As investigações sobre o caso dos 207 trabalhadores resgatados de condições análogas à escravidão em Bento Gonçalves continuam. O grupo foi encontrado em operação da Polícia Federal (PF), da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) em 22 de fevereiro. Desde então, os órgãos apuram quem são os responsáveis e tomam medidas para que esta situação não volte a ocorrer. Ao mesmo tempo, as autoridades investigam os novos elementos que surgem no caso, como um suposto envolvimento de policiais militares do município em encobrir denúncias e novas vítimas que dizem ter fugido do tipo de condições as quais eram submetidas.
O desdobramento mais recente é o indiciamento do vereador caxiense Sandro Fantinel pela Polícia Civil por crime de racismo, na última segunda-feira (13).
Confira quais são os próximos passos em cada esfera de investigação:
Ministério do Trabalho e Emprego (MTE):
Os 207 trabalhadores resgatados receberam rescisões e salários. O MTE continua com fiscalização para determinar quais infrações foram cometidas e se novos relatos que surgiram após a operação do dia 22 são de trabalhadores que também foram submetidos a situação análoga à escravidão. Após a operação, mais homens se apresentaram como trabalhadores que estavam no grupo de Bento Gonçalves, mas que fugiram antes da operação — é o caso de 14 homens que já estão na Bahia e dois que foram acolhidos em Passo Fundo. Como explica o gerente regional do MTE, Vanius Corte, o órgão segue com fiscalizações na Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde Ltda, empresa responsável pelas contratações, e em outras empresas de Pedro Augusto Oliveira de Santana, dono da Fênix, para apurar infrações que podem ter sido cometidas. Neste trabalho, o MTE também esclarecerá a situação das supostas vítimas que estão surgindo.
Após a fiscalização do MTE, os autos de infrações são enviados para a empresa, que tem 10 dias para apresentar uma defesa. O caso é encaminhado à sede do MTE, em Porto Alegre, para decisão final sobre as infrações.
Ministério Público do Trabalho (MPT)
- Bento Gonçalves: o MPT aguarda que a fiscalização do MTE seja encerrada, com os depoimentos destes outros trabalhadores que surgiram. Será a fiscalização que analisará o possível enquadramento de trabalho análogo à escravidão e pode emitir os respectivos autos de infrações e resgate. Caso isso aconteça, como explica o órgão, o Termo de Ajuste de Conduta (TAC) fechado pelo MPT com as vinícolas que contrataram a mão de obra dos trabalhadores resgatados abrange possíveis novas vítimas. As vinícolas Aurora, Salton e Cooperativa Garibaldi pagarão R$ 7 milhões para o órgão, sendo R$ 2 milhões para indenização dos trabalhadores. Ao mesmo tempo, após negativa de acordo por parte da Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde Ltda, que contratou os 207 trabalhadores, o MPT moveu ação judicial contra a empresa, que segue tramitação em busca de indenização coletiva.
- Sandro Fantinel: o Ministério Público do Trabalho (MPT) instaurou uma investigação no início de março porque considerou as falas do vereador caxiense xenofóbicas, além do órgão ter considerado que o parlamentar culpou os trabalhadores pela situação. A investigação continua no órgão.
Polícia Federal (PF)
- Bento Gonçalves: pelo trabalho análogo à escravidão ser um crime federal, a PF assumiu a investigação sobre as circunstâncias da contratação dos 207 trabalhadores resgatados e também das condições em que viviam. De acordo com a assessoria de imprensa da PF, o inquérito para apurar estas questões foi aberto, mas a instituição não comenta o andamento das investigações. Ainda como explica a assessoria, assim que o inquérito for concluído, ele é encaminhado ao Poder Judiciário, que o encaminha para uma manifestação do Ministério Público (MP).
