— Presenciei uma realidade que a maioria das pessoas desconhece, mas que está bem próxima da gente — concluiu Evandro Eli Peres, 49 anos, ao relatar uma das experiências recentes que mais marcaram sua vida. Peres atua como líder operacional na distribuidora de gás Libergás, do bairro Desvio Rizzo, parceira de mais um projeto capitaneado pelo Mão Amiga em Caxias do Sul, com a finalidade de contribuir para que famílias em situação de vulnerabilidade possam viver em condições melhores.
Peres nasceu em Itaqui, município gaúcho que fica às margens do Rio Uruguai, na fronteira do Brasil com a Argentina. Decidido a não permanecer na lavoura, como seus pais e a maioria dos moradores da localidade, resolveu tentar a vida em Caxias do Sul, onde vive desde 1997.
— Amo minha terra, mas gosto muito daqui, é a terra da prosperidade - destaca o trabalhador que, de fato, encontrou na Serra um lugar ao sol.
Há cerca de duas semanas — em um dia que ele não lembra qual era, mas que jamais vai esquecer — Peres acompanhou pela primeira vez uma das entregas pelo projeto Vale-Gás Mão Amiga, que destina o insumo a famílias de doações da própria comunidade (detalhes abaixo). É ele quem coordena as entregas na distribuidora para a qual trabalha. A ação ocorreu no bairro Charqueadas sendo, no dia seguinte, seguida por entregas nos bairros Rio Branco, Bom Pastor, Esplanada, Nossa Senhora das Graças e loteamento Vêneto, as quais ele também acompanhou.
— No primeiro dia, quando nos deparamos com a situação da família do Charqueadas, eu fiquei chocado. Me chamou muito a atenção as condições precárias nas quais a família vive: uma casa feita com alvenaria, madeira, papelão e compensado, quatro por quatro, e cinco pessoas vivendo ali. Duas meninas acamadas porque têm problemas cerebrais. Sem saneamento, instalação elétrica exposta, frestas sem reboco, condições higiênicas nada boas e a comida sendo preparada com botijão emprestado — descreveu Peres, que diante daquele cenário decidiu mobilizar os colegas da empresa para garantir, pelo menos, uma cesta básica àquela família.
— Eu não consegui ficar indiferente. A gente tem que se importar. Ninguém é tão pobre que não possa ajudar e nem tão rico que possa não precisar — destacou.
A realidade presenciada pelo colaborador da distribuidora de gás não é exclusividade desta família em Caxias do Sul. Desde que foi iniciado na cidade, há cerca de dois meses, o projeto Vale-Gás já beneficiou mais de 200 famílias que não têm condições de adquirir o item doméstico básico para o preparo de alimentos os quais, muitas vezes, também são obtidos por meio de doações.
A situação escancara o agravamento da pobreza na cidade, um movimento que têm ocorrido de forma mais evidente desde o início da pandemia. Dados mais recentes da Fundação de Assistência Social (FAS) de Caxias do Sul apontam que mais de 12 mil famílias vivem na pobreza e extrema pobreza na cidade. Em agosto, das 28.057 famílias inscritas no Cadastro Único, 3.162 viviam na linha da pobreza em Caxias do Sul (o equivalente a 9.802 pessoas). O número na extrema pobreza é ainda maior: 9.444 famílias (o equivalente a 24.040 pessoas). Em abril, eram 9.223 na extrema pobreza. Em março de 2019, antes da pandemia, eram 6.381 nessa condição.
— Desde o início estamos articulando ações e percebemos o aumento da demanda por cestas básicas. Na virada do ano começamos a perceber que estava ainda mais difícil e, neste ano, tivemos um aumento de 30% nas demandas gerais em relação ao ano passado. Durante as ações encontramos pessoas preparando comida no meio do mato, em fogueiras; pessoas idosas buscando lenha para cozinhar. Isso trouxe à tona o fato de que não bastava apenas o alimento. Então começamos o projeto Vale-Gás, que tem encontrado situações, de fato, gritantes no sentido de falta de dignidade, condições, de faltar mesmo o básico pra sobrevivência — relata o frei Jaime Bettega, articulador do Projeto Mão Amiga, que atua em diversas frentes de solidariedade em Caxias.
Ele afirma que a comida continua sendo a principal demanda. Os projetos do Mão Amiga repassam, atualmente, cerca de 400 cestas básicas por mês, além de gerenciar o Restaurante Popular que, com o Banco de Alimentos de Caxias do Sul, garante o fornecimento de 1,3 mil refeições diárias a pessoas em situação de rua e famílias em vulnerabilidade, com entregas em seis bairros.
:: O Vale-Gás Mão Amiga propõe a doação de valores a partir de R$ 1 por mês para a compra de botijões a serem destinados aos lares de famílias que não têm condições de adquirir o item. O valor pode ser repassado via Pix: 11.453.014/0001-87 ou depósito ao Banco Sicredi, agência 0101, conta corrente: 53923-1, CNPJ: 11.453.014/0001-87. O projeto conta com parceria da Libergás, que fez a menor cotação e garante entrega gratuita em todos os bairros, e apoio da Supergasbras, que fornece gás para a distribuidora local.
:: O Restaurante Popular de Caxias do Sul pretende garantir, neste ano, uma ceia de Natal para mais de 500 famílias que são atendidas em diferentes projetos do Mão Amiga. A ação, articulada com a Diretoria de Segurança Alimentar, também arrecada contribuições via Pix: admcentrodeacolhidamaoamiga@gmail.com ou depósito ao Banrisul, agência 0874, conta corrente: 06.212336.0-4 (Projeto Crescer).
