No frigir dos votos, Jair Bolsonaro terminou o domingo passado (7) como vencedor na disputa pela Presidência da República em 17 das 27 unidades da federação. Saiu derrotado em 10: no Pará e em todos os nove Estados do Nordeste. Na região, o candidato do PSL amargou 7 milhões de eleitores a menos do que Fernando Haddad (PT). Resumindo: o Nordeste evitou, ao menos por três semanas, que Bolsonaro seja o próximo presidente da República. Se dependesse apenas dos nordestinos, o petista teria ganho no primeiro turno, com 50,59% dos votos válidos.
Quando essa realidade veio à tona, pouco depois da abertura das urnas, teve início a selvageria de costume. As redes sociais foram inundadas pelo discurso de ódio ao nordestino, já praticamente uma tradição em pleitos presidenciais. Houve xingamentos de baixo calão, propostas para enviar baianos a campos de concentração, votos de que a população local morra de fome, acusações de burrice, de ignorância, de analfabetismo. Um comentário típico: "O nordestino é pra se f... mesmo. Tem que viver de esmola e assistencialismo. Um monte de vagabundo que não quer trabalhar". Escandalizada, a imprensa do Nordeste lembrou que o preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional é crime inafiançável no país.
Essas manifestações têm ocorrido desde a eleição de 2006. Se em 2002 Luiz Inácio Lula da Silva elegeu-se graças ao apoio das classes médias urbanas de todo Brasil, a partir do pleito seguinte o PT assentou suas vitórias em um perfil diferente de eleitor, que vinha em larga medida do Nordeste. O escritor paraibano Tiago Germano, radicado em Porto Alegre desde 2015, afirma ter sentido o preconceito logo após a eleição de Dilma Rousseff, quatro anos atrás.
— Quando ela tinha acabado de ser reeleita, sofri um acidente e tive de fazer uma cirurgia plástica no polegar. Fui a um hospital do SUS, onde por sinal fui muito bem atendido, aquele hospital para emergências que fica perto do Bourbon Wallig (Cristo Redentor). Mas quando estava na maca, recebendo anestesia, o médico notou o meu sotaque e perguntou se eu era do Nordeste. Disse que sim. Ele nem sabia em quem eu votava, mas já foi dizendo: "Vou costurar esse seu dedo ao contrário, para vocês nunca mais cometerem essa atrocidade de votar na Dilma Rousseff". A verdade é que esse discurso não é novo. O ódio e o rancor com as classes populares estão incrustados, fazem parte da história do Brasil desde a época colonial — conta Germano.
Região registrou crescimento médio acima de Sul e Sudeste
A realidade, sustentam cientistas políticos da região, é que a opção do eleitor nordestino pela candidatura do PT não é baseada em ignorância, mas em mudanças palpáveis para a população. Assenta no fato de que o impacto dos governos de Lula e Dilma foi, por lá, sentido de maneira diferente e mais positiva do que em outras áreas do Brasil.
Levantamento do Escritório Técnico de Estudos Econômicos do Nordeste (Etene) apontou que, entre 2002 e 2015, os nove Estados da região tiveram crescimento econômico médio de 3,3% ao ano. É abaixo do que cresceram o Norte (4,3%) e o Centro-Oeste (4,1%), mas mais do que os índices registrados no Sudeste (2,6%) e no Sul (2,4%), regiões onde Haddad fez 21 milhões de votos a menos do que Bolsonaro. Segundo a Fundação Perseu Abramo, de 2002 a 2012 o número de nordestinos em situação de pobreza teria caído de 21,4 milhões para 9,6 milhões. A quantidade de universitários, na mesma década, pulou de 413 mil para 1,4 milhão. Para uma região que tradicionalmente se viu esquecida por Brasília e pelo centro do país, foi uma grande novidade.
— No Nordeste, as pessoas sentem que vivem melhor do que há 15 anos. Houve melhoria nas condições sociais: diminuição da fome e nos indicadores de saúde, obras de infraestrutura, uma intencionalidade de resolver o principal problema da região, que é a falta de água. Falta água? Vamos fazer a transposição do Rio São Francisco. Não tem mão de obra capacitada? Vamos interiorizar as universidades e criar escolas técnicas. As questões que eram gargalos entraram na agenda — diz Gil Célio de Castro Cardoso, coordenador do curso de gestão de políticas públicas da Universidade Federal do Ceará e autor do livro A Atuação do Estado no Desenvolvimento Recente do Nordeste.
Cardoso explica que, pela primeira vez, o Nordeste percebeu que havia um olhar para as suas necessidades:
— A região sentiu mais a desconcentração da renda, porque aqui a desigualdade era muito maior. Isso não é só um ganho social e econômico, é um ganho político também, faz as pessoas se sentirem empoderadas. Essa é uma questão que o Sul e o Sudeste não entendem. Dizem: "Ah, estão votando porque não querem perder o Bolsa Família". Isso é verdadeiro em parte. Mas não é só isso, é que o Bolsa Família possibilitou maior expressão política dessas pessoas.
Líderes estaduais também têm influência entre eleitores
Renato Francisquini, professor de ciência política na Universidade Federal da Bahia, também aponta, como uma das causas para a preferência do Nordeste por Haddad, o fato de a melhoria das condições sociais e econômicas ter sido acima da média na região. Ele cita programas petistas que passaram em branco no Centro-Sul, mas que foram revolucionários para o nordestino, como o das cisternas e o Luz Para Todos. Mas Francisquini adiciona um outro ingrediente. Para ele, a ascensão de PT teve como efeito uma transformação da política regional e um rompimento com práticas comuns do passado na região.
A popularidade não seria apenas decorrente das políticas federais, implantadas por Lula e Dilma, mas também das novas relações estabelecidas a partir do momento em que petistas passaram a governar cidades e Estados. Essa seria a razão, segundo o professor, para o petista Rui Costa ter sido reeleito governador da Bahia com 75,5% das preferências, enquanto Haddad ficou nos 60%.
— Esta foi a quarta eleição em que o PT elegeu o governador da Bahia no primeiro turno. Claro que, sem o primeiro governo Lula, provavelmente Jaques Wagner não teria conseguido derrotar as elites tradicionais em 2006. Acontece que as políticas federais conseguiram romper com a relação clientelista que existia no Interior. Antes a pessoa dependia do coronel da região para emprego e subsistência. Quando passou a ter recursos que vinham diretamente do governo federal, não precisou mais desse intermediário local. Rompeu-se um ciclo de clientelismo que alimentou a política baiana e de outros Estados durante anos e anos, quebrando o poder das lideranças locais. As pessoas passaram a ter condições dignas de vida sem ter de prestar favor. Isso foi uma forma de liberdade, de autonomia — diz Francisquini.
O escritor pernambucano Raimundo Carrero, referência cultural do Nordeste e ganhador de prêmios como o Jabuti, o São Paulo e o Machado de Assis, acredita que o nordestino tende a ser intelectualizado e informado, enxerga os ataques à opção eleitoral local como reflexo de um conflito entre Sul e Norte e resume a votação em Fernando Haddad como uma forma de gratidão:
— Fui assessor do governador Miguel Arraes por muito tempo, e ele dizia: "Carrero, quem recebe não esquece". A população nordestina não esqueceu o que recebeu dos governos petistas. Não é uma questão de desconhecimento, é uma questão de agradecimento — diz o escritor.