Corregedoria-geral da Brigada Militar
- Bento Gonçalves: instaurou inquérito policial militar (IPM) para apurar suposto envolvimento de policiais para encobrir e agredir trabalhadores. A BM afastou Márcio Squarcieri, 39 anos, do patrulhamento nas ruas. Ele foi colocado em serviço interno. O soldado 3º Batalhão de Policiamento de Áreas Turísticas (3º BPAT), de Bento Gonçalves, é investigado por tortura e por, supostamente, atuar como segurança privado para a pousada e para a empresa que contratou os safristas. Outros policiais são investigados. Eles seriam chamados por Squarcieiri para reprimir safristas, quando achava necessário. Outro ponto da apuração é se o empresário Pedro Augusto de Oliveira Santana, dono da empresa responsável pelas contratações, teria aliciado policiais. A defesa de Squarcieri, representada pelo advogado Maurício Custódio, considera o afastamento um "pré-julgamento" do PM, que inclusive tem condecorações na ficha funcional. Custódio ressalta que não teve acesso aos autos, sequer aos depoimentos dos safristas que acusam seu cliente de tortura. A investigação corre em sigilo. Não foi informado prazo para conclusão. Quando for concluído, inquérito é enviado à Justiça Militar e ao Ministério Público (MP), que pode ou não oferecer denúncia.
Polícia Civil
- Sandro Fantinel: na segunda-feira (13), a Polícia Civil anunciou que decidiu indiciar o vereador Sandro Fantinel pelo crime de racismo, pelas declarações do dia 28 de fevereiro, na Câmara Municipal de Caxias do Sul. O inquérito foi enviado ao Ministério Público (MP), que define se denuncia ou não o parlamentar.
Ministério Público (MP) e Ministério Público Federal (MPF)
- Sandro Fantinel: além de receber a denúncia da Polícia Civil, o MP recebeu todos os documentos protocolados contra o vereador, como o pedido de prisão feito pelo PSOL-RS, e do senador Humberto Costa (PT-PE) que abriu uma representação para apurar crime de racismo e pede danos morais coletivos. No último dia 6, o MP de Caxias moveu uma ação civil pública contra o parlamentar, pedindo que ele seja condenado a pagar R$ 300 mil por danos morais coletivos. Já em 3 de março, o Ministério Público Federal protocolou um pedido de indenização contra Fantinel, no valor de R$ 250 mil. As ações ainda aguardam decisão.
Relembre o caso
O caso dos trabalhadores em situação análoga à escravidão foi denunciado após seis homens conseguirem fugir do local onde eram mantidos e buscar contato com a Polícia Rodoviária Federal, que prestou auxílio e deu início à operação. Um dos denunciantes já havia gravado vídeo com um celular e publicado em uma rede social reclamando das condições de trabalho. Ele relata que foi agredido pelos supostos empregadores por isso. O homem contou à polícia que aproveitou quando os agressores foram atender uma ligação e pulou de uma janela, correndo até um mato próximo do local onde estava. Ele e mais dois trabalhadores, que estavam com ele, aguardaram até as 3h da quarta-feira (22) para sair e pedir ajuda.
Ainda na quarta, uma operação conjunta de PRF, Polícia Federal (PF) e MTE flagrou 180 homens no alojamento, em situação precária de hospedagem, higiene e alimentação. À equipe, trabalhadores relataram que sofriam violência verbal, física, ameaças de morte e eram alimentados com comida estragada. Após o primeiro flagrante, outros 27 homens foram resgatados, na quinta, e encaminhados ao ginásio.
O aliciador da mão de obra e administrador da empresa Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde Ltda, Pedro Augusto Oliveira de Santana, chegou a ser preso ainda na quarta, mas foi liberado no dia seguinte após pagar fiança de R$ 39.060. Natural de Valente (BA), o empresário está sendo investigado. Ele trabalharia na região, com prestação de serviço, há pelo menos 10 anos, conforme o MTE.
