Eles guardam relatos comoventes na memória. Não são raras as vezes que tiram do próprio bolso para ajudar a quem precisa. Tentam diminuir a escassez, o frio e a vulnerabilidade social de crianças e adultos. Ocupam o tempo livre para tornar a vida de outras pessoas melhores. Todas estas frases e definições podem ser atribuídas aos voluntários que atuam no combate à fome em Caxias do Sul.
Não existe uma contagem oficial de quantos estão dispostos a fazer o bem no município. Mas eles estão espalhados por aí, criando redes de solidariedade sólidas, que transformam a vida de famílias pobres há muitos anos. Montam cestas básicas, entregam marmitas, recebem e doam roupas, distribuem kits escolares e fazem festas em datas comemorativas. Tudo isso, é claro, com a ajuda de muitas outras pessoas, que se sensibilizam diariamente com a causa e doam recursos para que tudo possa funcionar.
Os voluntários dizem que não conseguem fechar os olhos para os pedidos de ajuda. E não é para menos: a vulnerabilidade social é crescente. Os dados mais recentes da Fundação de Assistência Social (FAS), de fevereiro, revelam que há, pelo menos, 11.650 famílias com renda per capita mensal de até R$ 105, ou seja, em situação de extrema pobreza. No mesmo mês de 2020, eram 7.232 núcleos familiares nesta condição, o que representa um crescimento de 61% no período.
Para o diretor de Gestão de Benefícios Assistenciais e Transferência de Renda da FAS, Rafael Canela Zucco, o crescimento no número de pessoas que vivem com R$ 3,50 por dia está atrelado aos reflexos da pandemia e também à chegada constante de imigrantes no último ano.
— Observamos muito no ápice da pandemia, de 2020 até meados de 2022, o aumento do desemprego. A retomada do emprego acaba sendo mais gradual, não se consegue recuperar rapidamente uma posição que se tinha antes ou alguns, talvez, não consigam recuperar determinado posto ou atividade. Outra questão é o aumento de pessoas de fora do país, principalmente venezuelanos, que vêm em busca de trabalho e, às vezes, acabam não encontrando (sofrem impacto na renda e buscam os benefícios do governo por meio do Cadastro Único) — explica Zucco.
O caxiense Ricardo Mattos, 46 anos, é um dos exemplos de quem busca diminuir as necessidades de quem precisa. Ele fundou e preside o Instituto Amar ao Próximo, criado há cerca de sete anos, com o objetivo de atender pessoas em vulnerabilidade social. Ricardo o grupo de 50 voluntários não atendem a uma região específica da cidade, promovendo ações onde percebem que há demanda.
Uma das iniciativas mais fortes é a distribuição de marmitas. Mensalmente, são entregues cerca de 700 refeições prontas, que incluem massa com molho, arroz e feijão, "bem reforçados", como gosta de pontuar o presidente da entidade.
— Em cada ação da marmita comunitária, determinamos uma comunidade. Não temos um bairro fixo, procuramos ir em lugares que o Instituto não tenha ido ainda. E sempre fazemos a entrega com o intermédio e organização de alguém da comunidade, que geralmente é o presidente do bairro — detalha Mattos.
O voluntário conta que percebe o crescimento da fome:
— Não vencemos distribuir refeição. É muita gente solicitando e são pessoas que precisam mesmo, que tem a necessidade — frisa Ricardo.
Além das marmitas, o grupo do Amar ao Próximo distribui cestas básicas, entrega materiais escolares no projeto Mochila Solidária, realiza ações na Páscoa, Dia das Crianças e Natal, entre outras mobilizações ao longo do ano, junto a pessoas em situação de rua e comunidades pobres de Caxias do Sul.
Tia Mirna é referência de solidariedade no Villa-Lobos
A ideia inicial da técnica em enfermagem e assistente social Mirna Rosmari de Morais, 56, era de comprar uma casa no bairro Villa-Lobos e transformá-la em um espaço para reforço escolar. Mas, ao chegar ao local, ela percebeu que as necessidades da comunidade eram bem maiores do que atender alunos fora do horário escolar. Assim, iniciou-se uma trajetória no voluntariado que já dura 12 anos, que alimenta, veste e traz alegria e dignidade para crianças e adultos não só do Villa-Lobos, como de outras partes de Caxias.
Paulista, Mirna se estabeleceu há 30 anos em Caxias. No começo, ela morava no Centro e fazia regularmente as ações sociais na casa. Este formato, contudo, durou pouco tempo e Mirna logo se mudou de forma definitiva para o bairro. Na comunidade — e também fora dela — , ela virou a Tia Mirna, referência para quem precisa de um prato de comida, uma peça de roupa ou simplesmente uma conversa ou acesso à internet.
