A impressão de que todo mundo tem um conhecido que se lançou candidato a vereador nestas eleições é reforçada pelas estatísticas eleitorais. A quantidade de concorrentes saltou 20% no Rio Grande do Sul em relação a quatro anos atrás e chegou a um recorde de 30,2 mil pretendentes aptos — é o equivalente à população inteira de uma cidade de porte médio, como Flores da Cunha, na Serra, em busca de um mandato legislativo.
Em pelo menos duas décadas, período com dados disponíveis no sistema informatizado do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), não houve disputa mais acirrada. Em Porto Alegre, a disparada foi ainda maior: o crescimento chegou a 55%. Com tantos nomes à disposição, especialistas afirmam que a missão do eleitor de escolher um bom representante exige esforço redobrado.
Uma das razões do fenômeno é a estreia da regra que barrou coligações em eleições proporcionais e estimula cada sigla a apresentar mais concorrentes. A estratégia também é um passo na luta pela sobrevivência dos partidos menores diante de cláusulas de barreira ainda mais rígidas que entrarão em vigor em 2022 — quando será preciso ter boas votações para deputado federal a fim de manter acesso a recursos do fundo partidário e à propaganda em rádio e TV.
— É uma competição para ver quem sobreviverá. Ter uma boa estrutura de vereadores e prefeitos também é fundamental para eleger deputados daqui a dois anos — observa o cientista político e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) André Marenco.
Em resumo, os partidos multiplicaram as candidaturas porque precisam atingir uma quantidade mínima de votos para assegurar assento na Câmara sem depender de uma eventual sobra de vagas (veja detalhes no quadro ao final da matéria). Para superar esse patamar, chamado quociente eleitoral, era possível criar coligações e somar os votos. Em 2016, por exemplo, 77% das candidaturas no Estado eram coligadas. Agora, cada sigla precisa superar essa barreira.
Um dos objetivos é reduzir o número de partidos no parlamento — atualmente, 31 siglas tentam emplacar um vereador no Rio Grande do Sul. Outro é evitar distorções no sistema de representação.
— Pelo modelo de coligação, você podia votar em um partido e ajudar a eleger o candidato de outra sigla — avalia a cientista política e professora da UFRGS Silvana Krause.
A cientista política e diretora do Instituto Pesquisas de Opinião (IPO) Elis Radmann afirma que a inovação também trouxe efeitos nocivos no curto prazo:
— Dirigentes partidários saíram correndo atrás de garimpeiros de votos em vez de construir novos quadros com formação política. Há o risco de estimular o personalismo e o clientelismo, com o eleitor votando em alguém só porque conhece a pessoa e por esperar algo em troca, como um vereador-despachante que atende demandas específicas.
Elis crê que a crise econômica reforçada pela pandemia também estimulou um maior número de pessoas a se lançar à política como forma de encontrar um novo meio de vida.
Marenco sustenta que a proliferação de candidatos foi favorecida ainda por um descuido na mudança das regras. A mesma legislação que admitia as coligações limita o número de concorrentes por coligação (ou partido isolado) ao número de vagas em disputa multiplicado por 1,5. Isso se manteve. No caso da Capital, onde há 36 cadeiras, por exemplo, cada sigla pode apresentar até 54 nomes (36 x 1,5).
— Com o fim das coligações, cada partido passou a lançar mais candidatos dentro desse mesmo limite. A legislação deveria ter diminuído o número máximo de nomes por legenda, mas isso não foi feito — afirma o professor da UFRGS.
Marenco chama a atenção para outro detalhe: pela regra anterior, um partido pequeno coligado a outros maiores não tinha interesse em lançar um número tão elevado de candidaturas. Isso ocorria porque, quando a coligação atingia o número mínimo de votos do quociente eleitoral, seus pretendentes passavam a disputar a cadeira com os demais integrantes da coligação. Dessa forma, era interessante concentrar a votação da sigla em poucas pessoas, aumentando a chance de uma melhor colocação na briga interna.
— Agora, como o partido precisa alcançar sozinho o quociente eleitoral, e a vaga vai ficar com ele, vale a pena lançar um maior número de pessoas. O ruim é que, para o pobre do eleitor, é muita gente para escolher — observa Marenco.