Os homens resgatados atuavam, principalmente, na colheita da uva, em propriedades rurais do município. As três vinícolas — Aurora, Cooperativa Garibaldi e Salton —, citadas pelos trabalhadores e que contrataram o serviço terceirizado da prestadora, afirmaram em notas não ter conhecimento da situação em que os homens eram expostos até a operação, e que irão colaborar com a investigação. As investigações seguem com o MTE, Ministério Público do Trabalho (MPT) e Polícia Federal (PF).
Além de vinícolas, 23 proprietários rurais contratavam serviços de trabalhadores resgatados em Bento. Os nomes dos 23 não foram divulgados. A investigação ainda aponta que os trabalhadores atuavam na carga e descarga da uva em vinícolas e na colheita da uva nas propriedades rurais.
O que dizem as vinícolas sobre o caso de trabalho análogo à escravidão
Por meio de assessorias de imprensa, as três empresas publicaram comunicados. As vinícolas Aurora e Salton divulgaram novo comunicado após firmar o TAC.
O que diz a Aurora
“A Vinícola Aurora segue atuando em diversas frentes para o restabelecimento dos direitos dos colaboradores terceirizados, vinculados à empresa Fênix, bem como na implementação das melhores práticas para gestão de terceiros e fornecedores. A assinatura do Termo de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público do Trabalho é mais um passo para assegurar o comprometimento da empresa com medidas permanentes de promoção de condições dignas e seguras no trabalho. À sociedade brasileira, a Aurora reafirma seu compromisso de aperfeiçoar cada vez mais os processos produtivos e mecanismos de fiscalização, garantindo aos trabalhadores, diretos e indiretos, uma jornada com segurança, salubridade, treinamento adequado e respeito."
O que diz a Salton
"A Vinícola Salton firmou, nesta quinta-feira (09/03), acordo com o Ministério Público do Trabalho para reparar danos causados a trabalhadores e à sociedade, em função de resgate ocorrido nas dependências da empresa Fênix Serviços Administrativos, flagrada mantendo trabalhadores em condições degradantes em um alojamento em Bento Gonçalves. A Salton contratou 14 trabalhadores desta prestadora de serviços para carga e descarga de caminhões de uva na safra 2023.
Os termos do acordo, assinado pelas vinícolas Salton, Aurora e Garibaldi, reforçam que as empresas concordaram voluntariamente com o pagamento, sob a forma de indenização, no valor de R$ 7 milhões, a ser rateado pelas empresas. Além de compor o fundo dos trabalhadores resgatados, o valor será revertido a entidades, projetos ou fundos que permitam a reparação dos danos sociais causados, a serem oportunamente indicados pelo Ministério Público do Trabalho.
A Salton ressalta que assinatura voluntária deste termo tem o intuito de reforçar publicamente seu compromisso com a responsabilidade social, boa-fé e valorização dos direitos humanos, bem como a integridade do setor vitivinícola gaúcho.
A Salton e as demais vinícolas construíram conjuntamente com o Ministério Público do Trabalho procedimentos para fortalecer a fiscalização de prestadores de serviços para evitar que episódios lastimáveis voltem a ocorrer. Além disso, o acordo prevê, também, ampliar boas práticas com relação à cadeia produtiva da uva junto aos seus produtores rurais.
Por fim, o acordo se encerra com a declaração de que sua celebração “não significa e não deve ser interpretada como assunção de culpa ou qualquer responsabilidade” por parte das vinícolas pelas irregularidades constatadas na empresa prestadora de serviços Fênix Serviços Administrativos.
A Salton reforça que cumprirá prontamente as determinações do acordo e reitera que atuará ainda em frentes adicionais já apresentadas em nota pública, tais como revisão de todos os processos de seleção e contratação de fornecedores, com implantação de critérios mais rigorosos e que coíbam qualquer tipo de violação aos dispositivos legais, incluindo direitos humanos e trabalhistas; contratação de auditoria independente externa para certificar as práticas de responsabilidade social; adesão ao Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, entre outros.
