Em meio a críticas aos altos salários do Judiciário, o Supremo Tribunal Federal (STF) se prepara para discutir, na próxima quinta-feira (22), a validade do benefício que levou a magistratura brasileira ao centro de uma polêmica. Previsto em lei desde 1979 para indenizar juízes e desembargadores sem residência oficial, o auxílio-moradia passou a compor os contracheques de 70% dos magistrados no país, inclusive daqueles que têm casa própria na cidade na qual trabalham.
Por ser classificada como verba indenizatória (destinada a ressarcir despesas em serviço), a ajuda de custo de R$ 4.377,73 permite contracheques superiores ao teto constitucional do funcionalismo (R$ 33.763) e é livre de Imposto de Renda (IR). Quem ganha não precisa comprovar gastos, pode usar o dinheiro como se fosse parte do salário.
Hoje, sem contar com essa verba, o subsídio de um juiz gaúcho em início de carreira é de R$ 22.213,44, podendo chegar a R$ 27.424,01. Desembargadores recebem R$ 30.471,11 (veja abaixo).
Até 2014, a concessão do recurso era limitada e não seguia padrão. Embora a vantagem estivesse expressa desde 1979 na Lei Orgânica da Magistratura (Loman), o pagamento não havia sido regulamentado.
O cenário mudou a partir de 2014, por conta de uma liminar (decisão provisória) concedida pelo ministro do STF Luiz Fux, assegurando a um grupo de juízes federais direito ao adicional. A prerrogativa foi estendida a toda a magistratura do país e, por isonomia, aos membros do Ministério Público (MP) e dos tribunais de Contas. Na sequência, Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e Conselho Nacional do MP regulamentaram a medida.
Os repasses, então, passaram a ser padronizados e a contemplar um número crescente de beneficiados. A situação acabou motivando ações judiciais contra os pagamentos, cujo impacto financeiro geral era desconhecido até o fim do ano passado. Assim que o CNJ começou a divulgar os salários da magistratura em planilhas detalhadas, foi possível somar os valores. Conforme apontou o jornal O Estado de S. Paulo, o montante chegou a R$ 76 milhões no mês de dezembro, em 59 tribunais. O tema voltou a estampar manchetes e a provocar controvérsia.
Sob pressão, Fux liberou o caso para análise definitiva do plenário e, em fevereiro, a presidente da Corte, ministra Cármen Lúcia, marcou o julgamento para quinta-feira. O anúncio causou furor no meio jurídico, especialmente entre juízes federais, que serão os primeiros atingidos se a liminar cair. Em protesto, a categoria paralisou as atividades na última quinta-feira, com manifestações em diversas cidades, exigindo que o STF amplie o foco do debate para todo o serviço público – a verba também é paga no Executivo e no Legislativo, com valores e regras diferentes.
— Se é para discutir, vamos discutir de forma ampla, sem deixar ninguém de fora. O que está parecendo é que a cabeça dos juízes federais está sendo oferecida de bandeja — reclama o presidente da Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul (Ajufergs), Gerson Godinho da Costa.
Os defensores do auxílio afirmam que há fundamentação legal para mantê-lo, já que a Loman prevê, expressamente, “ajuda de custo, para moradia, nas localidades em que não houver residência oficial à disposição do magistrado”. A lei não faz restrição a profissionais com imóveis registrados em seus nomes.
— Sabemos que será difícil o STF escapar do caldo de pressão que se formou. Não nos furtamos de dizer que a matéria é controvertida. O que não aceitamos é que se iguale quem recebe essa verba, prevista em lei, a pessoas que praticam ilícitos. Essa é a razão pela qual dizer que o auxílio-moradia encerra imoralidade é um equívoco — diz o vice-presidente administrativo da Associação dos Juízes do RS (Ajuris), Orlando Faccini Neto.
Embora poucos profissionais tenham decidido abrir mão da vantagem, a maioria por considerá-la imoral, muitos dos que defendem a legalidade da verba afirmam que há uma campanha difamatória contra o Judiciário. A tentativa de desgastar a imagem dos julgadores seria uma reação à Operação Lava-Jato.
— Quanto mais ricos e poderosos vão para a cadeia, tanto maior é a pressão econômica contra os juízes. Nunca houve combate à corrupção tão eficaz como existe hoje, e a reação é extremamente consistente. Não digo que há conspiração em curso, mas um ambiente de revanchismo evidente, partindo dos políticos — sustenta Túlio Martins, vice-presidente do Tribunal de Justiça do Estado.
"Há uma clara tentativa de nos atingir e de desviar o foco”
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“Auxílio-moradia mina a credibilidade da Justiça”
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Outro argumento usado em favor da permanência do auxílio é de ordem financeira. Presidente da Ajuris, Vera Lúcia Deboni lembra que o último reajuste nos subsídios foi aprovado em dezembro de 2014. Segundo ela, as perdas acumuladas chegam a 40% e não há perspectivas de reposição em 2018. Vera discorda de que a verba indenizatória seja uma compensação, mas muitos magistrados admitem que, a partir da liminar de Fux, a ajuda de custo passou a exercer essa função.
— Na prática, virou complemento salarial, sim, mas não tem nada de ilegal, tanto que o valor está nos portais de transparência para quem quiser ver. É um direito. O erro foi, lá na origem, terem dado esse nome. Isso constrange. De certa forma, acabou virando um problema para o Judiciário. É bom que o STF bote um ponto final nisso, seja qual for a decisão — avalia o presidente do Tribunal de Justiça Militar do Rio Grande do Sul, juiz-coronel Paulo Roberto Mendes.
Críticos da vantagem entendem que o pagamento virou “aberração” quando perdeu o caráter extraordinário e avaliam que, na prática, o auxílio de fato se tornou um aditivo salarial. Só que, nesse caso, sustentam que o valor deveria obrigatoriamente ter desconto de IR, inclusive de forma retroativa.
— Isso deveria valer não apenas para o auxílio-moradia, mas para todos os penduricalhos. Do jeito que ficou, é o melhor dos mundos para quem recebe. É verdade que o subsídio (salário) está congelado, mas não se pode esquecer desse conjunto de verbas que foi sendo incorporado — destaca o economista Gil Castello Branco, secretário-geral da ONG Contas Abertas.
A entidade estima que, desde 2014, a indenização para moradia custou cerca de R$ 5,4 bilhões aos cofres públicos, sem contar outros adicionais, que, somados, acabam contribuindo para compor superssalários.
— A partir do momento em que foram divulgadas as remunerações, ficou caracterizado que os maiores vencimentos médios do poder público estão no Judiciário, inclusive excedendo o teto constitucional. Em muitos casos, o teto virou piso. É preciso que se faça avaliação rigorosa, levando em conta tudo isso — defende Castello Branco.