A maior e a menor taxa de abstenção na eleição municipal de 2024 ficaram separadas por 595 quilômetros no Rio Grande do Sul. Da Fronteira Oeste ao Vale do Taquari. Em um pleito de dados alarmantes, Uruguaiana registrou 33,79% de ausência do eleitor, a maior taxa entre os municípios do Estado. Dos 88.769 aptos a confirmar o voto, 29.991 deixaram de comparecer.
No outro polo, o pequeno município de Canudos do Vale teve a mais alta taxa de participação popular do Estado: apenas 84 dos 1.949 eleitores não foram às urnas. A abstenção ficou em 4,31%. As informações foram extraídas da base de dados abertos do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) (veja ao fim da reportagem um mapa com os dados por município).
Números discrepantes que levam à reflexão sobre as motivações de cada população para comparecer ou se ausentar. Uma discussão envolta por características demográficas, geográficas, engajamento ou distanciamento da política e os efeitos da enchente. Mas, também, um debate rodeado por dúvidas sobre causas, soluções e o futuro da democracia representativa.
A alta abstenção de Uruguaiana
A cidade da Fronteira Oeste, com índice de 33,79%, superou outras abstenções elevadas, como os 31,51% registrados em Porto Alegre, e liderou o ranking das ausências de eleitores no Rio Grande do Sul. Uma das explicações para isso é o êxodo. A região da fronteira sofre um crônico processo de depressão econômica, com problemas na renda e na oferta de emprego. O fenômeno leva pessoas a deixarem a cidade. No Censo 2022, Uruguaiana foi uma das cidades gaúchas que mais perdeu população, com queda de 6,6%.
— Uruguaiana tem abstenção alta nas últimas eleições. Acreditamos que isso ocorre pelo número de pessoas que não moram mais aqui, mas mantiveram registrado na cidade o domicílio eleitoral. Não fizeram a troca — afirma Carlos Delgado (PP), prefeito eleito em continuidade à gestão de Ronnie Mello (PP).
Delgado saiu vencedor do pleito com 25.732 votos, equivalente a 47,55% dos válidos. Ele teve 4.259 votos a menos do que o número de abstenções.
O vereador eleito Luis Fernando Braite (PDT), ligado à candidatura adversária na disputa pela prefeitura, aponta desencanto da população. Ele destaca que, embora o continuísmo tenha vencido, Delgado teve 14,6 mil votos a menos do que Mello na reeleição de 2020.
— Existe uma descrença na política local. Não houve sequer oposição na Câmara de Vereadores nos últimos anos, que virou puxadinho do Executivo. A pessoa prefere justificar ou pagar a multa (varia de R$ 1,05 a R$ 3,51) e deixar de votar — diz Braite.
O prefeito e o vereador eleitos concordam com outra possível causa para a alta abstenção em 2024: problemas em urnas que tiveram de ser reiniciadas, causando demora e desistência de eleitores.
— Identificamos em vários colégios eleitorais. Mesários orientaram as pessoas a justificar para não precisar voltar. A Câmara de Vereadores vai fazer audiência pública pedindo a participação da Justiça Eleitoral para falar sobre o assunto — diz Delgado.
O Tribunal Regional Eleitoral (TRE-RS) reconhece que ocorreram problemas, mas assegura que foram pontuais. Secretário de Tecnologia da Informação do TRE-RS, Daniel Wobeto, diz já ter identificado urnas sem paralisações em Uruguaiana que tiveram abstenção maior do que nas seções que apresentaram intercorrências.
— No estudo que consegui fazer, verificamos que pode ter contribuído pontualmente com abstenções, mas não foi determinante. Sequer um ponto percentual eu atribuiria a isso. Lamentamos o transtorno, mas não teve correlação com o índice de abstenção — pondera Wobeto.
Outra hipótese é a larga extensão territorial dos municípios da Fronteira Oeste. Uruguaiana, de 117,2 mil habitantes, tem 5,7 mil quilômetros quadrados de área territorial. A Capital Porto Alegre, com 1,3 milhão de moradores, tem 495 quilômetros quadrados, mais de 11 vezes menos. Na prática, municípios como Uruguaiana, de largas regiões rurais, podem impor longos deslocamentos para o eleitor.
— Porto Alegre tem passe-livre no dia da eleição. Muitas cidades não têm um transporte público bem organizado para o cidadão ir ao local de votação. Entramos no debate do transporte de eleitores no dia do pleito, que pode configurar crime eleitoral. Fica longe para votar em áreas rurais — aponta Ricardo de Sampaio Dagnino, geógrafo, demógrafo e professor do Departamento Interdisciplinar do Campus Litoral Norte da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
O alto comparecimento em Canudos do Vale
Na contramão da fronteira e da Região Metropolitana, a pequena Canudos do Vale teve a menor abstenção do Estado: apenas 4,31% deixaram de votar. A cidade tem histórico de comparecimento, mas componentes especiais ajudam a explicar o cenário de 2024. O primeiro deles foi uma disputa peculiar e acirrada do prefeito contra o vice-prefeito. Eram só os dois atuais governantes na disputa. Um plebiscito entre aqueles que, quatro anos atrás, foram companheiros de chapa. Durante o governo, romperam por conta de ideias divergentes.
Animosidade que foi acentuada na gestão durante a enchente, quando a cidade teve três pontes ceifadas e ficou dividida pelo Rio Forquetinha. O ambiente de disputa estreita mobilizou o corpo a corpo com vizinhos, parentes e conhecidos, típico de uma pequena cidade com 1.949 eleitores aptos.
Venceu o pleito o atual vice-prefeito Maico Juarez Berghahn (PSB), com 941 votos (51,51%). Ele superou o prefeito Paulo Bergmann (MDB), que somou 886 votos (48,49%).
— Foi um caos, ficamos 14 dias sem luz na enchente. Eu, mesmo sendo vice, sou de uma geração nova da política da cidade. Foi uma ruptura com nomes antigos e tradicionais do MDB e do PP. O fato de estar acirrado e com expectativa de mudança ajudou a mobilizar a população. Tive relatos de pessoas idosas que foram às urnas para mudar — diz Berghahn.
Ele menciona que, em 2024, surgiram novos postulantes também para a Câmara de Vereadores. Isso teria, acredita o prefeito eleito, ampliado o engajamento pela mudança de ares.
— Isso aquece a eleição dentro da cidade. Qualquer voto é importante no município pequeno — aponta Berghahn.
O geógrafo, demógrafo e professor Ricardo Dagnino pondera que é cedo para qualquer resposta “taxativa” sobre os maiores e menores comparecimentos às urnas em 2024. Apesar disso, ele diz que as pequenas dimensões de um município tendem a facilitar o acesso ao transporte e aos colégios eleitorais. Fator que se reflete em menor abstenção.
Pesquisadores também recomendam cautela com estatísticas de pequenas populações: elas são relevantes para o contexto interno das comunidades, mas podem ter representação socialmente limitada quando comparadas a complexidades regionais.