A empresa reitera que repudia, veementemente, qualquer ato de violação dos direitos humanos e expressa, também, seu repúdio a todas e quaisquer declarações que não promovem a pacificação social. A Salton a procura reafirmar com este acordo a sua não omissão diante deste doloroso fato, a sua demonstração genuína de amparo aos trabalhadores e à sociedade e o seu dever moral e legal em assumir uma postura mais diligente em relação aos seus prestadores de serviços.
Família Salton"
O que disse a Cooperativa Garibaldi
"A Cooperativa Vinícola Garibaldi, por meio da assinatura do Termo de Ajustamento de Conduta proposto pelo Ministério Público do Trabalho, ocorrida nesta quinta-feira, 9 de março, reafirma seu compromisso, perante a sociedade brasileira e a cadeia vitivinícola, de atuar de forma efetiva no cumprimento e na exigência de práticas que respeitem os direitos humanos e trabalhistas.
Além de reforçar o repúdio ao episódio e a solidariedade para com as vítimas, a adesão ao documento é uma demonstração da nossa responsabilidade social e um movimento concreto para garantir que essa situação seja resolvida da melhor forma e, principalmente, jamais se repita.
Ressaltamos que já foram adotadas práticas internas anunciadas no início desta semana, que incluem o aprimoramento da política de contratação de serviços terceirizados em questões de integridade (compliance) e alterações no processo de seleção de prestadores de serviço, com auditorias sistêmicas na execução dos trabalhos. Também está em andamento a inclusão de cláusulas contratuais em respeito à Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Nossa trajetória é de muito trabalho e dedicação, construída por gerações de pequenos produtores, e seguiremos comprometidos com as melhores práticas, respeitando nossos compromissos com a sociedade."
O que diz a Fênix
NOTA DE ESCLARECIMENTO
Bento Gonçalves, 2 de março de 2023.
A Empresa FÊNIX SERVIÇOS DE APOIO ADMINISTRATIVOS* vem, por meio desta, se expressar em virtude dos fatos divulgados pelas mídias, ocorridos nos últimos dias, envolvendo a sua idoneidade, seriedade, respeito pelos seus colaboradores e 10 anos de trabalho sério.
Primeiramente, assim como toda a população, estamos consternados com os acontecimentos, já que somos uma empresa que sempre se posicionou em garantir, a qualquer trabalhador, seja de qualquer lugar do País, todos os direitos preceituados na legislação vigente, reconhecendo e protegendo a dignidade de todos os seus colaboradores através do respeito, seriedade e cumprimento, de forma rigorosa, dos ditames da lei.
Nesse sentido, após os relatos da mídia, estamos averiguando os acontecimentos e apurando qualquer suposta irregularidade a partir dos relatos dos colaboradores, e tomaremos todas as medidas cabíveis que nos competem, pois sabemos e cumprimos à risca todas as nossas responsabilidades como Empresa.
Oportuno salientar que não aceitamos qualquer tipo de trabalho ilegal, o qual não acata o preceito central da Constituição Federal, qual seja, a Dignidade da Pessoa Humana.
Esclarecemos, também, que já enviamos todos os documentos solicitados pelos Ministérios Público do Trabalho e do Trabalho e Emprego, com quem mantemos aberto canal de conversação, assim como outras instituições que quiseram comprovar que não há irregularidades na nossa Empresa, e continuamos sempre abertos para ajudar a sanar qualquer dúvida que eventualmente apareça.
Reafirmamos o nosso compromisso em esclarecer os fatos, e agradecemos aquelas instituições que, antes de qualquer divulgação, se disponibilizaram a nos ouvir, assegurando, desta forma, a garantia constitucional do contraditório e a ampla defesa.
Estamos sempre à disposição para quaisquer esclarecimentos adicionais.
Fênix Serviços de Apoio Administrativos
*No CNPJ da empresa, consta que o nome completo é Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde Ltda