João Carlos Bona Garcia, aos 72 anos, tem sua história fundida à do MDB e ao combate à ditadura militar. Em 1980, um ano após retornar do exílio, ao lado de nomes como Pedro Simon, participou da fundação do PMDB no Rio Grande do Sul — partido que surgiu do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e que, em 2018, voltou a usar a antiga sigla.
De família simples, conheceu as contradições da sociedade aos 15 anos, quando, além de estudar, trabalhava no açougue com o pai, em Passo Fundo. Lá, via os mais pobres se alimentares dos restos do que vendia. "Comiam lá mesmo no balcão, crus, restos de carne, nervos, pulmões", enquanto uma família rica da cidade comprava carne de primeira para dar aos animais domésticos — conta em seu livro.
Ingressou no movimento estudantil e organizou passeatas. Acabou reprimido e expulso do colégio. Foi o início de uma trajetória de combate ao autoritarismo, inclusive na guerrilha armada, que lhe custou prisão, sessões de tortura com espancamentos e choques desde as orelhas até os pés — para que a corrente elétrica atravessasse seu corpo —, exílio no Chile, depois na Argélia, até que a anistia permitiu seu retorno.
Ficha número 1 do MDB de Passo Fundo, o advogado foi chefe da Casa Civil do governo Antônio Britto, juiz e corregedor-geral do Tribunal Militar de Justiça do Estado e ocupou a diretoria financeira da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Em 2014, coordenou as finanças da campanha ao Piratini de seu amigo José Ivo Sartori, de quem é ferrenho defensor. Na última segunda-feira (8), acompanhou, "muito triste", o anúncio de apoio do MDB gaúcho e da candidatura Sartori ao presidenciável Jair Bolsonaro, que ele considera "uma pessoa racista, que despreza as mulheres, apoia a ditadura, é a favor de matar as pessoas e a favor da tortura".
Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista de Bona Garcia a GaúchaZH:
Como o senhor enxerga o apoio do MDB gaúcho à candidatura Bolsonaro?
Olha, sou muito sincero, deixei muito claro a pessoas no partido, a quem está na campanha, de que jamais vou votar no Bolsonaro. Isso é claríssimo. Não tenho a menor dúvida. Faço campanha contra o Bolsonaro. Agora, no partido saiu uma nota onde diz que apenas recomenda que se vote no Bolsonaro. Quem não quer votar, não precisa.
Ficamos no Brasil em uma situação muito ruim. O país ficou dividido de forma emocional, não de forma racional. As eleições foram completamente atípicas, e as pessoas acabaram votando não a favor de um candidato, mas contra outro candidato. E o país hoje está dividido com PT de um lado, como esquerda — o que é contestado, eu sou de esquerda e não sou do PT. Com uma visão de que o PT é o comunismo, de que vai se transformar na Venezuela, e isso não existe, é uma fantasia.
Temos uma história. O meu maior capital é a minha história, é o meu posicionamento político. Disso eu não vou jamais abrir mão.
E tem também o Bolsonaro, que está no Congresso há sete legislaturas, nunca teve nada importante, aproveitou a onda para dizer o seguinte: "Tem que matar bandido, tem que sair armado, tem que liquidar todo mundo!". E a população diz, "Poxa, será que eu vou ter segurança?". Ou seja, Bolsonaro cria algo para o futuro que ninguém sabe o que vai dar. E nós já tivemos essa experiência com o Collor: eleger uma pessoa, também emocionalmente, e que depois deu no que deu. Infelizmente, o brasileiro está neste dilema.
O MDB, quando surgiu, reunia forças plurais contra a ditadura. Como o senhor entende essa recomendação de voto a um candidato que defende a ditadura de 1964?
É puramente eleitoral. Os dois candidatos que tem aqui no Rio Grande do Sul, um é o Sartori, o qual eu apoiei e apoio, pela pessoa que é, pelo que representou na sua vida política toda, foi sempre um homem ligado à democracia, ao humanismo, sempre foi um democrata. O governo dele foi de austeridade, um governo importante no momento em que o Estado está passando. Por isso eu o apoio. Agora, os dois candidatos querem angariar votos, ninguém quer perder votos. Tanto ele quanto o Eduardo Leite, que respeito também, os dois estão flertando com Bolsonaro simplesmente para não perder votos. Querem ganhar o apoio desse tsunami que houve na política.
Só que eu penso de forma diferente. Temos uma história. O meu maior capital é a minha história, é o meu posicionamento político. Disso eu não vou jamais abrir mão. Eu lamento que esses candidatos estejam assim, apoiando Bolsonaro, mas entendo que estão buscando votos. Campanha se decide nas urnas. Teve um fato positivo? Sim, a população brasileira se engajou, foi às urnas, está discutindo política, mas de forma radical, não pensada. Votaram mais com o fígado do que com a cabeça.
Qual foi o sentimento do senhor ao saber desse apoio?
Pessoalmente, muito triste. Chateado, triste, para o país chegar nesse nível, para o partido chegar a esse nível... Mas, respeito a opinião das pessoas, respeito quem pensa o contrário. Democracia é assim. Mas, pessoalmente, fico muito chateado. Agora, eu não abro mão nunca da minha história.
E o MDB?
