Apesar de terem histórias de vida diferentes, Daiana Santos (PCdoB) e Denise Pessôa (PT) compartilham algumas características. Elas têm quase a mesma idade, cumprem mandatos como vereadoras nos municípios onde residem e atuam na defesa das mulheres e de pautas antirracistas. Desde o último domingo (2), contudo, também dividem um título muito significativo: são as primeiras mulheres negras eleitas deputadas federais pelo Rio Grande do Sul.
Em suas primeiras tentativas para conquistar espaço no Congresso, Daiana e Denise receberam, juntas, mais de 132 mil votos no primeiro turno das eleições deste ano.
A seguir, saiba mais sobre a trajetória dessas duas gaúchas que representarão o Estado na Câmara dos Deputados a partir de 2023.
Filha de empregada doméstica que já fez “um pouco de tudo”
Vendedora de rua, ajudante de cozinha em restaurante, auxiliar de higienização, caixa operadora, gerente de loja, atendente de telemarketing e supervisora de vendas. Essas foram algumas das muitas funções que Daiana Santos, 40 anos, ocupou depois que concluiu o Ensino Médio, em Porto Alegre.
Filha primogênita, Daiana é natural de Júlio de Castilhos, na Região Central, onde morava com o irmão do meio e a avó, que faleceu quando ela tinha 12 anos. Logo depois, mudou-se para a Capital — a mãe, dona Odete, já estava na cidade, veio para trabalhar, mas havia trazido apenas a filha caçula, já que residia na casa onde trabalhava como empregada doméstica. Em seu município natal, estudava em uma escola religiosa e praticava esportes. Já na capital gaúcha, passou a morar na mora na Vila das Laranjeiras, no bairro Morro Santana, e deu seguimento aos estudos, ao atletismo (arremesso e lançamento) e ao futebol.
— Sempre pratiquei esporte e acho isso bem importante na minha trajetória. Essa foi uma das coisas que minha mãe conseguiu manter por um período, porque achava que me disciplinava, e ela tinha razão. Era algo que nos tirava daquele movimento das comunidades mais periféricas, que há anos era ainda mais intenso, em relação à falta de oportunidades — comenta.
Quando se formou no Ensino Médio, precisou abrir mão do esporte para começar a trabalhar e ajudar a mãe, que a vida toda foi empregada doméstica e sustentava a casa e os filhos sozinha.
— Sempre foi só ela. Minha mãe é a cara da mulher preta brasileira: mãe solo, chefe de família, sempre correndo aqui e correndo ali, trabalhando — relata.
Daiana entrou na universidade com 18 anos para cursar Fisioterapia, mudou para Psicologia, mas não conseguiu se manter. Então, focou em trabalhar e passou cerca de 12 anos sem estudar. Mais tarde, conseguiu se tornar sanitarista e educadora social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mas conta que, bem antes disso, a política sempre esteve presente em sua vida.
Aos 15 anos, se assumiu lésbica para a mãe e aproximou-se dos movimentos sociais de mulheres lésbicas e LGBTQIA+. Há mais tempo, já participava do movimento negro, incentivada por uma tia que frequentava algumas reuniões e a levava junto:
— Fui me aprofundando e me aproximando cada vez mais. E isso foi produzindo em mim uma inquietação, porque fui entendendo que tinha um monte de coisas erradas. Foi um movimento de ebulição. Uma indignação que começou a ebulir e encontrei nos movimentos sociais essa lucidez.
Daiana já era conhecida por seu trabalho com educação social e saúde — ela atuava com mulheres vítimas de violência e pessoas em situação de rua e vulnerabilidade. Mas, no Ensino Superior, se aproximou ainda mais da política, por meio dos diretórios acadêmicos. Mesmo sem ser filiada a nenhum partido, passou a participar de atividades e, quando se deu conta, já estava nas ruas, integrando diferentes movimentos.
Em 2016, Daiana recebeu o primeiro convite para se candidatar a vereadora, mas ainda não se sentia preparada. Em 2018, começou a repensar e, no ano seguinte, filiou-se ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB), por meio de Silvana Conti. Nas eleições municipais de 2020, elegeu-se vereadora de Porto Alegre, com uma candidatura ancorada em pautas antirracistas, na luta pelas mulheres e pela comunidade LGBTQIA+.
Nas eleições deste ano, fez 88.107 votos para deputada federal.
Traz uma sensação de muito orgulho, mas também de uma responsabilidade imensa, em saber que a gente está abrindo um espaço que nunca mais será o mesmo, é um movimento histórico de ruptura de um ciclo. Agora toda uma geração que não se via nesses lugares vai nos ver e vai se reconhecer.
DAIANA SANTOS
Deputada federal pelo PCdoB
— Se não tivesse chegado até mim uma oportunidade, por meio de uma política pública, eu não teria saído daquele lugar. Se eu não tivesse tido acesso a projetos sociais, a coisas que me produzissem esse sentido do questionamento, da crítica, da dúvida, eu não teria saído, não teria rompido esse ciclo tão duro, que faz com que tantas outras iguais a mim, do mesmo lugar de onde eu venho, se mantenham lá e não consigam compreender que essa realidade não é a única realidade que existe. Então, possibilitar chance de transformação nesses espaços, através do meu trabalho, para mim é muito importante — destaca.
