Em discurso na véspera de deixar o cargo, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, reforçou nesta segunda-feira (16) a necessidade de o Ministério Público Federal se manter independente e autônomo para exercer suas funções.
Dodge disse que a instituição compreendeu que essas características lhe são fundamentais "há 30 anos", ao sair da ditadura militar e entrar no ambiente democrático.
— É com independência e autonomia que o Ministério Público cumpre a sua missão constitucional, que é cara no sentido de que fora da ordem democrática não há salvação. Sem proteção dos direitos fundamentais não há sociedade justa, e sem justiça não tem democracia — afirmou Dodge.
Preterida por Bolsonaro para exercer um novo mandato, a procuradora-geral deixa o cargo nesta terça-feira (17), após dois anos na função. Ela será substituída inicialmente pelo subprocurador Alcides Martins, que assume o posto interinamente.
A expectativa é de que, em até duas semanas, após aprovação do Senado, seja nomeado o também subprocurador Augusto Aras, escolhido por Bolsonaro para chefiar a PGR.
O discurso da procuradora-geral se deu após o indicado para sucedê-la manifestar opiniões alinhadas com interesses do Palácio do Planalto.
Em conversas reservadas com senadores, em busca de apoio, Aras também admitiu supostos excessos do MPF na condução de investigações contra políticos.
— Essa é a instituição que, nesse viés de integridade, de ética e de sobriedade, precisa estar pronta para defender a democracia e as liberdades públicas, para litigar em favor dos direitos fundamentais e humanos, para postar-se ao lado dos discriminados e dos menos favorecidos, para não ceder a pressões espúrias, para não servir às vozes contrárias —afirmou Dodge nesta segunda.
Dodge ainda citou, por inteiro, discurso do ministro Celso de Mello, decano do Supremo Tribunal Federal, quando ela fez sua última participação como procuradora-geral no plenário da Corte.
— O Ministério Público não serve a governos, não serve a pessoas, não serve a grupos ideológicos. O Ministério Público não se curva à onipotência do poder, não importa a elevadíssima posição que autoridades possam ostentar na hierarquia da República — disse Mello na última quinta-feira (12).
— Essas palavras do decano do Supremo caem no terreno fértil dessa escola — comentou Dodge.
Ela participou nesta segunda em Brasília da inauguração da Escola Superior do Ministério Público da União, que treina os procuradores e servidores da instituição.
O vice-procurador-geral da República, Luciano Mariz Maia, cujo mandato também está se encerrando, disse que o próximo procurador-geral poderá rever medidas de Dodge.
Ele citou as ações por descumprimento de preceitos fundamentais (ADPFs), ajuizadas perante o Supremo. Afirmou que, embora a procuradora-geral tenha apresentado petições iniciais conforme seu entendimento e o de sua equipe, o sucessor poderá opinar de forma diferente, por meio de pareceres, ao longo da tramitação.
Dodge enviou à corte ao menos 65 ADPFs durante seu mandato.
— As escolhas que ela (Dodge) adota, ela apresenta a outros órgãos de controle e o faz às vésperas de passar o mandato de outra pessoa, que terá legitimidade de rever tudo isso. É sempre legítimo — declarou Maia.
O vice de Dodge saiu em defesa da procuradora-geral em relação a arquivamentos.
— No exercício do mandato de procurador-geral, você tem que ter coragem para denunciar quando há provas e coragem para arquivar quando não tem. Você não tem o compromisso com a acusação, você tem compromisso com a verdade e com a justiça — afirmou Mariz Maia.
— Esse é o exercício do tamanho da coragem da Raquel Dodge. Se tem provas, denuncia. Senão, arquiva — prosseguiu, acrescentando que suas declarações foram em tese, e não em relação a casos concretos.
Na reta final de seu mandato, Dodge enviou para homologação do STF a delação premiada do ex-presidente da OAS, Léo Pinheiro, alvo da Lava-Jato.
Ela pediu o arquivamento de trechos nos quais ele citava possíveis irregularidades cometidas por um irmão do presidente do Supremo, Dias Toffoli, pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Humberto Martins e pelo presidente do Tribunal de Contas da União, José Múcio Monteiro.
Dodge argumentou que as provas eram insuficientes e não justificavam a abertura de inquéritos.
A medida levou a um pedido de demissão coletiva do grupo de procuradores responsável pela Lava-Jato na PGR. O ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato no STF, atendeu ao pedido de Dodge, segundo informou nesta segunda o jornal O Globo.
— Os arquivamentos são sempre condicionados a ser mantida a situação vigente. Se surgirem novas provas, é possível mudar — ponderou o vice-procurador-geral.