Por Fernando Horta
Professor, historiador, doutor em Relações Internacionais pela UnB
Presidente eleito do país, Jair Bolsonaro ficou conhecido mundialmente por suas declarações histriônicas e criminosas, não raras vezes acompanhadas de posturas e gestos incompatíveis com o exercício do mandato legislativo que tinha até 2018. Agrediu fisicamente colegas parlamentares, e verbalmente, não apenas parlamentares, mas também grupos étnicos e movimentos sociais. Da pregação contra a "corrupção", a "pedofilia" e o "comunismo", sua retórica evoluiu para ataques a homossexuais, líderes de movimentos sociais, artistas e pessoas em situação social extremada, que fossem usuários do sistema de proteção social que o Brasil construiu ao longo das últimas décadas. A linha ascendente de suas ofensas e ameaças atingiu o (até então) ápice ameaçando jornalistas, veículos de comunicação, professores e até instituições como o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o Supremo Tribunal Federal (STF) e a própria Democracia.
Em fevereiro de 2017, há pouco menos de dois anos, portanto, Bolsonaro concorria à presidência da Câmara Federal, obtendo apenas quatro votos dos 513 possíveis. Era evidente que o Brasil tinha problemas demais para se preocupar com uma figura apagada e que entrava no campo do folclore do legislativo. Com 28 anos de mandato e apenas dois projetos aprovados, Bolsonaro sequer foi aceito pelo partido no qual passou mais de 11 anos (o PP) para concorrer à Presidência. Por todos os lados e ângulos, ninguém acreditava que essa figura viesse a ter capacidade de concorrer a algo mais expressivo. A violência do discurso e o desrespeito institucional que Bolsonaro apresenta cresceram à sombra das nossas instituições. E estas acreditavam que não havia nada a temer.
A contundência e agressividade da retórica de Bolsonaro fizeram a campanha presidencial de 2018. As mentiras contadas, os ataques aos adversários baseados em falsas acusações e as ameaças a tudo e a todos guardam correlação direta com o aumento da votação dele, chegando a sua eleição para presidente da República. Bolsonaro parece acreditar que, quanto mais agride e ameaça, mais respaldo e legitimidade obtém, e não faz questão (e talvez nem tenha competência para) em moderar seu discurso.
Seria apenas mais um mero bufão, não fosse uma perigosa sinergia entre Bolsonaro e seus seguidores. Quanto mais ele sente seu poder aumentar por meio da truculência e das ameaças, mais seus apoiadores ficam maravilhados e dispostos a continuar jogando lenha nessa fogueira.
Essa espiral de desrespeito, agressividade e invocação à ação física tem se mantido constante nos últimos dois anos, a ponto de seu filho, um dos apoiadores mais próximos, sentir-se em condições de fechar o STF "com um cabo e um soldado". O desprezo pelas leis e pelas instituições – entendidas por ele como "corruptas" – não é novo, mas sua percepção sobre fraqueza real delas é.
No dia seguinte, ministros do STF vieram a público acusar o golpe. Suplicavam pelo entendimento de que o STF "é órgão essencial à democracia". Não fizeram mais do que mostrar que a percepção de Bolsonaro e seus apoiadores está correta: a democracia brasileira está por um fio.
Essa espiral narrativa sinérgica entre um líder e seus apoiadores, amparados por ações e grupos armados que desacreditam abertamente a democracia, as instituições e a política, não é nova. Também não é novo o ataque a opositores usando ideias mal formuladas como "corrupção" ou "comunismo" e abominações como "pedofilia". Tudo isso envolto em um discurso de ode à "pátria", ao "Brasil" e a "Deus", é conhecido pelo nome de "fascismo".
O século 20, após a morte de mais de 70 milhões de pessoas, havia engaiolado este mal dentro da ideia-força dos "Direitos Humanos". Os direitos de expressar, de acreditar, de manifestar, de pensar, de escrever ou de simplesmente existir e ser diferente pareciam fortes o suficiente para conter a "banalização do mal", nas palavras de Hannah Arendt. Não é, pois, sem um sentido histórico que Bolsonaro, há anos, faça troça da maior conquista do século 20, chamando-a de "Direito dos Manos". Choca, contudo, ver magistrados e procuradores dizendo e defendendo o mesmo. Nossas instituições estão no chão, contaminadas por uma ideia da qual elas deveriam nos proteger: a desumanização do outro.
Bolsonaro está a ponto de mandar a democracia brasileira para a "ponta da praia"*, na expressão que ele mesmo usou em discurso pouco antes do pleito. O ódio venceu, e receio que não exista ninguém que possa contê-lo mais. Meu maior medo, contudo, é que o presidente (infelizmente) eleito se aperceba disso.
É preciso lembrar.
* "Ponta da praia" era a gíria que os militares de 1964 e seus apoiadores usavam para designar o local onde eram mortos e torturados opositores ao regime. Era uma referência à base militar da Marinha em Pedra Guaratiba, no Rio de Janeiro.