Uma reunião arrastada, a conversa desinteressante e tudo vira motivo para que o celular tenha a nossa atenção. Às vezes, o objetivo até é manter certa distância, mas o movimento tornou-se automático. Transporte essa cena com um adolescente no papel principal, perdido em uma aula que não goste ou quando a matéria simplesmente não entra na cabeça. Com a dispersão, a busca pelo aparelho, sempre ao alcance, é automática.
A situação, consolidada praticamente no mundo inteiro, demonstra a dificuldade de lutar contra o poder das telas. O desafio, contudo, fica ainda maior quando as escolas não encontram mais formas de manter os alunos focados nos estudos. E a tecnologia, tão aliada, se confirma como um dos principais dilemas da educação, que precisa ser resolvido por quem vive a sala de aula.
O assunto na Escola Estadual Técnica Caxias do Sul (EETCS), no bairro Presidente Vargas, é um dos mais constantes entre direção e professores. Tentar encontrar uma solução e o equilíbrio na utilização ainda está longe de acontecer, mas os próprios alunos surgem como aliados, admitindo que a relação com o celular vive um momento de excessos.
Estudantes do terceiro ano Ensino Médio, Catarina Tessari Teixeira, de 19 anos, e Stephanie Reis de Oliveira e Kauane Raíssa Tomé Goettems, ambas de 18, revelam que têm dificuldade de ficar sem o contato em meio às disciplinas.
— Em algumas matérias nós podemos usar o telefone para as atividades, mas quando me dou conta já estou vendo as redes sociais e me perco. O máximo que consigo ficar sem ver é uns 20 minutos. Ao menos uma olhadinha. Mas, com os professores que são mais rígidos, eu nem encosto — admite Catarina.
A colega Stephanie reforça a quase dependência com a tela:
— O celular atrapalha muito, e acabamos não aprendendo o suficiente. Eu tive de desapegar na marra agora, porque o meu aparelho quebrou e precisei amenizar. E tem sido um alívio, sinto até que vivo mais, aprendo mais. Se não, também não consigo ficar menos de 20 minutos sem pegar. A não ser nas aulas pelas quais eu realmente me interesso ou quando os professores exigem — aponta a estudante.
Apesar de demonstrar um maior desapego, Kauane é sincera ao dizer que a dispersão é muito fácil, o que atrapalha o discernimento entre fazer ou não o uso da ferramenta.
— Eu deixo o celular embaixo da classe, mas quando a aula não me interessa eu acabo pegando. Se é matemática, por exemplo, que eu tenho mais dificuldade, eu tento não usar, mas disperso muito fácil — relata Kauane.
No bate-papo com as alunas, a professora Graciele Bristot Machado, 38, confirma a necessidade de praticamente todos os estudantes ficarem com o celular. De acordo com ela, nos momentos sem contato, alguns demonstram até sinais que lembram abstinência.
— Nas avaliações, eu não deixo usar. A escola não restringe, é uma opção de cada professor. E durante as provas, sem o aparelho, eles chegam a suar frio. Virou uma dependência. Quando a luzinha acende, querem pegar. E depois que dispersa, é muito difícil buscar o aluno de novo — conta Graciele.
Direção admite momento difícil na educação
Quem conduz a EETCS é alguém que está prestes a completar 33 anos de magistério, às portas da aposentadoria. E, com tanto tempo de sala de aula, a diretora Salete Dutra confessa que nunca viu um cenário tão preocupante.
— É um momento muito difícil. Quando o professor cansa de chamar a atenção do estudante, encaminha para a orientadora pedagógica. Quando o mesmo estudante é reincidente, recolhemos o celular e ele é entregue aos responsáveis. Chegamos até a fazer um grupo de WhatsApp com os pais de cada turma para pedir ajuda na orientação aos filhos. Colocamos nos murais das salas e nos corredores o decreto proibindo o uso do celular pelos estudantes — registra a diretora.
Salete revela que a escola tentou adotar a caixinha para que os estudantes depositassem os aparelhos no início das aulas e retirassem na saída, mas não funcionou.
Escolas diferentes, realidade repetida
A mesma realidade se confirma em diversas outras escolas de Caxias do Sul. No bairro São Pelegrino, os alunos do Colégio São Carlos protagonizam um cenário parecido. Celular à mão e dificuldade em separar utilização para fins pedagógicos e pessoal. O professor de filosofia da instituição, Eduardo Borile Jr., ressalta que, embora as regras apontem para o controle restrito no uso, até mesmo os adultos acabam não conseguindo, situação piorada quando a imaturidade é elemento constante de quem precisa tomar as decisões.
