Os dirigentes da Cooperativa Vinícola Aurora, uma das maiores empresas de produção de uva do Brasil, asseguram que episódios de trabalhadores submetidos a condições análogas à escravidão (como o ocorrido no início de 2023) fazem parte do passado. Ao longo do ano, novos alojamentos foram construídos ou adaptados por 450 das 1,1 mil famílias de produtores cooperativados da empresa. Pelo menos outras nove providências foram tomadas para melhorar as condições dos safristas que colhem uva no verão. Entre elas, o aumento na mecanização do carregamento e descarregamento das frutas (que já atinge 78% dos associados) e a implementação de regras rígidas para boas práticas, relações com os colaboradores e cuidados ambientais.
— Fomos pegos de surpresa pelas más condições daquele alojamento terceirizado, em fevereiro. Esse episódio triste nunca mais vai acontecer — assegura o presidente da Aurora, Renê Tonello.
Tonello apresentou um balanço das novas práticas introduzidas na Aurora esta semana, em Bento Gonçalves. Jornalistas visitaram propriedades de associados onde foram construídos alojamentos com quartos amplos, arejados e sala de lazer, destinados a melhorar as condições de repouso dos safristas. A colheita da uva mobiliza 40 mil pessoas na Serra a cada verão. Só na Aurora são 1,1 mil famílias associadas e cada uma delas utiliza, em média, quatro safristas, que trabalham menos de um mês.
A remuneração do safrista gira em torno de R$ 150 por dia. A jornada de trabalho é de 10 horas diárias e, via de regra, sob calor intenso. O problema é quando as condições são ruins, como o constatado em fevereiro deste ano. Na ocasião, 207 safristas da uva (em sua maioria, baianos) que atuavam para três vinícolas gaúchas em Bento Gonçalves (entre elas, a Aurora) foram resgatados por policiais e fiscais de uma pensão onde eram mantidos em condições análogas à escravidão.
Foi para superar esse trauma na Serra que dirigentes da Aurora começaram já em abril a tomar uma série de providências. Confira as principais:
- Mecanização: nos próximos três anos, deve ser mecanizado todo o carregamento e descarregamento dos 70 milhões de quilos de uvas colhidos pela Aurora. As frutas serão colhidas por safristas no pé e colocadas em grandes caixas (os bins) com capacidade para 500 quilos, transportadas por empilhadeiras, ainda no parreiral. Hoje, 78% dos cooperados já usam esse sistema. Até pouco tempo atrás as caixas eram de 20 quilos e carregadas manualmente. “A mecanização não elimina o trabalho dos safristas, mas facilita bastante”, resume o presidente da cooperativa Aurora, Renê Tonello.
- Financiamento da automação: para incentivar a substituição do descarrego manual pelo mecânico, a Aurora busca financiamento de equipamentos para os associados. Os juros são similares aos do Pronaf, em torno de 5% ao ano com prazos de pagamento que chegam a 36 meses. Cada bin custa em torno R$ 1,3 mil e a torre (carrinho) acoplado ao trator, R$ 30 mil (cada um serve para uma propriedade inteira e dura décadas, calcula Tonello). Na própria sede da empresa, a adoção de bins retirou um terço do esforço necessário para descarregar uvas, relata.
- Boas Práticas Agrícolas (BPG): foram feitas orientações, capacitações e inspeções nas propriedades dos 1,1 mil associados, distribuídos em 11 municípios serranos. Todos estão orientados a adotar boas práticas recomendadas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). Foram contratados escritórios especializados no assunto, ressalta Felipe Bremm, responsável pela rubrica “Boas Práticas” na Aurora.
- Carteira de Trabalho para safristas: todos os safristas terão carteira de trabalho assinada, ainda que na modalidade de serviço intermitente (temporário). Nem sempre foi assim, admitem os cooperativados, até porque muitos trabalhadores não gostam de ter descontados os benefícios sociais no salário. O pagamento é proporcional aos dias trabalhados.
- Escritórios de assessoria contábil: a Aurora tem indicado aos cooperativados escritórios que providenciam os trâmites burocráticos para contratação dos safristas. Isso evita complicações previdenciárias e trabalhistas.
