Quais irregularidades teriam sido cometidas pela força-tarefa da Lava-Jato e por Sergio Moro?
Os diálogos tornados públicos podem ser interpretados como um desvio a leis e diretrizes previstas no ordenamento jurídico brasileiro.
1) Código de Ética da Magistratura Nacional
Aprovado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2008, o documento determina os princípios que devem nortear o trabalho do Judiciário no país. Em trecho sobre imparcialidade, no 8º artigo do 3º capítulo, o código diz que o magistrado tem de manter "distância equivalente" dos envolvido durante todo o processo e se preservar de comportamentos que possam soar como favoritismo. Mais adiante, o 9º artigo indica que o magistrado precisa tratar todas as partes envolvidas no processo da mesma maneira.
Uma das passagens que mostraria essa violação ocorreu em 21 de fevereiro de 2016, quando Moro sugeriu ao Ministério Público Federal (MPF) a mudança da ordem de duas operações. "Olá Diante dos últimos. desdobramentos talvez fosse o caso de inverter a ordem da duas planejadas", escreveu o ex-juiz. Dez dias depois, questionou ao procurador Deltan Dallagnol se "não era muito tempo sem operação?". Em outro trecho, Moro repassou a Dallagnol uma pista para que o MPF encaminhasse uma apuração. "Entao. Seguinte. Fonte me informou que a pessoa do contato estaria incomodado por ter sido a ela solicitada a lavratura de minutas de escrituras para transferências de propriedade de um dos filhos do ex Presidente. Aparentemente a pessoa estaria disposta a prestar a informação. Estou entao repassando. A fonte é seria", escreveu o ex-juiz ao procurador.
2) Código de Ética e de Conduta do Ministério Público
Já o Código de Ética e de Conduta do Ministério Público estabelece os princípios que devem ser adotados pelos servidores da instituição. O 1º artigo do 4º capítulo, que aborda as condutas de trabalho de promotores e procuradores, estabelece como compromissos éticos "atender demandas de modo imparcial" e proíbe "qualquer atitude que favoreça indevidamente alguma parte." Já o artigo 3º estabelece que o trabalho tem de ser realizado de maneira imparcial, "não permitindo que convicções de ordem político-partidária, religiosa ou ideológica afetem sua isenção."
Em uma das partes, Dallagnol responde a uma mensagem de uma colega que disse que "andava muito preocupada com uma possível volta do PT e que vinha rezando muito". "Reza sim, precisamos como país", escreveu o procurador. Em outros momentos, procuradores demonstraram preocupação com a possibilidade de Lula dar uma entrevista a Folha de S.Paulo. "Que piada!!! Revoltante!!! Lá vai o cara fazer palanque na cadeia. Um verdadeiro circo", opinou a procuradora Laura Tessler. "Mafiosos!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!", acrescentou a sua colega Isabel Groba.
3) Código de Processo Penal
O Código de Processo Penal, que determina as normas dos processos criminais no país, diz, no artigo 254, que o juiz deve se declarar suspeito — e, se não o fizer, pode ser recusado por alguma das partes _ "se for amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer deles" e também "se tiver aconselhado qualquer das partes".
4) Código de Processo Civil
O Código de Processo Civil, que determina as normas de processos civis no país e, subsidiariamente, aplica-se aos processos penais, indica, no artigo 145, que há suspeição do juiz quando ele der conselhos a alguma das partes.
Os diálogos têm valor legal como prova contra Moro e os membros da força-tarefa da Lava-Jato?
Conforme o delegado da Polícia Civil Emerson Wendt, especialista em crimes cibernéticos, o 12º artigo da Constituição estabelece a inviolabilidade da correspondência e das comunicações telefônicas. E o 157º artigo do Código de Processo Penal proíbe a utilização de provas admitidas e derivadas por meio ilícito, devendo ser desentranhadas do processo.
— Qualquer prova obtida mediante interceptação ilegal de conversas (telefônicas ou ambientais) não pode ser levada em conta no processo judicial. Isso não impede que sejam usadas em questionamentos éticos dos envolvidos — pondera Wendt.
O próprio Moro teve uma sequência de interceptações telefônicas autorizada por ele invalidada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Teori Zavascki — morto em 2017 —, porque o prazo para os grampos havia terminado. À época, as interceptações envolviam a então presidente Dilma Rousseff e Lula.
Quais os possíveis impactos legais em processos já julgados? Há risco de anulação?
De acordo com especialistas ouvidos por GaúchaZH, nem toda a Lava-Jato pode ser questionada pelos conteúdos divulgados até o momento. Para eventual anulação, os processos têm de ser analisados um a um. No caso de Lula — o mais evidente até o momento —, o processo poderia ser anulado se provado que o ex-juiz o condenou, mas também contribuiu para a produção de provas na acusação chefiada por Dallagnol.
