligações de João Goulart com o comunismo internacional. A elite acreditava que Jango, Brizola e os políticos trabalhistas tentavam implantar o socialismo no Brasil.
Foi o prestígio de Leonel Brizola como governador do Rio Grande do Sul que permitiu a mobilização popular em torno da Campanha da Legalidade, convocada por ele em 1961 para defender a posse de Jango na Presidência da República. A defesa da Legalidade e do respeito à Constituição surtiram efeitos momentâneos. Considerando que a mobilização em função do suicídio de Vargas e a movimentação em torno das tratativas para garantir a posse de JK tenham sido os dois primeiros episódios de resistência capazes de adiar a implantação da ditadura no Brasil, supõem-se que a mobilização popular no RS em torno da posse de João Goulart tenha contribuído para, mais uma vez, adiar o golpe que viria em 1964.
A Campanha da Legalidade obteve sucesso ao conclamar o povo, mobilizar a sociedade e adiar o golpe de 1964 uma vez mais, mas foi derrotada em sua meta principal que era de dar posse a João Goulart como presidente da República no regime para o qual ele fora eleito vice-presidente. A Goulart, foi concedido o direito de tomar posse como presidente em um regime no qual seus poderes eram limitados, em que as leis da República foram modificadas em meio à crise para impedir que ele tivesse liberdade para implementar as reformas.
Entre a posse de Jango (setembro de 1961) e a sua deposição (abril de 1964), o exército brasileiro foi sendo depurado dos "elementos" antigolpistas que haviam ficado ao lado da Legalidade em 1961. O movimento social foi se radicalizando e exigindo as Reformas de Base. A desestabilização — econômica e político-social — a qual o governo Goulart foi sendo submetido permitiu que os militares pudessem dar andamento ao plano que se avizinhava desde o fim da Segunda Guerra Mundial.
No contexto atual, de longa estabilidade democrática, assistimos a uma nova escalada do autoritarismo. O golpe de 2016 que culminou no impeachment da presidenta Dilma Rousseff, a prisão de Lula que o impediu de concorrer às eleições de 2018, as recentes ameaças às instituições, aos poderes e à Constituição, a destruição de políticas públicas de saúde, educação, moradia, o fim da regulação de atividades econômicas essenciais e estratégicas e a evangelização do governo são indícios de que, ao contrário de 1961, a democracia já foi deteriorada. Em 1961, se lutava para manter democracia; em 2021, se luta para resgatar o que já foi corrompido.
Talvez a principal lição da Campanha da Legalidade consista em: "Vale a pena resistir".