"Como não ficarmos indignados diante do uso do nome de Deus e de Sua Santa Palavra, misturados a falas e posturas preconceituosas, que incitam ao ódio, ao invés de pregar o amor, para legitimar práticas que não condizem com o Reino de Deus e sua justiça?”
A pergunta está em um dos trechos mais contundentes da “Carta ao Povo de Deus”, assinada por 152 arcebispos e bispos da Igreja Católica, em julho. Enquanto a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) ainda tentava deixar claro que a manifestação era apenas a expressão de uma parte do clero brasileiro, uma nova carta era divulgada, esta firmada por 1.058 padres.
“A omissão, apatia e rechaço pelos mais pobres”, além “da incapacidade para enfrentar crises” e o “desprezo pela educação, cultura, saúde e diplomacia” eram responsáveis por uma “crise sem precedentes na saúde” e “ um avassalador colapso na economia” graças “à tensão provocada em grande medida pelo presidente da República”, diziam os padres, em apoio a bispos e arcebispos.
Consolidava-se, assim, um movimento de oposição ao governo Jair Bolsonaro no seio da instituição no maior país católico do mundo. Poucas vezes desde a ditadura militar, quando a Igreja assumiu um papel de destaque na luta contra a repressão e na defesa dos direitos humanos, tantos bispos e padres, cujas vozes ficam muitas vezes restritas às homilias, desceram dos altares para reverberar opiniões sobre a política para além de paróquias e dioceses. A resposta de setores conservadores da Igreja, que apoiam o governo, não tardou. As diferenças dentro da instituição espelham a polarização da sociedade brasileira. Os confrontos de pontos de vista, que por vezes beiram a ruptura em instituições como a CNBB, tradicionalmente dividida em alas progressista e conservadora, ocorre em geral por meio de redes sociais, mas, por vezes, transbordam do campo virtual para o real, com padres se dizendo vítimas de ataques pessoais por parte de fiéis e censura de autoridades religiosas.
São divergências que começaram a ganhar força entre o primeiro e o segundo turnos da eleição de 2018.
– Pensamos que tínhamos de nos unir para entender o que estava acontecendo com o Brasil ao eleger Bolsonaro. O nosso receio à época era sobre a necessidade que sentíamos de dizer alguma coisa. Fizemos uma carta, enviamos para Roma, para a CNBB, para as mídias, para dizer que estávamos preocupados com a situação: existia uma aversão a tudo o que fosse de esquerda, era taxado de teologia da libertação, de discurso de comunista de “padres e bispos vermelhos” – relata Rodrigo Schüler de Souza, 40 anos, da diocese de Osório e um dos fundadores do grupo Padres Contra o Fascismo.
São cerca de 160 padres e alguns bispos que se reuniram para se manifestar contra a suposta neutralidade do clero brasileiro na eleição. O movimento mobilizou inclusive religiosos fora do país.
– Na Igreja Católica, se veicula essa ideia de neutralidade política. É uma pseudo neutralidade, uma vez que qualquer tipo de manifestação ou não já indica um lado ou outro. A ideia da neutralidade política é uma ideologia perniciosa. E os padres quiseram denunciar isso – explica o padre Leonardo Lucian Dall Osto, 36 anos, doutorando em Teologia Dogmática na Universidade Gregoriana, em Roma.
No final de 2019, outro grupo de padres surgiu com propósito semelhante. Em encontro de comunidades eclesiais de base (Cebs), em Canoas, sacerdotes discutiram iniciativas para aproximar as dioceses do pensamento do papa Francisco, que propõe uma Igreja próxima aos pobres.
– Surgiu a ideia de montarmos um grupo para refletir sobre essa caminhada de apoio à Igreja ligada ao Papa, ao Vaticano, de voltarmos às origens do que entendemos como a Igreja latino-americana – explica o padre Geraldino Rodrigues Proença, 51 anos, de Arapongas (PR), um dos fundadores do grupo Padres e Bispos da Caminhada.
A nova reunião ocorreria em maio, no Paraná. Mas veio a pandemia, e os encontros passaram a ocorrer pelo WhatsApp. Uma das primeiras ações do grupo veio a público após um episódio envolvendo o pároco da Igreja Matriz Nossa Senhora das Dores, de Artur Nogueira (SP). No dia 2 de julho, durante a missa transmitida pela internet, Edson Adélio Tagliaferro criticou o governo.
– Vocês querem que eu fale aquilo que todo mundo fala, que não deixam ele trabalhar? Não. Bolsonaro não presta. Bolsonaro não vale nada. E quem votou nele devia se confessar, pedir perdão a Deus pelo pecado que cometeu, porque elegeu um bandido – disse.
