Em meio à crescente pressão que os prefeitos vêm sofrendo para a reabertura das atividades econômicas nas cidades gaúchas, a Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs) e o governador Eduardo Leite têm visões opostas sobre a definição de medidas restritivas para os 497 municípios do Rio Grande do Sul.
De um lado, a entidade que representa as prefeituras defende a unificação do decreto para reger as medidas de prevenção e combate à covid-19 em todo o território gaúcho. No argumento da Famurs, isso daria mais fôlego para os gestores locais resistirem às cobranças de comércio, indústria e agronegócio.
De outro, Leite entende que, sob o ponto de vista legal, não é possível implantar restrições únicas a todo Estado. No entendimento do governador, cada região do Estado possui características específicas, e os prefeitos devem levar em conta as peculiaridades de cada município.
O assunto foi discutido no final da manhã desta sexta-feira (27) em videoconferência com Leite, diretores da Famurs e prefeitos das 27 associações de municípios do Estado. No encontro virtual, Famurs fez a proposta de unificação das regras e Leite rejeitou:
— O RS é um território grande, são 497 municípios, de toda a natureza, que tem de cidades de 2 mil habitantes à capital Porto Alegre, com mais de 1,5 milhão. São situações muito diversas. Não cabe a um decreto estadual estabelecer medidas restritivas e proibitivas para além do que é razoável num território como este, com essa diversidade — argumenta Leite.
Com isso, está definido que é o governo do Estado que estabelece as condições mínimas a serem observadas por todos os municípios, como suspensão de aulas e o fechamento de shoppings. O texto publicado na semana passada prevê restrições a diversas outras atividades, com itens que precisam ser observados pelas empresas, desde o comércio até a indústria. Também determina a higienização, restrições a alguns transportes e em tudo aquilo em que há aglomeração de pessoas, estabelecemos proibição para eventos.
Leite diz ter plena confiança de que o decreto está adequado ao que deve ser as condições mínimas a serem observadas nos municípios. As prefeituras não podem adotar medidas menos restritivas e cabe a elas adotar as regras mais rígidas, se assim entenderem necessário. Na avaliação da Famurs, o decreto editado por Leite prevê medidas brandas, deixando as mais severas a critério das prefeituras:
— Em resumo, ele continua jogando no colo dos prefeitos a responsabilidade. 90% das cidades gaúchas vão voltar à normalidade na segunda-feira. O discurso dele é fiquem em casa e mantenham as restrições, mas sentimos que ele cedeu à pressão da indústria e do comércio — rebate o presidente da Famurs, Dudu Freire, defensor de que as medidas sigam sendo tomadas de acordo com o que orientam os técnicos e cientistas.
O principal argumento de Freire é de que a maioria das cidades gaúchas não dispõe de expertise técnica na área da saúde como o Estado e a prefeitura de Porto Alegre, o que facilitaria, para esses, o embasamento de planejamento e das decisões mais severas. Outro agravante, na avaliação de Freire, é de que os prefeitos não sabem quantos contaminados têm em suas cidades devido à falta de testes:
— A partir de agora, a responsabilidade do que acontecer nos municípios é da Secretaria Estadual da Saúde. Leite só proibiu shopping e galerias, mas 90% dos municípios não têm nem um, nem outro. Se cada prefeito terá que definir, te antecipo que segunda-feira estará tudo aberto porque a pressão está muito grande, eles não aguentam. Os prefeitos não ficarão com esta responsabilidade, não temos base legal para manter o que estamos fazendo. Nosso temor é de que o RS vire uma Itália por sucumbir às pressões empresariais.
Leite possui um discurso distinto sobre este ponto. O governador afirma que os prefeitos também precisam arcar com essa responsabilidade em âmbito municipal, já que também foram eleitos e o cargo dá a eles as responsabilidades de tomar providências em relação a seu próprio município:
— Agora, cada prefeito tem que observar diante do quadro que tem, do seu município, se cabe ir além nestas restrições. Isto é algo que precisa ser compreendido pelos prefeitos. A sua autoridade, sua responsabilidade é supletiva ao do governo do Estado, seria uma irresponsabilidade do governador fazer uma restrição igual para todo o Estado para além do que é razoável.
Dudu Freire reclamou ainda que os municípios ainda não receberam testes rápidos, respiradores e Equipamento de Proteção Individual (EPIs):
— Nós não estamos preparados para a propagação do vírus da forma como vai acontecer a partir da semana que vem. Saí decepcionado da reunião. O retrato do RS agora é o mesmo da Itália um mês atrás.
Durante uma live no Facebook no começo da tarde desta sexta-feira, Leite afirmou que a partir de segunda-feira serão distribuídos aos municípios 300 mil luvas, 47 mil máscaras e 16 mil eventuais. O Estado também está comprando mais remessas de luvas, máscaras e óculos de proteção destinadas aos profissionais de saúde.