— É quase como uma casa de apoio. Aqui, conseguimos material para a escola; roupas, que são um sucesso total, todo mundo se veste com as coisas daqui; brinquedos para as crianças; os adolescentes que precisam podem vir e usar o wi-fi... Aqui acontece tudo o tempo todo — brinca Mirna, que trabalha à noite e conduz as atividades sociais durante o dia.
Além da doação de roupas e calçados, outra ação que faz sucesso no bairro são as marmitas, produzidas geralmente aos sábados. Com doações e ajudas de voluntários no comando das panelas, Mirna entrega dezenas de refeições todos os meses. Ela sente que realmente criou uma rede de solidariedade que não existia na região.
— Eu não faço nada sem ajuda. Por exemplo, eu ganho a comida (apontando para onde voluntários faziam cachorro-quente no último dia 11 de março), mas alguém tem que me ajudar a fazer e distribuir — comenta a voluntária.
A solidariedade da Tia Mirna não tem limites geográficos. Quem sabe bem disso é a venezuelana, moradora do bairro Charqueadas, Maria Fernanda Garcia, 29. Mãe de três crianças, ela se mudou há sete meses para Caxias com o marido e conta que soube do trabalho social desenvolvido por Mirna por meio de um grupo de doações no WhatsApp.
— Esse trabalho é maravilhoso. É a terceira vez que venho (no dia 11 de março). Quando não temos alguma coisa, indicamos e ela procura o que a gente precisa. É bom demais e ainda ajuda outras pessoas indiretamente. Na última vez que vim, consegui pegar roupas e distribuir para oito famílias de venezuelanos — contou Maria Fernanda, após selecionar peças de roupa para a família e almoçar o cachorro-quente feito pelos voluntários.
"Somos elos de uma corrente abençoada"
A vontade de ajudar o próximo acompanha a caxiense Silvia Adriana Andreatta, 51, há muitos anos. Com um grupo de cinco amigas, ela começou a distribuir sopa para pessoas em situação de rua do município por volta de 2005. A iniciativa, entretanto, não teve a mobilização suficiente e Silvia acabou, no ano seguinte, tocando as ações sozinha.
— Puxei a "carreira solo" por 17 anos, parei no começo do ano passado. Nunca tive grupos, era eu e minha família. Mas quem ia para as ruas era somente eu. Colocava 50, 60 sopas no carro e ia. Me aposentei o ano passado dessa função — conta a voluntária.
A chamada Sopa Solidária da Siu ganhou uma página nas redes sociais e o trabalho voluntário, inicialmente focado nas ruas, ganhou novos rumos. Silvia começou a receber pedidos de alimentos, remédios, fraldas, entre outras necessidades de famílias em vulnerabilidade social de Caxias do Sul. Na página, então, ela passou a postar as solicitações, a fim de tocar o coração de outras pessoas e conseguir atender a todos.
— Virou um veículo de intermédio entre o doador e quem precisa. Digo que nós somos elos de uma corrente abençoada, porque se eu lanço no meu Face que preciso de uma caixa de leite, sempre aparece um anjo para me ajudar — aponta.
Em tantos anos envolvida com o voluntariado, Silvia conhece bem a realidade de quem lida com a fome. Por isso, não é raro transformar uma cesta básica em três ou pedir por doações diretamente em mercadinhos de bairro. É necessário perder a vergonha para atender a demanda cada vez mais crescente:
— Os pedidos aumentaram muito depois da pandemia e não diminuíram mais. São famílias, a maioria com crianças, e isso toca muito a gente. As crianças são meu fraco, porque elas não entendem a fome. É nelas que eu penso — confidencia Silvia.
Além de tentar sanar a fome de quem a procura, a voluntária busca melhorar a vida das famílias em outros aspectos. Assim, ela promove também ações em datas comemorativas, como o Natal, a Páscoa e o Dia das Crianças. Na volta às aulas deste ano, ela ainda conseguiu arrecadar, montar e distribuir 200 kits com materiais escolares para crianças e adolescentes do município.
— Não tem como parar. Já pensei 'não vou mais ajudar ninguém, chega', mas dois minutos depois, o bendito celular toca e eu vou. Quando Deus te escolhe para a missão, não dá. Você até tenta, mas não consegue — revela Silvia.
O trabalho de voluntariado de Silvia pode ser conferido no perfil pessoal dela no Facebook ou na página "Sopa Solidária da Siu Ajuda ao Próximo", na mesma rede social. Ajudas também podem ser combinadas pelo telefone (54) 99105-7068.