Padre Edson sofreu ataques nas redes sociais. O bispo de sua região, dom José Palau, pediu desculpas públicas, afirmando que as opiniões do sacerdote não representam a diocese. Revoltados com o que consideravam perseguição ao colega, os Padres da Caminhada, a essa altura com 50 integrantes, manifestaram apoio ao religioso por meio de carta.
Manifestações políticas nas homilias, como a do padre Edson, não são incomuns e provocam, muitas vezes, indignação de fiéis e retaliações internas. Um sacerdote do interior gaúcho que prefere manter o anonimato diz estar proibido de dar aulas sobre a Bíblia em sua comunidade em razão de suas posições políticas, que geraram divergências com o bispo.
– Sou de comunidades eclesiais de base, um padre mais progressista dessa caminhada. Ele (o bispo) é totalmente da “batina” – explica, usando o termo interno entre os padres para se referirem a colegas conservadores, que seguem a tradição.
– Todos estamos levando pedrada. De um jeito ou outro, também já tive a atenção chamada, meu nome foi enviado à nunciatura (espécie de embaixada do Vaticano), recebi ameaças. É um momento complicado e que encontra eco dentro da hierarquia, preocupada em manter as aparências – avalia o padre Leonardo.
Aborto e racismo em pauta
Temas como aborto e racismo também provocam rachas internos. Um texto intitulado “Quando um padre negro não consegue respirar”, de Geraldo Natalino, o Padre Gegê, da Paróquia Santa Bernadete, do Rio de Janeiro, trouxe um desabafo sobre “uma Igreja estruturalmente branca”, traçando relações entre a morte de George Floyd, nos EUA, e perseguições por ser negro e religioso no Brasil. O tema do racismo na hierarquia católica voltou quando os Padres da Caminhada enviaram ao Vaticano outra carta, desta vez assinada por 83 padres dos cleros secular e regular e cinco bispos, na qual afirmavam que seminaristas negros “têm sido caçoados, inferiorizados, ridicularizados”: “Percorremos calados e engasgados o caminho formativo, temerosos de não sermos aceitos para as sagradas ordens”.
Na documento, que começa com um trecho do poema Navio Negreiro, de Castro Alves, eles denunciam o reduzido número de bispos negros no Brasil, que não corresponde à percentagem da população negra do país, e exigem mudanças na nunciatura.
A resposta veio em mensagem assinada pelo próprio papa Francisco. Nela, o pontífice começa referindo-se ao poema, um dos símbolos da literatura brasileira contra a escravidão, publicado pela primeira vez em 1880. “Obrigado por me escreverem e começarem carta com os versos de Castro Alves”, diz o Papa, em espanhol, seu idioma nativo. Na sequência, afirma: “Levo em consideração o que vocês me disseram na carta, os acompanho e estou perto de vocês”. E promete tratar do tema com o monsenhor cardeal Auellet, prefeito da Congregação para os Bispos. “Entendo o que dizem sobre a nunciatura e o modo de eleger os candidatos ao episcopado. Agora, um novo núncio irá aí, também falarei com ele.”
– Francisco tem exigido que os bispos sejam mais do povo, com experiência missionária – define o padre Rodrigo. A posição do atual papa, em contraste as de seus dois antecessores conservadores, Bento XVI e João Paulo II, enfrenta críticas no Vaticano. A Cúria Romana, formada por cardeais que assessoram o pontífice, protagoniza divergências históricas, que, muitas vezes, colocam o líder máximo da Igreja sob pressão – até hoje há dúvida sobre qual sua influência na renúncia de Bento XVI, por exemplo.
– A cúria deveria ser um poder auxiliar, que pudesse ajudar o papa no governo da Igreja e também as dioceses no governo das suas igrejas. O problema é que ela às vezes se torna um poder paralelo ao papa e aos bispos – explica Leonardo.
Na avaliação de alguns teólogos, Francisco iniciou a descentralização da cúria, dando maior autonomia às igrejas locais. Mudanças na instituição milenar costumam gerar fissuras na máquina do Vaticano, que se move com vagar.
No ano passado, um grupo de padres e teólogos escreveu uma carta aberta ao Colégio de Bispos, acusando o papa de heresia – uma das mais graves acusações que podem ser feitas a um clérigo. Publicado no site católico conservador LifeSiteNews, o texto firmado por 19 signatários alega que o conjunto de bispos deve investigar Francisco pelo direito canônico porque o papa teria suavizado posições que na opinião deles vão contra os mandamentos da Igreja. Eles dizem que Francisco não tem se oposto veementemente o bastante ao aborto, dado sinais de abertura do Vaticano a homossexuais e divorciados e tem se aproximado de protestantes e muçulmanos. Parte significativa da carta se concentra em críticas ao documento papal Amoris Laentitia (“a alegria do amor”), em que Francisco fala em tornar a Igreja mais inclusiva. Especialistas chegaram a especular sobre a possibilidade de um novo cisma, após personalidades que já ocuparam importantes cargos na hierarquia católica se manifestarem, como o conservador cardeal alemão Gerhard Müller, que até 2017 presidiu a poderosa Congregação para a Doutrina da Fé, o ex-núncio Carlo Maria Viganò e o cardeal arcebispo emérito de Madri Rouco Varela.