Estudo simula impacto desigual entre partidos
Um artigo publicado este ano por pesquisadores ligados à UFRGS em uma revista da Fundação Konrad Adenauer (entidade alemã independente e sem fins lucrativos vinculada ao partido da União Democrata-Cristã) procurou avaliar possíveis impactos do fim das coligações na eleição proporcional. Uma das conclusões do texto "Novos partidos nas capitais brasileiras: o que pode significar o fim das coligações proporcionais?" foi de que o efeito pode não ser o mesmo para diferentes partidos de porte semelhante.
— A maioria dos cientistas políticos tem avaliado que a proibição das coligações proporcionais vai diminuir a fragmentação das Câmaras. Mas tenho dúvida sobre isso. Uma simulação feita sobre o cenário da eleição de 2016 nas capitais mostrou que a maioria dos novos partidos teria perda de representação se não estivessem coligados, mas outros não — observa uma das autoras do artigo, a professora da UFRGS Silvana Krause.
O texto diz: "Em 2016, para PSOL, Rede e PPL, as coligações tiveram o efeito contrário, ou seja, eles teriam eleito mais vereadores caso tivessem lançado candidaturas isoladas". Pela simulação, o PSOL, por exemplo, teria somado 24 cadeiras se tivesse concorrido de forma independente, em vez das 20 conquistadas. Em situação oposta, o PSD passaria de 31 para 25 eleitos.
Silvana avalia que o fim das coligações pode mirar os partidos menores. Mas a professora argumenta que estudos indicam que os principais responsáveis pela fragmentação da representação política no Brasil, principalmente na Câmara dos Deputados, seriam as siglas de porte médio. Nesse caso, pode ser necessário aguardar até 2022, quando entram em vigor cláusulas de barreira mais rígidas para acesso a recursos do fundo partidário e do tempo de propaganda em TV e rádio, para uma maior racionalização do sistema partidário nacional.
Entenda por que os partidos lançam mais concorrentes a vereador
Os partidos precisam de um número mínimo de votos para garantir o direito a uma cadeira na Câmara Municipal (chamado de quociente eleitoral). Se não atingi-lo, dependerá de sobrarem vagas para disputá-las por outros critérios.
Até a eleição passada, as siglas podiam se unir em coligações e somar os votos de todas para ultrapassar essa barreira.
Com o fim das coligações para eleição proporcional (vereadores ou deputados), uma saída para somar mais votos é lançar mais candidatos. Mesmo que os concorrentes tenham pouca chance de vitória, ajudam a atingir o quociente eleitoral.
Veja como funciona a eleição à Câmara:
1) Quociente eleitoral
Tome-se como exemplo uma cidade hipotética que teve 6.050 votos válidos para nove cadeiras na Câmara.
Dividem-se os votos pelo número de vagas: 6.050/9 = 672. Logo, para garantir o direito a pelo menos um vereador, o partido precisa no mínimo de 672 votos. Se não alcançar esse patamar, vai depender de sobrarem vagas (leia mais no terceiro item) para empossar um candidato.
Considere-se a seguinte votação hipotética:
Partido A: 2.250 votos
Partido B: 1.900 votos
Partido C: 1.350 votos
Partido D: 550 votos
Nesse caso, somente os partidos A, B e C teriam vaga garantida por superar o quociente eleitoral de 672 votos.
2) Quociente partidário
Em seguida, é preciso definir quantas vagas cada partido vai levar. Para isso, se calcula o quociente partidário dividindo-se os votos de cada sigla pelo quociente eleitoral.
Seguindo o exemplo:
Partido A: dividem-se seus 2.250 votos pelo quociente eleitoral de 672, obtendo-se 3,3. Como a fração é ignorada, a sigla fica com direito a três vagas.
Partido B: 1.900/672 = 2,8. A sigla fica com duas cadeiras.
Partido C: 1.350/672 = 2. A sigla fica com duas cadeiras.
Para confirmar a vaga, os candidatos mais votados de cada sigla precisam ainda ter somado votos em número equivalente a pelo menos 10% do quociente eleitoral (ou, nesse exemplo, 67 votos).
3) Média
Como foram distribuídas apenas sete das nove vagas por esses critérios, as cadeiras remanescentes são distribuídas com base em outra fórmula, mais complexa.
Em resumo, o cálculo favorece partidos que tenham somado mais votos e tenham ficado com menos vagas (podem ser contemplados, nesse caso, partidos que não tenham atingido o quociente eleitoral)