— Têm famílias que almoçam com o celular, pais que, para terem um tempo de lazer, entregam o aparelho para as crianças pequenas. Como vamos cobrar que na escola os filhos tenham um comportamento diferente? — questiona o professor.
E os colegas Natália Turra, Manuela Guerra e Arthur Menna, todos entre 16 e 17 anos, ainda buscam uma relação mais saudável com o celular no dia a dia, principalmente nos momentos de estudo. De acordo com eles, o contato assíduo ainda é uma herança da pandemia, quando as aulas eram em formato online e, no retorno presencial, de forma híbrida.
— Há três anos estávamos na pandemia. Era normal usar a todo momento, até para acessar os exercícios e a plataforma de estudos da época. Desde que isso acabou, ficou comum ter o celular em cima da mesa. E tem sido bem difícil diminuir o contato — confessa Natália, com a anuência dos amigos.
Disciplina facilita o desapego
Todo aluno que começa o ano no Colégio Tiradentes, da Brigada Militar, recebe uma notícia bem objetiva. Nada de celular nas aulas. O contato zero é regra estabelecida no código de conduta da instituição, entre outras normas disciplinares cumpridas pelos 201 estudantes. Mesmo quem chega à escola com uma rotina ligada à tela, precisa de apenas algumas semanas para incorporar o distanciamento para os demais momentos do dia.
Testemunha dessa mudança de comportamento, aos 16 anos o estudante Nicolas Oliveira Cabral cursa atualmente o terceiro ano do Ensino Médio e, há dois anos, iniciou o processo de desapego do celular.
— No começo foi um choque, porque na escola em que eu estudava não tinha problema, mas aqui é diferente. Eu era quase viciado mesmo. É um ponto positivo que o colégio trouxe. Sem o celular, meu foco é muito maior. Tenho redes sociais, mas uso pouco, desacostumei — garante Nicolas.
Maria Eduarda Suzin Pavan, que entrou no Tiradentes em 2023, está na turma do 2º ano, e reforça a mudança que as normas trouxeram para momentos dentro e fora da escola.
— Eu estava sempre com o celular. Foi difícil nas primeiras semanas, mas hoje não sinto falta. Ficar sem o celular na aula interfere em todo o restante do dia. Às vezes nem no intervalo do almoço, quando podemos usar, eu pego. Eu me sinto melhor assim. Me sinto mais produtiva.
Turmas mais atentas sem as telas
Tarefa facilitada também para os professores, que não precisam disputar a atenção dos adolescentes com uma janela para o mundo que as telas representam. Com 47 anos, 29 deles dedicados ao ensino, a docente Emilene Bernardes Passos comemora o fato de os estudantes não terem a permissão de usar a ferramenta durante as aulas.
— Eu trabalho em outras escolas e vejo isso como um benefício. Deveria ser um recurso tecnológico, mas percebemos que eles não têm discernimento para escolher. Perdem o foco, não aprendem o suficiente. Estamos perdendo alunos muito inteligentes para o celular. Entrar na rede social, para a maioria, é algo dominante. Falta autocontrole para eles. Por isso que aqui é a escola ideal. É a escola que todo o professor gostaria de dar aula — sustenta a professora.
Acordo entre mãe e filhos: sem celular na escola
A cada manhã em que deixa os filhos Henrique, 15, e Bianca, 13, no Colégio São Carlos, a professora e psicopedagoga Joice Schmitz Gremelmaier sabe que acordo feito entre eles, de não usar o celular em meio às aulas, será respeitado. Isso gera tranquilidade na rotina da dupla, que se acostumou desde cedo com a dinâmica da casa.
— Nós os acostumamos desde pequenos, conversando, orientando. Sempre fui muito contra o excesso de telas, li muito sobre o assunto e coloquei em prática. Os pais precisam ser ativos na relação com os filhos, tirá-los das telas, estar com eles, serem presentes — defende Joice.
A estratégia está consolidada no comportamento dos filhos. Dos esportes aos livros e desenhos, os dois buscam em outras atividades os momentos longe da tecnologia.
— Estou tentando dar uma afastada do celular. Se não fosse a orientação da minha mãe, eu usaria muito mais. Na sala de aula eu deixo desligado, na mochila, e no tempo livre faço patinação, futevôlei, gosto de desenhar. Procuro me ocupar — afirma Bianca.
