Doutoranda em sociologia política e professora assistente na Sciences Po Paris, na França, Anaís Medeiros Passos tem se debruçado nos últimos anos sobre as causas e consequências do emprego das Forças Armadas na segurança pública. Em sua mais recente pesquisa, dedica-se à comparação entre operações militares no Rio de Janeiro e em Tijuana, no México.
Entre 2016 e 2017, durante nove meses, entrevistou mais de cem pessoas — entre militares, policiais, moradores e políticos — para se aprofundar sobre o tema. Um dos resultados aponta a diminuição da criminalidade, mas de maneira efêmera. Segundo a pesquisadora, a longo e médio prazo, a violência tende a aumentar após as intervenções.
Por isso, Anaís analisa com receio a mais recente medida adotada no Rio:
— Infelizmente, não vejo como possa gerar uma diminuição da violência criminal.
Confira, abaixo, a entrevista concedida à GaúchaZH.
A sua pesquisa identificou narrativas semelhantes para justificar a intervenção das Forças Armadas no combate à criminalidade no Rio de Janeiro e em Tijuana. Que discursos foram esses?
O tráfico de drogas possui uma estrutura diferente no Rio e em Tijuana. Enquanto o Rio é um ponto de distribuição e consumo de cocaína e maconha, em Tijuana o problema está no tráfico internacional em grande escala (está ao lado da Califórnia e opera como rota para a Ásia), incluindo cristal (metanfetamina). Em Tijuana, há organizações ilegais hierárquicas baseadas em laços familiares _ o que restou dos Arellano Félix, los Chapos, los Zetas... No Rio, existem gangues que disputam o controle pela distribuição e venda de drogas, com baixo nível organizacional. Porém, os tomadores de decisão, nos dois países, justificam a operação militar de modo semelhante. A nível discursivo, a operação militar é concebida como uma "reação" a ataques do "crime organizado" e a um aumento "não-tolerável" de violência. O Estado, por consequência, estaria convocado a reagir militarmente ao ataque, dentro dessa linha de pensamento.
Na sua avaliação, essas narrativas se aplicam à atual intervenção federal no Rio de Janeiro?
Diversas pesquisas indicam que a violência urbana se torna um problema público quando afeta a percepção da cidadania, que pode, ou não, corresponder a um aumento concreto dos índices delitivos. A intervenção federal no Rio acontece depois de uma série de assaltos em zona nobre da cidade, durante o Carnaval, que ofende valores caros à população carioca e que cria uma forte percepção de insegurança nas classes médias e altas.
Na prática, as ações militares conseguiram reduzir a criminalidade ou apresentaram somente um resultado efêmero?
Nos Complexos do Alemão e Penha, na Zona Norte, houve efetivamente uma redução de tiroteios e da presença ostensiva de fuzis por traficantes durante a presença das Forças Armadas. Isso foi acompanhado pela diminuição da taxa de homicídios e crimes patrimoniais nos meses posteriores à ocupação militar. Importante notar que essa operação carregava o efeito surpresa, que colocou as tropas militares em uma posição de vantagem. Desde a Operação Rio, em novembro 1994, não ocorria ação semelhante. Além disso, a taxa de homicídios já vinha em tendência de diminuição desde 2009, coincidindo com a instalação das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora).
Porém, à medida que essa ação se naturaliza e se estende temporalmente, é mais provável que grupos criminais sejam menos tolerantes à presença militar e reajam, resultando em maior derramamento de sangue. Uma consequência não esperada desse tipo de operação militar é a fragmentação do crime e a migração para outras áreas. Foi o que aconteceu em Tijuana. Após a prisão de "cabeças" do tráfico de drogas, a disputa entre células do crime organizado levou a um aumento de sequestro e extorsão na cidade, vitimizando principalmente a classe média e empresários.
O seu trabalho também mostra que, após o recuo das Forças Armadas, a violência aumentou. Por quê?
Nos Complexos do Alemão e da Penha, a operação GLO (Garantia da Lei da Ordem) teve um efeito de dissuasão limitado temporalmente e que tende a diminuir com a saída das tropas militares e a substituição pela Polícia Militar. A polícia não tem o mesmo efetivo que as Forças Armadas, que empregou cerca de 2,7 mil homens. Além disso, existe uma relação de extorsão e violência entre moradores de favelas e policiais, que data dos anos 1980. Romper com essa mútua desconfiança é difícil, o que dificulta o policiamento na área. Infelizmente, as sete UPPs instaladas nos complexos do Alemão e da Penha significaram a introdução de mais um ator armado no território.
