Mais de 8 mil famílias estão inscritas no Cadastro Único de Caxias do Sul na linha da extrema pobreza. Isso significa que 19.379 pessoas contam com até R$ 109 para passar o mês, o que, na prática, é sobreviver com pouco mais de R$ 3 por dia. Mesmo que esses números sejam altos, há redução nesta faixa em relação ao mesmo período de 2022, quando eram 10.859 famílias nessa condição, conforme levantamento de junho da Fundação de Assistência Social (FAS). Além disso, na linha da pobreza constam mais 3.972 famílias (11.322 pessoas), que sobrevivem com uma renda bruta per capita entre R$ 109,01 e R$ 218 por mês.
Essa é a realidade de caxienses como Leontina Polli da Silva, 60 anos. Ela mora em uma casa simples de madeira na Rua Walter Carlos Afonso, no bairro Montes Claros. Natural de Bom Jesus, Leontina está no mesmo endereço há 25 anos. Mãe de oito filhos e beneficiária do programa Bolsa Família, ela já encarou dias difíceis. Uma das lembranças mais marcantes é de quando os filhos menores precisavam de leite:
— Acessei o programa quando meus filhos eram pequenos e me separei do pai deles. Já passei por muitas situações em que tive que pedir ajuda. Quando a minha mãe era viva, ela sempre nos ajudava, mas eu me preocupava mesmo se faltasse leite para eles quando eram pequeninhos. Isso me angustiava.
Para complementar a renda e conseguir se manter ela improvisa:
— Hoje eu cato latinhas e faço faxina para conseguir me virar — conta ela, enquanto prepara a sacola para sair às ruas e recolher o material reciclável.
"Eu luto porque passo fome, mas meus filhos não vão passar fome nunca mais", afirma beneficiária do programa
Do outro lado da cidade, em um dos blocos do conjunto habitacional Campos da Serra, Kelly Tatiane Ribeiro, 38, mora com os filhos Guilherme, 14, Stefanie, 12, Dalesandro, 11, e Moisés, quatro. Divorciada, Kelly também é beneficiária do Bolsa Família e, para complementar a renda e sustentar a casa, assim como Leontina, recolhe material reciclável para vender. Ela lembra, emocionada, dos momentos em que os armários e a geladeira estiveram vazios.
Teve dias que eu não tinha nem pão para comer e dar de comer a eles. Que eu abria a geladeira e não tinha nada
KELLY TATIANE RIBEIRO
Beneficiária do Bolsa Família
As crianças de 11 e 12 anos frequentam o Centro de Convivência Irmão Sol, localizado ao lado da igreja do Campos da Serra, durante a manhã. O espaço funciona em parceria com a Fundação de Assistência Social (FAS) e o programa Mão Amiga. É nesse projeto que Kelly encontra amparo para seguir os dias. Lá, ela recebe cestas básicas, vale-gás e vianda para que não falte alimentação em casa.
Ela se separou do marido há cerca de quatro anos, quando o filho caçula ainda era um bebê de seis meses. Nesse difícil período, ela também era ajudada pelas professoras da escola em que os filhos estudam. Kelly ainda está na fila de espera por uma vaga na Educação Infantil para Moisés. Quando consegue ajuda para cuidar dele, costuma fazer faxinas nos apartamentos de vizinhos para incrementar a renda mensal.
— Se não fosse o projeto eu não sei o que seria da minha vida. É difícil, porque eu sou mãe solteira. Eu sofri muito, mas eu luto porque eu passo fome, mas meus filhos não vão passar fome nunca mais. Os dias ainda são pesados, mas, hoje, graças a Deus, estamos dando a volta — relata.
Projetos sociais
O filho mais velho de Kelly, Guilherme, também passou a integrar o programa Jovem Aprendiz, dentro do projeto social do Irmão Sol, desde fevereiro deste ano. Antes disso, o adolescente frequentava o centro no turno inverso ao da escola. Fernanda Osório Borges atua na coordenação do Centro, que atende cerca de 80 crianças, há três anos.
— Nosso projeto significa vida para eles. Eles nos enxergam como uma garantia de diretos e de alimento. Trabalhamos como um braço do Restaurante Popular e distribuímos almoços todos os dias. Conseguimos minimamente matar a fome de quem tem fome todos os dias — destaca.
Ela acrescenta que acompanha de perto a rotina das famílias para auxiliar em diversos aspectos:
— Conseguimos auxiliar para que as crianças se mantenham na escola e, com o tempo, sejam inseridas em cursos profissionalizantes e no mercado de trabalho.
Leontina também recorre aos projetos sociais quando precisa de ajuda para comprar o botijão de gás ou para auxiliar com a cesta básica. A Casa do Adolescente Associação Mão Amiga atua no bairro Montes Claros há 18 anos. A coordenadora Irineida Maran lembra que a família de Leontina foi uma das primeiras a ter os filhos frequentando a casa, sendo que a filha dela foi a primeira a ser encaminhada a um curso, quando completou 15 anos.
— Ela tem toda uma trajetória com a casa e sempre que tem necessidade recorre ao projeto. Ou até mesmo apenas para ouvirmos ela. Atendemos as famílias, cuidamos delas, fazemos reunião de pais, atendimento, orientação e visita domiciliar para ajudar a todos — salienta a coordenadora.
