A pandemia trouxe consequências nas esferas de saúde pública, econômica e, principalmente, na rotina e renda de milhares de caxienses. A crise escancara a vulnerabilidade social e acende alerta para as autoridades: o número de famílias em extrema pobreza em Caxias do Sul aumentou 25,5% em pouco mais de um ano de pandemia, segundo levantamento junto à Fundação de Assistência Social (FAS). A quantidade de pessoas nesta condição é a maior desde 2015 — veja mais abaixo.
Em março de 2020, o município tinha 7.349 famílias com renda per capita mensal de até R$ 89. Em abril deste ano, esse número saltou para 9.223 — um acréscimo de 25,5%, com tendência de aumentar ainda mais. Se o comparativo de pessoas em situação de vulnerabilidade social levar em consideração o mês de março de 2019, quando sequer pensava-se em pandemia e todos os danos provocados pela crise econômica e sanitária, o dado é ainda mais chocante: o número de famílias em extrema pobreza cresceu 44% em dois anos.
— Se observarmos os dados de dezembro de 2019 (com 7.170 famílias em extrema pobreza e 2.919 em situação de pobreza) como base de um período antes pandemia, é nítido o expressivo aumento do número de famílias em pobreza e extrema pobreza — resume a presidente da FAS, Katiane Boschetti da Silveira.
Em anos anteriores, conforme revelam os dados abaixo, o maior aumento de famílias em situação de extrema pobreza foi registrado entre 2016 e 2017, quando houve acréscimo de 21% de famílias nesta condição.
Um pouco menos expressivo em termos de porcentagem, mas não menos preocupante no contexto social, é o crescimento de famílias na linha de pobreza. Em março de 2020, havia, segundo levantamento da reportagem, 2.802 famílias com renda per capita mensal de R$ 89,01 até R$ 178. Treze meses depois, eram 3.030 grupos familiares nesta condição.
Mas não é só a queda na renda e a vulnerabilidade que se acentuaram. O perfil de quem busca ajuda do poder público para conseguir sobreviver também mudou:
— Há uma mudança. A Política de Assistência Social se destina a famílias e indivíduos em vulnerabilidade e risco social. Com a pandemia, podemos falar também em vulnerabilidade temporária, que são justamente as pessoas que não acessavam os serviços da assistência e agora passaram a acessar — observa Katiane.
COMPARE
Número de famílias em extrema pobreza em Caxias, isto é, com renda per capita mensal de até R$ 89.
2015: 5.009
2016: 4.224
2017: 5.135
2018: 5.496
2019: 6.381
2020: 7.349
2021: 9.223
*Dados se referem ao mês de março de cada ano, exceto 2021 que avalia a condição de abril.
"Vi pessoas que nunca pediram nada a ponto de pedir 1 quilo de arroz", diz voluntária
Não é só para o poder público público que está clara a mudança no perfil de quem procura ajuda. Quem faz trabalhos voluntários em Caxias também confirma o aumento expressivo na demanda por atendimento de necessidades básicas e, principalmente, a vulnerabilidade temporária apontada pela FAS:
— Quando a gente iniciou o projeto, tínhamos 50 crianças em uma situação bem precária, que a prioridade era o alimento. Hoje, a gente tem 150 crianças passando por essa situação. Tem muitos pais desempregados, que perderam o emprego durante a pandemia. A gente tinha famílias que se viravam com a reciclagem, que hoje não conseguem mais nem sair juntar o seletivo por medo de se contaminar. Eu vi pessoas que nunca precisaram pegar uma cesta básica, nunca pediram nada para ninguém e, hoje, estão a ponto de pedir um quilo de feijão ou de arroz porque não têm. Outras pessoas que trabalhavam como diarista e foram dispensados porque os patrões tinham medo de que eles levassem o vírus para o trabalho — descreve Jessica Zarnott, criadora da Associação AMA, que atende crianças dos bairros Reolon e Mariani.
Se os números da vulnerabilidade social já chamam a atenção, é no dia a dia de quem ajuda que eles são personificados, de fato. Jessica conta que o pedido que mais lhe sensibilizou na pandemia foi o de uma mãe de uma criança de dois anos que perdeu o emprego:
— Ela estava há dois dias sem comer e dando água com açúcar para a bebê. Os armários estavam vazios e nem fralda tinha; estava cortando lençóis. Cortou meu coração e mexeu muito comigo. Graças a Deus conseguimos muita ajuda — conta a voluntária.
Para aliviar os reflexos da crise na rotina das crianças, Jéssica e voluntários da associação se mobilizam para oferecer refeições semanais às famílias. Mas não é somente um lanche ou uma marmita que chega às casas: os voluntários querem oferecer novas experiências aos pequenos. Há duas semanas, por exemplo, as crianças puderam escolher o que desejavam comer. A maioria votou por um típico prato caxiense, o xis. Alguns nunca tinham experimentado o lanche, segundo Jéssica. E, graças a contribuição de inúmeras pessoas, 150 lanches e refrigerantes foram entregues. A colaboração foi tão grande que sobrou para a compra de chocolate quente e biscoitos, que foram distribuídos há alguns dias. Já na semana passada, o cardápio contou com sopa e pães.