O MDB, em função da eleição, em função do momento político, está abrindo mão de sua história. Mesmo que eu entenda que a situação do país mudou. Mas eu tenho uma história muito particular de vida em relação à ditadura. Não quero impor meu ponto de vista. Cada um tem sua trajetória. A minha foi muito marcada pela luta contra a ditadura e teve consequências muito sérias.
O senhor diria que há alguma proximidade de ideias entre Bolsonaro e o MDB?
Olha, do que eu conheci do meu MDB, não. Agora, as coisas mudam muito. Deve ter setores dentro do partido que acham que o Bolsonaro é bom. Partido é partido, tem várias correntes internas. Eu não me filio a essas correntes.
O senhor ainda tem contato com os caciques do MDB gaúcho?
Sou amigo de Pedro Simon, de todos, de dirigentes partidários, enfim, ajudei na campanha de Sartori da primeira vez e ainda ajudo. Porque acho que é o melhor para o Rio Grande. O Sartori é uma pessoa íntegra, decente, com capacidade de administrar o Estado. E também é meu amigo.
Como amigo do Sartori, o senhor entende que ele está confortável com o apoio a Bolsonaro?
O Sartori está disputando uma eleição, quer continuar mais quatro anos. Agora, ele está confortável? Claro que não! O Brasil levou a uma situação de não perder voto. Então, tem que ir em frente. Agora, eu não comungo, minha posição é outra. Mas respeito todas as posições. Vou ajudar, trabalhar, mas não voto e jamais votarei em Bolsonaro. Com certeza votarei no Haddad. Não querendo... (risos) Veja bem, nenhum é meu candidato. Esse é o problema. Acho que o PT errou demais. Eu, no passado, votei no Lula, na Dilma, erraram, foi erro, e o PT não fez autocrítica. É uma burrice do partido. Mas não, acharam que os outros é que estão errados. Está errado, inclusive, afundando uma parte da esquerda. Que não é isso. A esquerda luta por democracia, por liberdade, para melhorar a situação da população, contra as desigualdades que tem. E isso não foi o que o PT apresentou no último governo. O que me resta, fazer como avestruz e enterrar a cabeça? Não, porque aí eu estou favorecendo um candidato. (Haddad) é o que eu gostaria? Não, mas é o que tem.
Que discordâncias o senhor tem com Bolsonaro que lhe fazem votar em Haddad, a contragosto?
É uma pessoa racista, que despreza um setor fantástico que são as mulheres, apoia a ditadura, é a favor de matar as pessoas, armar todo mundo, a favor da tortura. E outra, é uma ilusão muito grande: não existe salvador da pátria. O país vai estar dividido. Quem assumir vai ter que tentar unir, conversar com todo mundo, não é pelas ideias de Bolsonaro (que isso vai acontecer). Zé Dirceu também está errado. Ora, dizer que "vamos tomar o poder". Está delirando. É quem não conhece a sociedade brasileira.
O MDB, em função da eleição, em função do momento político, está abrindo mão de sua história.
Agora, não tem jeito, quem ganhar, ganhou, vamos respeitar as urnas. Mas sou muito cético com o futuro. A pessoa vai ter que conversar com o Congresso, fazer reformas, que agora ninguém aborda. Como vai resolver o problema do desemprego, saúde, educação? Coisas do dia-a-dia que temos que resolver. Ninguém aborda porque todo mundo tem medo de se queimar com a população. Hoje em dia é ganhar voto, voto. Aí tem que dizer "mata os bandidos, dá segurança". E outra, o medo do comunismo. Isso não existe mais. Acabou! As pessoas têm medo, dizem "vai transformar isso em uma Venezuela". Isso é uma panaceia, o Brasil não é Venezuela.
O Haddad, se governar, será o Haddad, e não Lula que está preso. É Haddad que vai colocar a faixa presidencial, se ganhar. E terá que desenvolver uma política conversando com todo mundo. Não é o que o partido pensa. Ele vai ter que fazer, sim, aquilo que a sociedade espera. O mesmo vale para Bolsonaro.
Agora, o vice do Bolsonaro é um furacão, é um negócio completamente fora (da realidade), que o próprio Exército se envergonha. O que estou falando não tem nada a ver com a instituição Exército, eu respeito as instituições. Agora, não pensa que o Exército está confortável com Bolsonaro e com o seu vice. Aqui no Rio Grande do Sul, nem Sartori, nem Eduardo Leite comungam com as ideias e princípios do Bolsonaro, mas é uma eleição e todo mundo quer ganhar voto. Acho que é a hora, especialmente no meio político, de os partidos raciocinarem, pensarem, para não ser levados no tsunami dessas eleições. Pensar a política, pensar mais adiante. O Brasil continua, a sociedade brasileira continua.
O senhor vê risco de rompimento da democracia?
Uma coisa é a campanha, outra coisa é o exercício do cargo no governo. Risco (à democracia) tem, claro que sim, agora tem que esperar para ver, não dá para julgar antes e dizer que vai acabar com a democracia. A democracia está implantada e sólida. Inclusive, vi pesquisa dizendo que 68% dos brasileiros acham que a democracia é o melhor caminho. Dentro desses 68% eu me incluo veementemente. Eu vou batalhar até o final da vida para que continue o regime democrático.