- Alojamento na área rural: a Aurora garante que os safristas vindos de fora da Serra ficarão hospedados nas propriedades rurais. Para isso estão sendo construídos ou adaptados 450 alojamentos em toda a região. Banheiros químicos também estão sendo colocados em alguns pontos das lavouras. A tentativa é evitar que os trabalhadores sejam amontoados em pousadas insalubres, como o constatado no início deste ano pelos fiscais do Ministério do Trabalho. Já safristas da região ficarão em suas próprias casas ou em alugadas.
- Compliance (programa de adequação a leis e regras): consultoria da Escola de Negócios da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) realiza um diagnóstico das relações entre associados e terceirizados. Ideia é melhorar as relações.
- ESG ( práticas ambientais, sociais e de governança ): um escritório de advocacia articula programas de governança social e meio ambiente, para melhoria de cuidados nas propriedades. A cooperativa conseguiu Certificado de Energia Renovável pelo fato de poupar do corte 5,9 mil árvores, em 2022. Os agricultores são estimulados a plantar vinhedos que possam interagir com as matas, sem devastação.
- Educa Aurora: promoção de educação cooperativista, profissionalização de gestão e formação de novas lideranças entre os associados.
- Aprendiz Cooperativo: profissionalização de pequenas propriedades, com preparo de filhos dos associados para continuidade na vitivinicultura.
Família cooperativada gastou R$ 50 mil em adaptações
O agricultor Nei Gabbardo, de Bento Gonçalves, é associado da Aurora desde 1964. Foi com surpresa que viu a imagem da empresa ser relacionada com trabalho escravo, no início deste ano. Afinal, ele também trabalha com safristas, para a colheita da uva nos seus cinco hectares de parreirais encarapitados em morros, numa propriedade de 14 hectares. Plantam ali uvas Niágara, Isabel, Seibel e algumas de vinhos finos, como Merlot e Cabernet. Os contratados, em média seis, vêm da fronteira com a Argentina e, garante Gabbardo, almoçam e jantam com ele e sua família.
Mesmo assim, Gabbardo resolveu se precaver. Aconselhado pelo executivo Felipe Bremm, da Aurora, o agricultor e seus filhos investiram R$ 50 mil na construção de um alojamento. É praticamente uma casa de alvenaria, cheia de quartos, bem arejada, com banheiro amplo e que terá bom espaçamento entre as camas.
— Será usado apenas por uns 20 dias no ano, durante a safra. Mas pelo menos os safristas não terão motivo de queixas — pondera Gabbardo.
Maus-tratos e precariedade no início do ano
Em 22 de fevereiro, 207 safristas da uva foram resgatados por policiais e fiscais do trabalho em Bento Gonçalves. Desse total, a maior parte (80) trabalhava, contratada de forma terceirizada, em descarga de caminhões com uvas para a Aurora. Os demais atuavam para as vinícolas Garibaldi, Salton e para produtores de uva independentes (nesse último caso, na colheita). A Garibaldi e a Salton prometeram, entre outras providências, aprimorar a política de serviços terceirizados, aperfeiçoar a seleção de prestadores de serviço e implantar auditorias sistêmicas nesses prestadores, com ampliação de canais de denúncias.
Os baianos haviam sido contratados por uma empresa que terceiriza mão-de-obra para o setor vinícola, a Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde Ltda, gerenciada também por um baiano, Pedro Santana. Os safristas relataram não ter recebido o salário prometido, que cumpriam jornadas de trabalho de até 12 horas diárias, que estavam endividados por força da compra de materiais de higiene e alimentos adquiridos num mercado indicado pela própria empresa e que sequer tinham água para tomar na lavoura. Em relação à pousada alugada por Santana para recebê-los, estavam submetidos a uma rotina de comida ruim e banho frio. Alguns ainda asseguraram terem sido agredidos por guardas e impedidos de deixar o trabalho.
O episódio gerou cancelamento dos contratos e indenizações trabalhistas para os safristas e multas por parte do Ministério Público do Trabalho (MPT). O delegado regional do Ministério do Trabalho na Serra, Vanius Corte, confirma que além dos acordos trabalhistas, vários safristas ingressaram com ações individuais de indenização contra as vinícolas e a Fênix. Um inquérito criminal com foco em possível trabalho escravo tramita na Polícia Federal. Ele não foi concluído, segundo o delegado responsável, Adriano Medeiros do Amaral, porque falta a finalização de algumas perícias em equipamentos apreendidos (como câmeras de segurança).