— Acho importante falar que, embora o número de crianças nessa situação de emergência tenha aumentado, a pandemia mostrou um lado muito solidário das pessoas, pelo menos as que me ajudam. Tenho muita gente que se tornou voluntária e colaboradora do projeto neste último ano. O pessoal está preocupado com o próximo e, principalmente, com as crianças —comemora Jessica.
Além da entrega de refeições, os voluntários da Associação AMA trabalham em ações sociais em datas como a Páscoa e Natal, além da entrega de materiais escolares e roupas o ano inteiro. Quem quiser colaborar com mantimentos ou qualquer outro tipo de ajuda para as crianças, pode entrar em contato pelo telefone (54) 99222-7272 ou acompanhar as atualizações de pedidos pelo Facebook da Jessica Zarnott.
O recomeço depois de meses difíceis
A pandemia trouxe uma reviravolta para a família de Stefani da Silva, 25 anos. Ela trabalhava como auxiliar de cozinha em um pub da cidade e foi dispensada diante das medidas de prevenção da covid-19 que fecharam bares e restaurantes em março do ano passado. O marido dela, Anderson, 26, também foi desligado de uma transportadora e os problemas começaram a bater à porta da família.
— Antes da pandemia, a gente não dependia de ninguém, tinha um bom emprego. E aí, quando nós dois perdemos o emprego, a gente teve que começar a pedir ajuda. Teve dia que só tinha arroz no balcão pra gente comer. Imagina teus filhos pedindo as coisas e você não tem de onde tirar — detalha Stefani, que é mãe de Kimberlly, 7 anos, e Pietro, 2.
Da mesma forma que a pandemia trouxe preocupações antes inexistentes na vida do casal também apresentou pessoas de bom coração que contribuíram e muito para o recomeço da família. Stefani conheceu Jessica Zarnott da Associação AMA fazendo ações no bairro Mariani onde morava e foi auxiliada pelo projeto.
— Eu contei a minha história para ela, que tinha criança pequena e que a gente não estava conseguindo dar a volta. E aí, há um mês, as coisas começaram a melhorar. A Jessica conseguiu um emprego para mim de auxiliar de limpeza e meu marido está trabalhando como soldador autônomo. É uma vitória para nós — diz Stefani, reforçando que hoje a família mora no bairro Reolon por meio do projeto de aluguel social da prefeitura.
Mesmo com a volta ao mercado de trabalho, o casal ainda está se reestruturando financeiramente. Roupas de menina tamanho 8 e de menino tamanho 3 são bem-vindas pela família. Quem quiser colaborar, pode entrar em contato pelo telefone (54) .9170-0031.
Medidas sociais e econômicas devem ser planejadas a longo prazo, segundo especialista
A extrema pobreza significa que cada pessoa de um núcleo familiar tem até R$ 89 para passar o mês, o que, na prática, é sobreviver com menos de R$ 3 por dia. Para auxiliar famílias nesta condição e em outras camadas da vulnerabilidade social, a presidente da FAS, Katiane Boschetti da Silveira, lista ações conjuntas com secretarias municipais, a entrega de cestas básicas (em abril, foram distribuídas cerca de 3.150 unidades) e a reabertura do Restaurante Popular no final de março, com a disponibilização de 800 marmitas diariamente.
— Estamos trabalhando na estruturação de um projeto-piloto com o objetivo de acompanhamento sistêmico dos núcleos familiares, uma vez que a mesma família acessa diferentes políticas públicas. Enquanto FAS, estamos ampliando a capacidade de atendimento técnico, através da readequação das equipes, ofertando maior quantidade de acompanhamento às famílias, por meio assistentes sociais e psicólogos. Automaticamente, com essa reorganização, além de mais famílias serem contempladas com o benefício de cestas básicas, há também os encaminhamentos aos demais serviços da rede que podem auxiliar na promoção de dignidade no período de pandemia — diz Katiane.
Mas para o diretor do Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais (IPES) da Universidade de Caxias do Sul (UCS), Roberto Birch Gonçalves, é preciso ir além quando o assunto é a inserção destas famílias em novos contextos sociais:
— Agora a gente dá comida para sobreviver, mas só resgata a dignidade quando inclui minimamente a pessoa em um formato de renda, de trabalho. Quando as políticas socais não são estruturantes, quando não geram emprego, elas fazem o mesmo que o auxílio-emergencial, por exemplo. Ele é um chicote: vem, tira da linha da pobreza; ele sai, as pessoas voltam para a linha de pobreza. Ajuda, pois bota comida na mesa, mas precisamos de medidas, precisamos de emprego, de movimento econômico, isso sim permite que as pessoas saiam desta situação de pobreza — avalia.
Birch ainda aponta que o aumento da vulnerabilidade social já vinha em crescimento desde antes da pandemia, devido ao baixo desempenho econômico dos últimos anos. Para ele, são necessárias ações conjuntas entre o poder publico e o setor privado, a longo prazo, para que a situação social possa começar a melhorar.
— A pandemia agrava muito, mas o baixo crescimento da economia, o desemprego e a redução de políticas sociais contribuem fortemente para essa situação. A economia precisa ser reativada, porque as pessoas, ao não entrarem nela, não participam do processo de consumo. Se a pessoa não consegue sequer comer, também não vai conseguir comprar coisas, o que reflete no cenário econômico com um todo — explica o diretor.