A flexibilização da compra de vacinas contra covid-19 pela iniciativa privada deverá ser questionada nos tribunais. Setores da oposição aguardam a tramitação da matéria no Congresso para avaliar os eventuais recursos judiciais.
Aprovado pela Câmara nesta quarta-feira (7), o projeto deve chegar ao Senado nos próximos dias. Com 317 votos favoráveis e 120 contrários, os deputados chancelaram a possibilidade de empresas negociarem vacinas com as indústrias farmacêuticas, mesmo que o imunizante não tenha sido aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
O projeto altera uma norma que já estava em vigor no país desde o mês passado, pela qual empresários que adquirissem vacinas eram obrigados a doar todas as doses ao Sistema Único de Saúde (SUS) enquanto a rede pública não concluísse a imunização dos grupos prioritários. Agora, o texto aprovado pelos deputados e que segue para discussão dos senadores permite às empresas retirar a obrigação de espera pela imunização dos grupos prioritários e reduz a doação a 50% da compra.
— Isso não só fura a fila da vacina como vai aumentar o preço, pois autoriza as empresas a negociarem com os laboratórios antes de que as encomendas do governo sejam entregues. Ou seja, não há garantia de que uma empresa vá esperar o SUS receber as doses que já comprou. Vamos torcer para o Senado barrar a proposta. Se isso não ocorrer, podemos recorrer ao Supremo Tribunal Federal — afirma a deputada Fernanda Melchionna (PSOL-RS).
Outra questão polêmica foi a permissão para compra de vacinas que ainda não obtiveram registro na Anvisa. O substitutivo da deputada Celina Leão (PP-DF), relatora da matéria e cujo texto alternativo acabou prevalecendo sobre o projeto de lei original, retira a obrigatoriedade de licença prévia da agência regulatória brasileira. Em vez do aval da Anvisa, o imunizante comprado precisará apenas ter chancela de qualquer autoridade sanitária estrangeira certificada pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Para Celina, o projeto é uma forma de mitigar os danos à economia do país.
— Hoje a lei é cínica. (...) Nós permitimos o particular comprar, mas ela é inexequível – justificou a deputada.
Autor do projeto, Hildo Rocha (MDB-MA) nega que haverá fura-fila:
— A cada um que uma empresa vacinar, retiram-se dois da fila do SUS.
O texto tem apoio do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Na semana passada, ele defendeu a mudança. Segundo Lira, a iniciativa privada pode dar mais agilidade ao processo de vacinação no país.
A medida coloca as empresas em situação vantajosa em relação a Estados e municípios. Diante da escassez de vacinas disponibilizadas pelo Ministério da Saúde, governadores do Nordeste estão montando um consórcio para adquirir 40 milhões de doses da Sputnik V, fabricada na Rússia. Todavia, a conclusão do contrato está condicionada à autorização da Anvisa. Se o texto aprovado pela Câmara passar sem alterações no Senado, os governadores temem perder a preferência na compra para empresas privadas.
— Vamos tentar reverter isso no Supremo. É um fura-fila legalizando o salve-se quem puder, com o poder econômico tirando as vacinas do poder público. Isso quebra o conceito de nação — reage o deputado Henrique Fontana (PT-RS).
Interlocutores do STF no Congresso acenam com um ambiente favorável a eventuais recursos judiciais. Nos bastidores, integrantes da Corte têm conversado com deputados e senadores, manifestando repulsa aos privilégios na ordem de vacinação. Há desconfiança sobre a capacidade das autoridades de fiscalizar a imunização privada e até mesmo ante a possibilidade de o Ministério da Saúde servir de testa-de-ferro das empresas na hora da aquisição, uma vez que vários laboratórios têm restringido as vendas a órgãos governamentais.