O espaço atende 120 crianças e adolescentes dos seis aos 15 anos no turno inverso da escola. O centro também atua em parceria com a FAS. O quadro de funcionários é formado por nove profissionais. Entre eles, uma assistente social, uma psicóloga, quatro educadores sociais, uma auxiliar geral e uma cozinheira, além da coordenadora. No espaço, crianças e adolescentes realizam diversas atividades, como artes plásticas, esporte, lazer, cultura, informática e expressão corporal.
— Eles fazem as refeições aqui. São quatro ao dia. Os que vem pela manhã tomam café, fazem atividades, almoçam e vão para casa e para a escola. Da tarde, eles almoçam, fazem atividades, ganham a pré-janta e, no final do dia, vão para casa. A gente busca resgatar os valores, o afeto, o cuidado com a vida, já que são crianças vulneráveis. Muitas famílias trabalham e ganham pouco.
Cenário ainda sente reflexos da pandemia
No total, cerca de 20% da população de Caxias do Sul está inscrita na base de dados do Cadastro Único — 85.363 pessoas (35.349 famílias), o que inclui a faixa da pobreza e da exrema pobreza (citado no início desta reportagem).
Destes núcleos familiares, 13.304 são beneficiários do Bolsa Família do governo federal. O diretor de Gestão de Benefícios Assistenciais e Transferência de Renda da FAS, Rafael Canela Zucco, explica que o número total de inscritos está relacionado ao número de famílias que em algum momento realizaram o Cadastro Único para receber algum benefício. Ele não reflete necessariamente a realidade de que todas as famílias cadastradas recebam hoje algum benefício.
O diretor lembra que a pandemia, por exemplo, intensificou a desigualdade social e a fome foi uma realidade ainda mais cruel para muitas famílias caxienses. Ele afirma que hoje, para entender os números, é preciso analisar o cenário. Zucco aponta que, em 2021, eram 9.419 famílias na linha da extrema pobreza e 3.110 na linha da pobreza. No mesmo período, em 2020, no primeiro ano da pandemia, eram 7.786 em extrema pobreza e 2.863 em pobreza. Antes disso, em 2019, o número de famílias em extrema pobreza era de 6.601 e os inscritos na faixa de pobreza chegavam a 3.203:
— Na pandemia o número deu um salto de 25 mil para 35 mil famílias. As pessoas tinham empregos informais. Então, teve uma mudança no perfil dos beneficiários nesse período — ressalta ele
Zucco ressalta que hoje se paga, no mínimo, R$ 600 ao beneficiário do Bolsa Família, sendo que nem todas as pessoas se enquadram no perfil na linha da pobreza e extrema pobreza. Há benefícios voltados para as faixas 3 e 4, que dependem de cada caso e de cada estrutura familiar. Com a chamada Ação de Qualificação do Cadastro Único de 2023 que, segundo o governo federal, pretende minimizar erros e direcionar da melhor forma a aplicação dos recursos na área social, os números devem mostrar um cenário mais próximo da realidade:
— O governo está trazendo novas ferramentas e funcionalidades para o cadastro. Uma delas é a inserção de dados de renda, que contribui automaticamente com a mudança de perfil. Então, as famílias que, em maio de 2023, estavam em situação de extrema pobreza ou pobreza, hoje migraram desse cenário.
Revisão dos dados
Professor da Universidade de Caxias do Sul (UCS), o cientista político João Ignácio Pires Lucas afirma que, desde a implantação do programa em Caxias do Sul, houve um crescimento até chegar nas cerca de 9 mil famílias que recebiam o Bolsa Família em 2010.
— Naquele ano, atingimos um teto. Em 2012 havia uma queda significativa, de praticamente 30%. Depois disso, veio uma oscilação. Com a pandemia, houve uma alteração significativa porque o auxílio emergencial tinha outra forma de concessão e não dependia dessas avaliações técnicas, o que ampliou bastante o número de usuários.
Hoje, ele explica que o país vive uma transição nos programas para que se retome as formas de cadastramento e avaliação, com maior controle no acesso aos programas para garantir que pessoas que realmente precisam tenham acesso. O especialista analisa que, após a pandemia, o cenário é de retomada e reaquecimento, especialmente nas atividades relacionadas à economia informal, que foi muito prejudicada:
— Pode ter ajuste nos cadastros para realmente ver quais as pessoas estão nessas linhas da pobreza e extrema pobreza. Os dados podem sofrer alterações e podemos ter a retirada de muitas dessas famílias. Temos que cuidar essas oscilações.
Os conceitos:
Pobreza: pessoas com renda bruta per capita entre R$ 109,01 e R$ 218 por mês. Em Caxias, são 11.322 pessoas.
Extrema pobreza: pessoas que recebem até R$ 109 para passar o mês. Em Caxias, são 19.379.
COMPARE
Número de famílias que estão inseridas no Cadastro Único de Caxias vem crescendo nos últimos anos. A maioria recebe algum tipo de benefício social. Os dados abaixo incluem pessoas na pobreza, na extrema pobreza e outras faixas de renda
Junho de 2015
:: Total: 21 mil famílias
Junho de 2016
:: Total: 21.073 famílias
Junho de 2017
:: Total: 22.881 famílias
Junho de 2018
:: Total: 22.944 famílias
Junho de 2019
:: Total: 23.130 famílias
Junho de 2020
:: Total: 24.130 famílias
Junho de 2021
:: Total: 27.393 famílias
Junho de 2022
:: Total: 32.104 famílias
Junho de 2023
:: Total: 35.349 famílias
*Dados se referem ao mês de junho de cada ano