Uma das maiores expressões dessa divisão foi o Sínodo da Amazônia. Na extrema direta da Igreja, cardeais pediram que Francisco renunciasse e conclamaram fiéis a jejuarem para que suas supostas heresias não fossem aprovadas. Já os progressistas, em especial da Igreja alemã, discutiam se o celibato obrigatório era a melhor maneira de um padre viver no século 21. Eles questionaram também o fato de que mulheres não possam ser ordenadas como diaconisas ou padres. O Papa pediu um estudo teológico a respeito.
Em fevereiro, Francisco endossou o papel dos povos indígenas como guardiões da Floresta Amazônica, depois que Bolsonaro encaminhou ao Congresso projeto de lei que propõe que as áreas indígenas sejam abertas à exploração de mineração, petróleo e agricultura: “Às operações econômicas, nacionais ou internacionais, que danificam a Amazônia e não respeitam o direito dos povos nativos... Há que rotulá-las com o nome devido: injustiça e crime”, afirmou o pontífice. O próprio presidente brasileiro respondeu, em evento com o embaixador argentino no Brasil, Felipe Solá:
– O papa Francisco falou ontem que a Amazônia é dele, do mundo, de todo mundo. Por coincidência, estava aqui o embaixador da Argentina, e eu disse: o Papa é argentino, mas Deus é brasileiro.
A polarização dentro da CNBB
A CNBB também enfrenta divisões. A eleição de Bolsonaro, em 2018, impulsionou uma campanha por uma mudança na presidência da entidade, com a escolha de uma coordenação mais alinhada ao governo. O ex-presidente, cardeal Sergio da Rocha, e o secretário-geral, dom Leonardo Steiner, deixaram o poder em 2019 sob críticas de grupos atrelados ao bolsonarismo, para os quais a CNBB é “esquerdista”. Bernardo Küster, youtuber do Paraná, que conta com a simpatia de Bolsonaro, é um dos personagens que vocalizam as críticas à entidade. O escritor Olavo de Carvalho, guru da família Bolsonaro, é outra voz contrária ao papa Francisco. Ele já disse, por exemplo, que “esse homem está do lado de lá” e “ é um inimigo”. O arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer, mantém relações estreitas com o PSDB e com o governador João Doria.
No atual governo, a CNBB emitiu notas contra a reforma da Previdência, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) condenou mudanças no processo de demarcação de terras indígenas, a Pastoral Carcerária demonstrou preocupação com o pacote anticrime do então ministro da Justiça Sergio Moro. Acabou eleita uma linha moderada, com dom Walmor Azevedo, arcebispo de Belo Horizonte, na presidência, tendo o arcebispo de Porto Alegre, dom Jaime Spengler, na primeira vice-presidência. No último dia 24, a CNBB divulgou uma carta na qual se diz indignada com os incêndios na Amazônia e no Pantanal e se solidariza “com todos os voluntários que arriscam a própria vida atuando com poucos recursos no combate ao crime socioambiental que está ocorrendo”. O texto não cita Bolsonaro, mas afirma que “o bom senso é agredido tanto pelo negacionismo explícito e reincidente por parte de nossas lideranças governamentais quanto pela acusação de que povos e grupos seriam os responsáveis por algumas das queimadas”.
A mensagem veio a público dois dias depois de o presidente afirmar, em discurso de abertura da Assembleia Geral da ONU, que a culpa pelos incêndios na Amazônia era “do caboclo e do índio que queimam seus roçados em busca de sua sobrevivência”. Nas redes sociais, dom Walmor também já havia se manifestado sobre a troca no Ministério da Justiça, que chamou de “intervenção política no comando de instituições”: “Trata-se de algo muito grave, que fere ainda mais a credibilidade do governo”. Mas, apesar das críticas, há pontos convergentes entre a CNBB e Bolsonaro, como o discurso contrário ao aborto e as ressalvas a uniões homoafetivas. Para especialistas, na CNBB, há quatro correntes: a tradicionalista, conservadora no método e no conteúdo; a carismática, conservadora no conteúdo, mas moderna no método, por integrar padres cantores, por exemplo; a reformista, com padres ligados a direitos humanos e educação; e a radical, que professa a teologia da libertação.