Na Câmara, Daiana pretende lutar por um futuro mais justo para pessoas negras e periféricas, para que todos possam transitar pela cidade de forma livre e conhecer os espaços, tendo acesso não só à educação e à saúde, mas também à cultura, ao esporte e a uma série de outros elementos que podem mudar a vida dessa população.
— A universidade mudou a minha vida e isso não modifica só a mim. Então, quero que aconteça para outros também. E esse movimento de chegar na Câmara Federal, trazendo essa bagagem dessas mulheres negras, traz uma sensação de muito orgulho, mas também de uma responsabilidade imensa, em saber que a gente está abrindo um espaço que nunca mais será o mesmo, é um movimento histórico de ruptura de um ciclo. Agora toda uma geração que não se via nesses lugares vai nos ver e vai se reconhecer — finaliza.
Criança que acompanhava os pais em manifestações de bairro e greves
Com uma trajetória política moldada pouco a pouco, desde a infância, Denise Pessôa, 39 anos, cumpre mandatos como vereadora de Caxias do Sul, há mais de uma década. Filha de um pedreiro e de uma professora do município da Serra, ainda pequena acompanhava o pai, que era presidente de bairro e muito envolvido com a comunidade, em manifestações, e participava, com a mãe, das greves dos professores.
— Em vez de levar a criança no parque, leva em manifestações e greves, daí dá nisso, se cria uma pessoa assim — brinca a caxiense, ressaltando que, quando pequena, nunca pensou em um futuro na política.
A mãe de Denise é natural de Vacaria, e, o pai, de Jaquirana, mas ambos se mudaram para Caxias do Sul ainda crianças. A vereadora tem uma irmã gêmea e um irmão mais velho. Todos foram criados no bairro Loteamento Garbin, que, muitos anos atrás, era considerado a periferia de Caxias. Ela é mãe de um menino de cinco anos.
Denise começou a trabalhar na adolescência, enquanto estudava na escola pública onde a mãe lecionava. Dava aulas de reforço para crianças e cursou magistério antes de decidir fazer faculdade de Direito. Depois de poucas cadeiras cursadas, desistiu e migrou para Arquitetura.
— No movimento estudantil, comecei a participar em nível nacional dos debates sobre moradia e reforma urbana. Aí, me apaixonei pela questão habitacional, pelos aspectos de sustentabilidade, do patrimônio histórico. Vários temas que acabam envolvendo os aspectos sociais da arquitetura — explica a vereadora, que se formou em 2011 pela Universidade de Caxias do Sul (UCS), onde foi presidente do Diretório Acadêmico de Arquitetura e vice-presidente do DCE.
Em 2007, foi convidada a trabalhar com a deputada estadual Marisa Formolo e teve a oportunidade de conhecer Geci Prates, uma fundadora do Partido dos Trabalhadores (PT), e o padre Roque Grazziotin, que foi deputado estadual. Em 2008, se candidatou e ganhou a eleição, assumindo o mandato no ano seguinte, com 25 anos — foi, na época, a vereadora mais jovem de Caxias do Sul:
— Sempre tive muita indignação com o que eu entendia que era injusto. Então, cada vez que aparecia alguma coisa, eu me envolvia, não podia não fazer nada se me incomodava. E quando foi para concorrer, eu olhei para o ambiente político e vi que não existia mulher jovem concorrendo para vereadora em Caxias, então decidi concorrer para levantar o debate e dar visibilidade aos nossos temas.
Vejo que essa ascensão das bancadas negras, tanto em Caxias quanto em Porto Alegre, acabou refletindo na eleição para Câmara dos Deputados, que fez com que eu me elegesse e a Daiana também. É uma mudança, uma renovação de um espaço que a gente não era presente.
DENISE PESSÔA
Deputada federal pelo PT
No segundo mandato, Denise foi a única mulher eleita em Caxias do Sul e, no terceiro, terminou sendo a única vereadora do PT na Câmara. Em 2020, foi a segunda vereadora mais votada da cidade, completando, neste ano, 14 anos de vereança. Atualmente, ela preside a Câmara de Vereadores de Caxias do Sul e compõe a bancada negra do PT no município.
— Vejo que essa ascensão das bancadas negras, tanto em Caxias quanto em Porto Alegre, acabou refletindo na eleição para Câmara dos Deputados, que fez com que eu me elegesse e a Daiana também. É uma mudança, uma renovação de um espaço que a gente não era presente — ressalta Denise, que fez 44.241 votos no pleito deste ano.
Denise tem especialização em Gestão Pública e defende pautas como planejamento da cidade, direito à moradia, reforma urbana e mobilidade, que pretende levar para o Congresso Nacional. Na Câmara, a vereadora também atua na pauta dos direitos humanos e das mulheres, principalmente no combate à violência.
Em 2018, Denise se candidatou a deputada estadual, mas não conseguiu se eleger. Neste ano, sentiu que sua tarefa na Câmara já estava terminando e que deveria abrir espaço para uma renovação. Por isso, se dispôs a concorrer ao Congresso.
— Aquece o coração saber que os desafios são grandes, mas que a gente não está só. Vamos aprendendo juntas, eu admiro bastante a Daiana e torcia muito para poder me eleger junto com ela, assim como a querida Maria do Rosário, que para mim é referência como mulher na política. Estar com essas duas companheiras vai ser muito legal, enriquecedor e certamente vai fazer com que a gente avance e qualifique cada vez mais o parlamento.