O assalto ao carro-forte no Aeroporto Hugo Cantergiani, em Caxias do Sul, em 19 de junho, surpreendeu não só a comunidade local, mas todo o país. A maneira como os criminosos agiram, a quantia que pretendiam roubar — cerca de R$ 30 milhões —, assim como a violência empregada, que resultou na morte do 2º sargento da Brigada Militar Fabiano Oliveira, foram alguns dos motivos que deixaram a sociedade incrédula. O caso no aeroporto de Caxias é o maior assalto do Rio Grande do Sul e o sexto maior do Brasil.
Com o objetivo de responder a alguns questionamentos sobre o caso e fazer uma análise mais abrangente dos fatos, convidamos o professor Charles Kieling, historiador especializado em Ciências Sociais na área de Segurança Pública; o delegado João Paulo de Abreu, titular da 1ª Delegacia de Polícia de Repressão a Roubos do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), da Polícia Civil; e o tenente-coronel Ricardo Moreira de Vargas, comandante do 12º Batalhão de Polícia Militar (12º BPM), de Caxias do Sul.
Charles Kieling estuda o tema da segurança pública há 30 anos. Em 2004, lançou o primeiro mapa da violência e da criminalidade em Caxias. Este mapa identificou a localização das quadrilhas e como elas se articulavam na cidade. No caso do aeroporto, ocorrido dia 19 de junho, Kieling questiona a eficiência do serviço de inteligência das forças policiais e defende que é preciso entender a criminalidade para, de fato, combatê-la.
Entretanto, o delegado João Paulo de Abreu, que participou da investigação do caso do assalto a carro-forte na BR-470, entre Bento Gonçalves e Veranópolis, em 2018, acredita que não houve falha do serviço de inteligência no caso do ataque em Caxias. Para ele, o trabalho de inteligência da segurança pública decorre também da colaboração da sociedade.
Já o comandante do 12º BPM, tenente-Coronel Ricardo Moreira de Vargas, reforça a tese de que operações como essa devem sempre ser comunicadas às forças de segurança. Para Vargas, uma das dificuldades das ações de inteligência é a burocracia no acesso a dados pessoais.
Confira a entrevista completa que ambos concederam ao Pioneiro.
Pioneiro: O que mais chama atenção na forma como esse assalto aconteceu?
Professor Charles Kieling: O fato de eles terem escolhido o aeroporto, que tem proximidade com o 12º BPM, sabendo que levaria um tempo muito curto para a polícia chegar no local. Eles agiram com total conhecimento do local. E se eles já estavam há algum tempo na cidade, traçando rotas de fuga e pensando em como agir, como os órgãos de segurança não viram nada? A gente percebe que a segurança pública, de fato, carece de conhecimento.
Delegado João Paulo de Abreu: Embora tenha ocorrido outros roubos a carro-forte pela região, o que chama a atenção é o fato de ter sido em um aeroporto, e, mais ainda, a questão da morte de um policial militar, que foi responder à ação criminosa, adotando todas as medidas de segurança e de técnicas de aproximação ao local e acabou sendo morto, ao que tudo indica, por disparo de uma arma de fogo de um calibre de guerra. A morte do policial nos chocou bastante.
Comandante Ricardo Vargas: Nos chama atenção o horário escolhido para esse tipo de transporte de valores no aeroporto (à noite), as informações privilegiadas que o grupo criminoso possuía, inclusive sobre o voo e o horário de pouso no aeroporto, além do uso de armamento de guerra.
Caxias do Sul está preparada para a circulação de grandes valores?
Kieling: Todas as cidades necessitam da circulação de recursos. Além da segurança pública, precisamos olhar para a segurança privada, que não está preparada para fazer aquilo que se destina, pois quem tem a obrigação de preparar a segurança privada é a própria segurança pública. Se nós chegamos ao confronto, é porque tudo falhou anteriormente.
Abreu: Eu percebo como uma grande preocupação das empresas de transporte de valores. Eu acho que o poder público tem que dar o devido apoio quando ocorrem essas operações, pois elas repercutem em várias esferas, tanto pública como privada. Elas não deixarão de ocorrer, e obviamente que a gente tem que sempre se preparar para que ela ocorra de forma segura.
Vargas: A Brigada Militar sempre está preparada para cumprir a sua missão, desde que seja comunicada com antecedência sobre transporte de grande valor. Nesses casos, realizamos reuniões preparatórias, planejamos e cumprimos a missão com segurança. Infelizmente, no caso em questão, não fomos comunicados e acabamos perdendo um amigo e colega de farda.
No caso do Aeroporto, os criminosos utilizaram até um fuzil Barrett M82 calibre .50. Ainda existe um mercado ilegal que facilita o acesso às armas?
Kieling: Há uma facção paulista que tem contato com grupos criminosos internacionais. E é por eles que as armas entram no Brasil. É preciso identificar as logísticas desses criminosos. Sem entender a criminalidade, estaremos num cenário de extrema vulnerabilidade.
Abreu: Provavelmente, existe um armamento que ingressou no Brasil de forma clandestina, através do tráfico internacional. É importante o controle de fronteiras e aporte de recursos técnicos e humanos para a fiscalização desses locais.
Vargas: Esse tipo de armamento não é fabricado no país, sendo necessário repensar o controle de nossas fronteiras.
Falta tecnologia para barrar a criminalidade? Como o serviço de inteligência pode atuar para coibir o crime antes que ele ocorra?
Kieling: O que nós precisamos é desenvolver inteligência e entender a dinâmica do crime. E para fazer inteligência é necessário conhecimento, estudo e formação. E os secretários de segurança pública precisam ter conhecimento técnico. Não adianta só ter conhecimento político.
Abreu: Nesse caso, não é porque a inteligência falhou. Um dos atores principais para se evitar fatos como esses é a própria sociedade. Se eu estou achando estranho a presença de pessoas ali, eu tenho que denunciar. É cômodo dizer que a inteligência falhou. Então, cada vez mais o Estado deve se atentar para a tecnologia disponível para as forças policiais e buscar sempre investimento.
Vargas: O incremento de novas tecnologias é sempre buscado pelas polícias no mundo inteiro. No nosso país esbarramos em questões legais e burocráticas que restringem nosso acesso imediato a dados por conta da inviolabilidade do direito à privacidade das pessoas, o que também dificulta as ações e operações de inteligência. Ou fazemos segurança pública ou fazemos burocracia.
E o que é necessário para que situações como essa não se repitam?
Kieling: Os órgãos de segurança pública precisam melhorar o seu conhecimento. Precisamos questionar o que os órgãos públicos, em especial, o que o legislativo faz que não fiscaliza o executivo nesta área da segurança. E os vereadores também não detêm conhecimento na área para pensar estratégias ou para fazer uma fiscalização mais eficiente para que a segurança pública seja, de fato, segurança pública.
Abreu: Fatos como esse devem ser enfrentados de forma interinstitucional, com um trabalho de investigação integrado entre todas as forças policiais. Não adianta a gente conduzir uma investigação sem essa integração, pois temos que lidar com diversas inquisições cautelares, pedidos de prisões e quebras de sigilo. E é preciso uma rápida análise pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário. Esses poderes têm que olhar de forma atenta e preocupada para esses crimes.
Vargas: Esse tipo de operação de valores, sem comunicação às forças de segurança, deve ser melhor planejado pela empresa contratada para o serviço, avaliando os riscos da operação e adotando as medidas de vigilância cabíveis. Também é importante aumentar o controle nas fronteiras do país e nos acessos nas divisas e rodovias dos estados membros, além de ampliar o cercamento eletrônico em toda a cidade.