Estamos "tapando o buraco com uma peneira", visto que o custo dessas operações é altíssimo.
ANAÍS MEDEIROS PASSOS
Doutoranda em sociologia política e professora
Quais ações poderiam provocar um resultado a longo prazo?
Inicialmente, o projeto das UPPs foi concebido como uma polícia comunitária, com o objetivo de desarmar o tráfico de drogas e estabelecer um vínculo de confiança e respeito mútuo entre moradores de favelas e polícia. Infelizmente, essa política foi utilizada por Sérgio Cabral (PMDB) para promover o seu governo. Como consequência, UPPs foram instaladas em locais insalubres como contêineres, que colocam o policial em situação de alto risco. Soluções de longo prazo devem valorizar os policiais civil e militar, melhorar suas condições de trabalho e investir na investigação de crimes — já que mais de 80% seguem sem solução. Além disso, é fundamental que o policial seja visto como um aliado na preservação de direitos em áreas com presença de tráfico de drogas.
Na sua opinião, há chances de eficácia na atual intervenção no Rio de Janeiro?
É muito difícil fazer projeções. A presença ostensiva de tropas militares pode gerar uma sensação de segurança para certos setores da sociedade. Além disso, é possível a diminuição a curto prazo de crimes patrimoniais e homicídios. Entretanto, não é claro o vínculo dessas operações com a diminuição de crimes delitivos a médio e longo prazo. Ou seja, estamos "tapando o buraco com uma peneira", visto que o custo dessas operações é altíssimo. Por exemplo, a operação no Complexo da Maré custou R$ 1 milhão por dia aos cofres públicos.
O governo admite que a medida abre precedentes para ações similares em outras regiões do país. Há riscos nessa ampliação?
O principal risco está em naturalizar o emprego das Forças Armadas para uma missão que não é a principal: a segurança pública. Um país com a dimensão do Brasil necessita do setor de defesa para a projeção do poder nacional. Esse tipo de ação também expõe o militar à corrupção nos mais diferentes níveis hierárquicos. Inclusive, na operação da Maré, houve o boato de que certos sargentos facilitavam a realização de baile funk por meio de propina paga pelos traficantes. No México, onde esse tipo de missão é recorrente, o "czar anti-drogas", general Rebollo (José de Jesús Gutiérrez Rebollo) foi preso após ser comprovada sua relação com o traficante Amado Carrillo, "el señor de los Cielos". Em Tijuana, atualmente quem se encarrega do combate ao tráfico é a Marinha, porque diversos membros do Exército foram acusados em 2011 de facilitar o tráfico de drogas para San Diego. Ou seja, nenhuma instituição está imune da corrupção.
Nenhuma instituição está imune da corrupção
ANAÍS MEDEIROS PASSOS
Doutoranda em sociologia política e professora
A intervenção representa riscos para os moradores de comunidades e para os próprios militares?
Para os moradores de favelas, os riscos são grandes. Primeiro, a operação militar "no meio do povo" é arriscada porque é difícil distinguir o traficante da população. Portanto, o risco de fatalidade é grande. Para prevenir, moradores dessas regiões realizam uma auto-censura e restringem a sua circulação no território. Ao mesmo tempo, estão numa situação delicada porque a aproximação com as tropas militares pode colocá-los em risco de vida quando as mesmas saírem do território — o risco de ser visto como "X-9" (delator). Além disso, a presença cotidiana de blindados gera um desgaste psíquico grande e pode motivar confrontação com os militares. As operações no Alemão, na Penha e na Maré foram prorrogadas várias vezes, a pedido do governador. Ou seja, duraram mais do que inicialmente se acordou porque é do interesse do governo repassar a responsabilidade de provisão da segurança pública para a federação. Ao mesmo tempo, o militar não pode agir conforme foi treinado, uma vez que as regras de uso da força são bastante restritivas. Isso que gera uma insatisfação de militares que estão na operação e os distancia da sociedade, assim como acontece com o policial.
Na sua opinião, a intervenção produz mais efeitos políticos do que soluções para a violência urbana?
A intervenção federal é uma medida paliativa que coincide com interesses eleitorais. Infelizmente, não vejo como tal medida possa gerar uma diminuição da violência criminal no Rio de Janeiro, a médio e longo prazo.