A Delegacia de Proteção a Criança e ao Adolescente (DPCA) já ouviu o depoimento de 18 pessoas no inquérito policial que investiga o caso de possível maus-tratos a bebês em uma escola de Educação Infantil particular de Caxias do Sul. O nome da escola não é divulgado, porque ainda não há conclusão do inquérito e também para preservar a identidade das crianças, em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Nas imagens gravadas por câmeras de segurança do refeitório e de uma sala de aula, ao menos duas ex-professoras foram flagradas em atitudes que podem configurar o crime.
A equipe da delegacia esteve na escolinha pela primeira vez na tarde de 1º de novembro, logo após receber denúncias e imagens. A investigação abrange especialmente essas duas ex-funcionárias, que foram demitidas após o episódio, mas não exclui as demais pessoas, que podem ser responsabilizadas se for comprovado o crime de maus-tratos. A delegada Aline Martinelli, titular da DPCA, afirma que, assim que a denúncia foi recebida, a proprietária foi intimada pela Polícia Civil para prestar esclarecimentos sobre o assunto.
Ela esclarece que, no direito penal, há crimes que são praticados por ação e outros por omissão, sendo que as condutas omissivas também podem ser criminosas, ainda mais quando cometidas contra crianças. Segundo Aline, o próprio ECA diz que é dever geral de toda a população cuidar das crianças e adolescentes.
— Vimos diversos vídeos em que essas crianças, especificamente de determinado grupo da escolinha, estariam passando por condutas que seriam criminais, não compatíveis com o cuidado e o dever que devemos ter. Estamos fazendo uma triagem e uma análise minuciosa das imagens que recebemos. Duas pessoas já foram afastadas, o que não quer dizer que não vamos investigar outras pessoas — confirma a titular da DPCA.
A delegada afirma também que, até o momento, 18 pessoas já foram ouvidas e há outros depoimentos marcados para o longo da semana. Ela ressalta ainda que as imagens chocam por envolver crianças:
— Iremos buscar uma resposta e responsabilização dessas pessoas que tiverem alguma participação. Isso causa uma extrema repulsa para nós, enquanto policiais, enquanto pessoas, e é com base nisso que iremos buscar uma responsabilização.
Ainda conforme Aline, o Ministério Público (MP), o Conselho Tutelar e a Secretaria Municipal de Educação (Smed) foram comunicadas sobre o caso para tomar as medidas necessárias, sendo que não cabe à Polícia Civil o fechamento da escola.
Pais relatam agressões contra os filhos
Uma mãe, que tem a identidade preservada, relatou à reportagem que nas filmagens presenciou agressões contra a filha de dois anos.
— Eu vi as professoras (as duas ex-funcionárias apontadas na denúncia) agredindo minha filha com chutes, tapas na boca e beliscões — relata a mulher, que compareceu na delegacia na última sexta-feira (10) e teve acesso às gravações.
Outro pai relata que a filha gostava de ir para a escolinha, mas chegava em casa machucada, o que não levantava suspeitas, porque a família acreditava que era algo normal para a idade e que ela pudesse ter se machucado brincando ou caindo. Ela apresentou marcas roxas nas pernas, braços, cabeça e boca, segundo ele, em mais de uma vez. Ao questionar a professora, recebia a mesma resposta, de que a menina se machucava sozinha enquanto estava brincando. O pai ressalta que viu as imagens em 31 de outubro:
— Eu vi ela sacudindo minha filha, minha filha caiu com as pernas em baixo de um chiqueirinho e ela a ergueu pelos braços. Eu me sinto como se estivesse fazendo a coisa errada levando ela para a escolinha porque não acreditava que estava acontecendo isso. Dói, né? A gente não bate, não xinga as crianças para isso não acontecer.
O episódio levou a um protesto na noite da última segunda-feira (13), sendo que cerca de 30 pessoas fizeram uma manifestação em frente à escolinha para mobilizar a comunidade e chamar a atenção para o caso. A mobilização foi silenciosa, com os participantes portando cartazes pedindo justiça. Não havia ninguém da escola, pois, conforme a direção, as atividades foram encerradas às 15h nesta segunda.
Contrapontos
Posição da Smed
A Smed afirma que contatou as famílias das crianças anteriormente matriculadas por meio da compra de vagas na escola suspeita de irregularidades para concluir o processo de transferência de 100% delas para novas instituições. Segundo o município, a movimentação teve início na semana passada.
A pasta aponta ainda que a permissão ou não para o funcionamento de uma escola particular é de competência do Conselho Municipal de Educação (CME), órgão autônomo e independente da administração municipal. A instituição encontra-se autorizada a funcionar pelo CME, conforme parecer número 021/2021.
Ainda segundo o município, os relatos de maus-tratos chegaram à Smed em 8 de novembro, por meio de familiares de uma das crianças com vaga comprada na escola, que não é mantida pelo município ou por entidade conveniada. No dia seguinte (9), equipes da secretaria deslocaram-se até a escola, sendo informadas do afastamento de duas funcionárias e, de imediato, solicitaram o contato dos responsáveis pelas crianças com vaga subsidiada pelo município para encaminhamento de transferência.
Na sexta-feira (10) foi encaminhada a notificação de rescisão contratual (dois contratos) e cientificada a responsável legal pela instituição. Ainda segundo a Smed, o caso é tratado com delicadeza e discrição e que, por envolver menores de idade, o processo corre em segredo de Justiça.
O que diz o Conselho Municipal de Educação
O Conselho Municipal de Educação afirma que a denúncia chegou via Ministério Público (MP) em caráter reservado, por isso não foi realizada manifestação pública em virtude do segredo de Justiça e dos cuidados necessários por se tratarem de menores.
Ainda de acordo com o Conselho, as diligências quanto ao que é de competência da entidade, no caso a parte documental, alvarás e de profissionais da educação, já estão em andamento.
O que diz a escola
Procurada, a direção da escola de Educação Infantil respondeu na segunda-feira que está ocorrendo uma investigação em sigilo e que "não tem muito o que dizer". Ainda acrescentou que "todas as manifestações são livres" e que "após a conclusão das investigações, aí teremos o que dizer, mas, neste momento, estamos respeitando a lei pelo sigilo".
Já nesta terça-feira, a defesa da escola afirmou que trata-se de uma investigação sigilosa e delicada, sendo que a escola tomou as providências para afastar as funcionárias e preservar as crianças. Também ressaltou que está "auxiliando nas investigações" e acrescentou que "vídeos e informações estão circulando de forma equivocada e sem autorização, o que vem afetando várias escolas da cidade". Para finalizar, a defesa apontou que "considerando o melhor interesse das crianças, a escola não medirá esforços para que a investigação seja efetiva.