Leite também falou sobre a pressão por parte dos setores econômicos, mas reforçou que no mundo inteiro a cautela tem ditado a adoção de providências:
— Entendo que haja angústia e ansiedade por parte dos setores econômicos, mas não dá para tomar decisão com base em angústia e ansiedade, mas sim com base na ciência. Não podemos sair fechando tudo, porque todo mundo está fechando. Nem podemos abrir tudo, observando apenas o impacto econômico. Não estamos em uma situação de restrição absoluta, mas vamos não vamos sair relaxando sem ter base em evidências técnicas. Por causa de ansiedade, não podemos relaxar providências, especialmente observando o que aconteceu no mundo.
O que prevê o decreto de Leite, editado em 19/03
1) Transporte interestadual
Proibição de circulação de veículos de transporte coletivo interestadual (isto é, ônibus de um Estado para outro). Ou seja: por 15 dias, não será possível entrar ou sair do RS de ônibus. Quem já comprou passagem deverá ter o valor devolvido pela empresa ou ser convidado a remarcar a viagem. Aqueles que estão em outros Estados e que pretendiam retornar de ônibus terão de permanecer no local ou buscar outra forma de deslocamento
2) Transporte intermunicipal
O transporte coletivo intermunicipal de passageiros (isto é, de um município para outro, dentro do RS) "não poderá exceder à metade da capacidade de passageiros sentados". Ou seja: esses ônibus seguirão circulando no Estado, mas com apenas 50% de sua lotação. As empresas terão de se readequar. Isso vale para transporte público e privado
3) Transporte coletivo rural e urbano
O transporte coletivo de passageiros nas zonas rural e urbana "não pode exceder à capacidade de passageiros sentados". Isso significa o seguinte: os ônibus que circulam dentro dos municípios não poderão mais levar passageiros de pé e sentados, como costuma ocorrer. O número de passageiros será restrito à quantidade de lugares
4) Restrição a eventos e reuniões
Está proibida a realização de eventos e de reuniões de qualquer natureza (de caráter público ou privado) com mais de 30 pessoas. Estão incluídos nessa restrição desde excursões e cursos presenciais até missas e cultos religiosos. A medida serve para evitar aglomerações e, com isso, a disseminação do vírus
5) Limite de compras
Fornecedores e comerciantes devem estabelecer limites para a compra de bens essenciais à saúde, à higiene e à alimentação sempre que necessário, para evitar o esvaziamento dos estoques. O decreto não diz que produtos são esses nem estabelece números, o que ficará a cargo de cada empreendedor. O objetivo é evitar que uma única pessoa compre, por exemplo, 200 tubos de álcool gel de uma vez, sem deixar nada para os outros.
6) Tratamento diferenciado
Estabelecimentos comerciais devem fixar horários ou setores exclusivos para atender clientes de 60 anos ou mais e pessoas que integram grupos de risco (com base em autodeclaração). Isto é, se alguém disser que tem HIV, por exemplo, terá direito a receber esse tratamento diferenciado sem precisar provar isso. A intenção é evitar ao máximo a exposição ao vírus. O restante da população terá de ser solidário
7) Superpoderes à Secretaria da Saúde
O decreto autoriza os órgãos da Secretaria Estadual da Saúde a:
- Requisitar, se necessário para combater a epidemia, bens ou serviços de pessoas ou empresas. Isso envolve, em especial, médicos e outros profissionais da saúde, além de fornecedores de equipamentos de proteção individual (EPIs), de medicamentos, leitos de UTI e produtos de limpeza, entre outros. Caso seja preciso, a secretaria poderá pedir o auxílio das forças policiais para que a determinação seja cumprida
- Importar produtos sujeitos sem registro na Anvisa, desde que registrados por autoridade sanitária estrangeira e que estejam previstos em ato do Ministério da Saúde
- Adquirir bens, serviços e insumos de saúde destinados ao enfrentamento do coronavírus com dispensa de licitação
8) Shoppings fechados
Caberá aos municípios determinar a proibição de atividades e serviços privados não essenciais e o fechamento dos shopping centers e centros comerciais. A regra tem exceções: farmácias, clínicas, supermercados, agências bancárias, restaurantes e locais de alimentação poderão seguir funcionando nesses locais
9) Mudanças em restaurantes
Restaurantes, bares e lanchonetes deverão diminuir o número de mesas, aumentando a separação entre elas, reduzindo o número de pessoas no local e guardando distância mínima recomendada de dois metros entre os consumidores. Outra medida será distribuir senhas para evitar aglomerações. Eles também terão de reforçar a higienização, oferecer álcool gel para clientes e funcionários e dispor de "protetor salivar eficiente nos serviços de buffet" (por exemplo: estruturas de vidro sobre o local onde fica a comida)
10) Escalas e revezamento
Os estabelecimentos comerciais e industriais deverão adotar sistemas de escalas, de revezamento de turnos e alterações de jornadas, para reduzir fluxos, contatos e aglomerações de trabalhadores