Já o irmão mais velho, apesar de bem jovem, lembra um garoto criado nos anos 1990 e 2000, quando telefone era só em casa ou no orelhão.
— Eu não uso muito o celular. Gosto de praticar esportes, como futsal e musculação. E conversar com os amigos. Nossa turma da escola usa bem menos que o restante. Acho que é por causa do esporte — comenta Henrique.
Ao ouvir os filhos encaminhados sem se tornarem reféns da tecnologia, Joice ressalta que é possível encontrar meios em todas as famílias.
— Se tem muito celular na vida deles é porque está faltando a presença dos pais — conclui a mãe, também falando como profissional da área.
Novo arranjo para a aprendizagem
No consultório no centro de Caxias do Sul, a psicopedagoga Amanda Chagas atende crianças e adolescentes todos os dias em mais de 23 anos de profissão. Para ela, a aprendizagem passa por uma fase de transição e adaptação, sendo necessário pensar o problema do abuso das telas por várias perspectivas, no que classifica como psicoeducação. Um verdadeiro arranjo entre adolescente, família e escola, que resulte em novos meios de aprendizagem.
— Antes da pandemia, o uso de eletrônicos nas escolas era controlado. Depois, foi fundamental para as aulas e, na volta, perdeu-se o controle. Agora, precisamos encontrar o meio termo. Neste sentindo, a escola precisa modificar o processo de ensino. Aulas tradicionais, de anos atrás, não funcionam mais. O cérebro dos estudantes mudou. E todos os envolvidos precisam encontrar, juntos, uma nova solução — aponta Amanda.
Quanto à geração atual e seu isolamento nas telas do celular, a profissional é taxativa:
— É uma geração mais entristecida. Temos um adolescente mais deprimido, ansioso, com dificuldade de controlar os impulsos. Não é só nostalgia, estudos comprovam. O celular contribui muito para essa realidade porque restringe as relações sociais. Sem ouvir e pensar como o outro, não se compartilha mais, criando o distanciamento tão perigoso.
Dicas para os pais diminuírem o uso do celular pelos filhos
- Controlar o próprio uso excessivo: não usar o aparelho quando está interagindo com a família, mostrando dar toda a atenção.
- Conversar sobre o assunto: não deixar que o mundo ensine. Mostrar o caminho, orientar sobre quando deve ou não usar a tela.
- Criar momentos de “desintoxicação”: esportes, brincadeiras, passeios. Gerar oportunidades sem a tecnologia envolvida.
- Trabalhar o autocontrole do filho: inibir tudo que tire a atenção desnecessariamente, fazer atividades que exijam foco.
Experiência positiva em escola da Região Central
A mesma angústia com a queda de rendimento e dispersão dos alunos era compartilhada pela Escola Estadual Apolinário Porto Alegre, em Santiago, na Região Central do Estado. Depois de muitas tentativas de conscientização para o uso racional do celular junto aos estudantes, todas em vão, a direção decidiu por restringir o uso. Desde agosto do ano passado, em cada começo de turno, os aparelhos são depositados em uma caixa, podendo ser recolhidos somente no recreio e término das aulas.
Apesar de um início resistente por parte dos alunos, a medida funcionou. E deu tão certo que, além de continuada em 2024, foi melhorada. Novas caixas foram produzidas para o mesmo fim. A restrição foi adotada em todas as turmas dos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio. A vice-diretora da escola, Karen Vielmo Saldanha, confirma que a experiência impactou, inclusive, as notas dos alunos.
— Somente a orientação não surtiu efeito, por isso precisamos tomar esta atitude nem tão simpática, de proibir o uso durante as aulas, mas que se tornou fundamental. A prova de que funcionou está na melhor do rendimento. Ficou claro que os estudantes estão menos ansiosos, mais tranquilos, o que permite mais concentração no conteúdo — explica Karen.
O sucesso da Apolinário Porto Alegre influenciou outras escolas a adotarem o mesmo expediente. Segundo a vice-diretora, as instituições do município têm repetido o exemplo.
— A repercussão do que fizemos foi tão grande que já observamos outras (escolas) seguindo a mesma linha. Por isso eu indico que aí na Serra mais exemplos podem surgir. Eu indico — resume.
O que diz a lei
Assinada ainda em janeiro de 2008, a lei 12.884 proíbe a utilização de aparelhos de telefonia celular dentro das salas de aula, nos estabelecimentos de ensino do Estado do Rio Grande do Sul. Conforme o decreto que segue em vigor, os aparelhos deverão ser mantidos desligados enquanto as aulas estiverem sendo ministradas.