– A classificação em alas progressista e conservadora não expressa o que é a Igreja. A Igreja é a comunidade do Povo de Deus, que busca no cotidiano viver os valores do Evangelho – pondera dom Jaime, arcebispo de Porto Alegre, que, no entanto, reconhece que a polarização brasileira repercute nas comunidades. – A missão da Igreja é construir espaços de diálogo, favorecendo a construção de pontes, e não muros.
Procurada pela reportagem, a CNBB informou que cartas isoladas representam apenas o pensamento dos signatários e preferiu não se manifestar.
“Deus, pátria e família”
Historicamente, a Igreja no Brasil mantém posições a favor do establishment, desde a colonização até a independência, quando houve uma certa divisão entre clérigos a favor da continuidade do Império e outros contrários. Manifestações divergentes vieram a público também em episódios como a proclamação da República e a abolição da escravatura.
– A Igreja não teve uma posição muito decidida nem a favor da escravatura nem da proclamação da República. Depois, com a República e o Estado Novo, houve certa aproximação. Em 1964, com o golpe militar, saiu uma posição da CNBB, que estava dividida – explica o teólogo Erico Hammes, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Durante o regime militar, emergiram personalidades que se tornaram emblemáticas na defesa dos direitos humanos, como o arcebispo emérito de Olinda e Recife, dom Hélder Câmara, e o de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, que liderou com o rabino Henry Sobel o projeto Brasil: Nunca Mais. Entre 1971 e 1978 presidente da CNBB, o gaúcho dom Aloisio Lorscheider promoveu uma campanha pela reforma agrária, recebendo ameaças de morte.
O fim da ditadura coincide com os últimos anos de Guerra Fria. Em nível internacional, a Igreja também mudava. Joao Paulo II, polonês, oriundo de um regime socialista, era crítico ao comunismo, mas movimentos internos defendiam a Doutrina Social da Igreja. Antes, em Medellín (Colômbia), em 1968, na segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, convocada por Paulo VI, e depois na terceira, em Puebla (México, 1979), já sob João Paulo II, a Igreja fizera a “opção preferencial pelos pobres”, alinhada com os ventos reformistas do Concilio Vaticano II. Durante os anos do PT no Planalto, expoentes da ala progressista da Igreja tiveram forte influência, com participação de Frei Beto como assessor especial da Presidência entre 2001 e 2004, e de Leonardo Boff, principal expoente da teologia da libertação e amigo de Lula.
– Hoje, o conflito não é mais Leste-Oeste ou capitalismo versus comunismo, mas os refugiados e a globalização. Isso foi para dentro da Igreja – enfatiza Hammes.
Recentemente, a CNBB repudiou, em nota, pedidos de dinheiro feitos ao governo federal por uma ala da Igreja Católica que, em troca, veicularia notícias favoráveis a Bolsonaro em canais de rádio e TV. No texto, a entidade demonstrou indignação com a atitude de representantes desses canais e afirmou que a Igreja não atua em troca de favores. A proposta havia sido feita no dia 21 de maio, em reunião pública, por videoconferência transmitida nas redes sociais dos maiores grupos católicos de comunicação. O encontro foi coordenado pelo líder do governo na Câmara, deputado major Vitor Hugo (PSL-GO).
Para o teólogo Hammes, a Igreja se deixou envolver pela polarização e se tornou participante, a favor ou contra o discurso oficial, centrado em posições a partir da tríade “Deus, pátria e família”.
– A gente encontra pessoas dentro da igreja que caem nessa situação e se colocam a favor de Bolsonaro – afirma.
Vozes moderadas, como a do jornalista Silvonei José Protz, chefe da edição em português da Rádio Vaticano e que trabalha com assuntos ligados à Igreja há mais de 30 anos em Roma, vê com naturalidade a existência de diferentes pontos de vista dentro da Igreja:
– Temos de entender que, dentro de uma família, ninguém pensa igual. Agora, imagine dentro de toda a Igreja. Temos de produzir uma pedagogia do encontro. Temos uma fé que é comum. Temos de valorizar a diversidade, e não combatê-la.
Na linha do que afirmou Jesus, segundo o qual “a casa do Pai tem muitas moradas”, o arcebispo de Porto Alegre propõe superar diferenças.
– Trata-se de investir no melhor de nós mesmos na defesa, no cuidado e na promoção da vida. A Igreja possui uma rica Doutrina Social, que precisa ser promovida. Urge, no âmbito da sociedade, superar ideologias tacanhas, ultrapassar a insensatez das provocações e abraçar os autênticos valores republicanos, respeitar os princípios democráticos e deixar-se orientar pela ética cristã – diz dom Jaime Spengler.