Segundo economista, conjuntura está levando a sociedade ao empobrecimento
Uma realidade cada vez mais comum é percebida no Mercado do Alemão, do bairro Marechal Floriano: as pessoas estão comprando menos. Segundo o proprietário do estabelecimento, Vilson Czarnobay, sua clientela ainda não deixou de comprar carne, até mesmo para assar o tradicional churrasco de final de semana. Mas, diante da crise, mesmo quem ainda dispõe de poder aquisitivo para este tipo de compra, acaba o fazendo em menor quantidade e, até mesmo, qualidade.
— Tudo aumentou (os preços) e o consumo caiu praticamente pela metade. Antes a gente via filas no açougue mas, desde que aumentou o preço do gado, teve 40% de queda de consumo e o pessoal opta mais por carne de segunda. Eu vendia muito costela de primeira, alcatra, chapéu de bispo e picanha. Hoje sai mais paleta, ponta de peito e costela de segunda — observa o proprietário, que ressalta o aumento do preço do saco de carvão: de R$ 6 para R$ 14.
Para a economista e professora Lodonha Maria Portela Coimbra Soares, a diminuição do consumo é um sintoma da perda de poder aquisitivo. Segundo ela, uma conjuntura de variáveis está levando a sociedade ao empobrecimento.
— A inflação estava em 25% a 30% antes de 2020 e, agora, já passa de 40%. Com a retomada de diversas atividades (por meio das flexibilizações) a perspectiva é de melhora, mas antes disso, teremos uma piora — afirma a economista, considerando a perspectiva de redução nacional do crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) para 2022, ano de Eleições que, segundo ela, tende a contar com menos investimentos de longo prazo para recuperação no cenário econômico.
A professora Lodonha explica que, com o início da pandemia, houve uma série de desligamentos por empresas que fecharam postos de trabalho ou mesmo as portas. Além disso, o chamado "desemprego informal" também foi resultado das restrições sanitárias ocasionadas pela pandemia, algo que impediu atividades alternativas para quem esteve sem emprego mas precisava garantir o próprio sustento, vendendo produtos na rua, por exemplo.
O Auxílio Emergencial, benefício concedido pelo Governo Federal como medida de enfrentamento à crise da pandemia, segundo a economista, chegou a contribuir em nível nacional para a redução do índice da extrema pobreza, faixa atribuída a pessoas que constam no Cadastro Único com renda per capita mensal inferior a R$ 89 — parâmetro recentemente reajustado para renda de até R$ 100.
— Com a prorrogação do benefício, foram alterados critérios, o que reduziu drasticamente o número de pessoas com acesso, além do próprio valor ter sido reduzido. Tudo isso aliado a um aumento de preços dos combustíveis. Isso foi diminuindo o poder aquisitivo da população — afirma a economista, em um dos recortes por ela apontados.
Realidade é sentida nos bairros de Caxias
Também ao longo da pandemia a União de Associações de Bairros (UAB) tem acompanhado as demandas de moradores que procuram as Amobs (associações de moradores de bairro) para pedir ajuda. O presidente da UAB, Valdir Walter, afirma que a crise tem sido percebida em diversos bairros da cidade, sobretudo, nos que já eram majoritariamente habitados por população em vulnerabilidade.
— Nas periferias temos moradores em situações extremas, que realmente não têm o que comer ou que nunca mais comeram carne. Famílias de três ou quatro filhos que compram osso para fazer sopa, sendo esta a refeição deles — relata.
Segundo ele, famílias que não conseguem acessar benefícios acabam procurando as Amobs para que as representações ajudem no repasse de cestas básicas. Para o presidente da UAB, porém, a solução precisa ir além da garantia de alimento.
— Precisamos urgentemente que governo do Estado e município articulem pela garantia de trabalho às pessoas. Caxias do Sul tem emprego, mas poucas pessoas conseguem atender à qualificação que as empresas exigem. Quem está precisando de emprego neste momento não tem o primeiro grau completo — afirmou o presidente.
Assistência acredita em melhora de cenário
A retomada de atividades a partir das flexibilizações, especialmente para setores não-essenciais, gera expectativa de dias melhores para a presidente da Fundação de Assistência Social (FAS) de Caxias do Sul, Katiane Boschetti da Silveira.
— O cenário é desafiador, mas estamos esperançosos de que, com a retomada da economia, questões da pandemia comecem a dar uma trégua. A gente espera, daqui para a frente, ter mais empregos e possibilidades para profissionais autônomos. Então, a esperança realmente é de que comece a movimentar — afirmou a presidente.
Segundo ela, a estratégia da FAS tem sido, desde o início de sua gestão, trabalhar de forma transversal e interssetorial, com um olhar sistêmico que considere o fato da pobreza ser parte de um contexto que envolve, também, questões relacionadas à saúde e escolaridade, por exemplo.
A retomada do Troca Solidária — programa que fornece alimentos em troca de resíduos recicláveis —, que ocorreu em abril deste ano, para Katiane, é uma das formas encontradas pelo Poder Público para estar mais inserido nos espaços comunitários.
— Com projetos como este saímos do lugar de entregar cesta, que é um benefício importante, e conseguimos olhar para outras necessidades, ainda que a fome sempre seja uma das prioridades — afirma Katiane, destacando outras ações desenvolvidas com a Secretaria Municipal da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
Conforme a presidente, a FAS também atua pelo fortalecimento e engajamento na busca por mais cursos profissionalizantes para jovens por meio do programa "Ser Jovem Cidadão", que também oferece renda aos adolescentes, incentivando que se profissionalizem e não deixem de concluir o ensino regular.