Doutor em Direito Penal, André Luís Callegari esclarece que o juiz precisa se manter distante das provas e das partes envolvidas no processo que julga. Caso contrário, está desrespeitando a Constituição:
— A Constituição prevê ampla defesa e contraditório, que deve ter paridade entre defesa e acusação. Se a defesa está subtraída de seu poder de contrapor porque o juiz está em acordo com o MP, há uma ilegalidade.
Para o procurador da República Celso Tres, se houver o entendimento de que Moro atuou como investigador, o STF pode entender o processo como inconstitucional.
— O juiz não pode investigar porque perde a sua imparcialidade. Se passa a combinar com uma das partes como o processo irá andar, já prevendo um determinado fim, é caso de se anular o processo — afirma Tres.
Segundo Tres, há precedentes de o STF entender como inconstitucional os processos em que o juiz tem poder de investigação. De acordo com ele, uma prova, mesmo que obtida de maneira ilegal, pode ser utilizada para absolver o réu em um processo. Porém, não pode ser usada pela Justiça para uma condenação:
— Seria a maneira de uma pessoa provar que foi vítima de um processo parcial e demonstrar a sua inocência.
Há sinais de que as sugestões e orientações de Sergio Moro podem ter influenciado os procuradores da Lava-Jato?
Não é possível saber. Em ao menos duas ocasiões, de acordo com as mensagens tornadas públicas, Moro encaminhou sugestões ou orientações a Dallagnol. Porém, não há como atestar que as suas intervenções influenciaram nas decisões da operação.
Em uma das mensagens, por exemplo, Moro indica informalmente para Dallagnol uma fonte sobre o caso do triplex atribuído a Lula. "Então. Seguinte. Fonte me informou que a pessoa do contato estaria incomodada por ter sido ela solicitada a lavratura de minutas de escrituras para transferências de propriedade de um dos filhos do ex-presidente. Aparentemente a pessoa estaria disposta a prestar a informação. Estou então repassando. A fonte é séria", disse Moro. "Obrigado!! Faremos contato", respondeu Dallagnol. Mais tarde, o procurador afirmou que a pessoa não quis falar, mas que estava "pensando em fazer uma intimação oficial até, com base em notícia apócrifa".
Em outra passagem, o ex-juiz sugeriu que a força-tarefa invertesse a ordem de duas operações — mas, nos diálogos, não fica claro quais são. Nesse caso, entretanto, o procurador argumentou que haveria "problemas logísticos para mudar as fases. Pelas mensagens divulgadas, não é possível afirmar que houve, de fato, alguma mudança.
Moro e Dallagnol podem responder a um processo disciplinar e criminal com base nos diálogos?
Sim. O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) instaurou na tarde desta segunda-feira (10) um processo administrativo disciplinar contra Deltan Dallagnol e os demais procuradores da República citados na série de reportagens do The Intercept Brasil. "Sem adiantar qualquer juízo de mérito, observa-se que o contexto indicado assevera eventual desvio na conduta de Membros do Ministério Público Federal, o que, em tese, pode caracterizar falta funcional", escreveu o corregedor Orlando Rochadel ao instaurar o processo.
Já os advogados do grupo Prerrogativas anunciaram um pedido à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para que a Procuradoria-Geral da República (PGR) desmonte a Lava-Jato. O grupo também quer que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) cancele a aposentadoria de Moro e o demita, fazendo com que o ex-juiz perdesse o direito aos vencimentos da magistratura.
E, no Congresso, especula-se como provável uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre o caso. Os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, reuniram-se na manhã de segunda-feira (10) e discutiram o episódio.
De que forma o The Intercept pode ter obtido essas conversas?
Segundo o editor-executivo do The Intercept, Leandro Demori, o site obteve cópia das conversas de uma fonte anônima, que procurou o site de investigação. O material foi copiado e distribuído em várias parte do mundo, por segurança. O conteúdo, segundo Demori, é maior do que o liberado por Edward Snowden a respeito da espionagem praticada por serviços de inteligência norte-americanos.
Na possibilidade de ter sido fruto da ação de hackers, é crime? Quais as implicações legais na divulgação?
A punição está prevista no artigo 10 da Lei 9.296/96, que regulamenta a interceptação telefônica.
— Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei. Pena: reclusão, de dois a quatro anos, e multa — diz Emerson Wendt, delegado especialista em crimes cibernéticos.
O artigo 154 do Código Penal também estabelece punição para quem "revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem". A pena prevista é de detenção de três meses a um ano ou multa.
No caso do The Intercept, Wendt diz que é preciso analisar como foi recebido o material e que tipo de envolvimento há do site com a fonte.