As cores e as histórias que vêm cobrindo os muros e paredes das casas do bairro Euzébio Beltrão de Queiroz, em Caxias do Sul, nos últimos meses, ganharam um contorno especial na metade de maio. Foi quando a trupe do Becos Crew, formada pelos artistas Erick Citron, Ana Scarceli e Leandro Alves, eternizou em um grafite a figura ancestral de Tarcilia Vieira Rodrigues, a dona Cia, moradora mais antiga da comunidade — e que nesta segunda (5) completa 94 anos.
O trabalho integra o projeto Muros da Quebrada e dialoga com uma das premissas da arte urbana: contar histórias com sprays, pincéis, tintas e emoção. Emoção, aliás, não faltou neste caso. Expert em retratos, Erick Citron ficou bastante entusiasmado por eternizar no muro do bairro a figura de uma mulher tão generosa e amorosa.
— É uma pessoa que todo mundo conhece, e tem esse lance afetivo com a comunidade.
A força da moradora mais antiga do Beltrão também encantou a artista Ana Scarceli.
— Quando a gente conversa com ela percebe toda essa força e resistência de uma mulher. Tudo isso não modificou em nada a delicadeza e a feminilidade dela. A gente se sente lisonjeada em fazer uma homenagem em vida. Muita gente pensa em homenagear alguém só depois de eles partirem. Para nós, a maior recompensa foi ver o sorriso dela quando se enxergou na parede.
CORES E EMOÇÕES
Para dar forma e colorido ao trabalho, Erick e os colegas optaram por cores suaves como lilás, rosa, magenta e branco.
— A gente pensou em utilizar cores que dessem mais tranqüilidade e espiritualidade — explicou ele, acrescentando o porquê das flores escolhidas para ornar a figura de dona Cia:
— A açucena é uma planta de cura da América Latina. E o lírio é para trazer um pouco de paz ao ambiente, pois acreditamos que isso seja super importante.
Para Ana, as flores são também uma simbologia do feminino:
— Usamos as flores para potencializar a força feminina, que, ao mesmo tempo, tem toda essa delicadeza da mulher. A gente, perto da Dona Cia, é um mero aprendiz. Espero que a vida me abençoe com um pouquinho dessa força dela.
Prestes a completar 94 anos, força e vontade não faltam à sábia senhora:
— Se eu pudesse ajudar todo mundo, eu ajudava. Espero que Deus me dê ainda um pouco mais de vida para cuidar dessas crianças que ficaram sem pai, sem mãe, sem pensão nenhuma — referindo-se aos vários moradores que costuma acolher no bairro.
* Com a colaboração de Carlinhos Santos.
DE LAGOA VERMELHA PARA CAXIAS
Filha de Delfino Vieira Rodrigues e Maria Madalena Moreira, Tarcilia nasceu em 5 de junho de 1929, em Lagoa Vermelha. A mudança para Caxias, incentivada por conhecidos que falavam bem da cidade, ocorreu entre o final dos anos 1950 e o início da década de 1960. A data não é precisa, tal como a história fragmentada da comunidade do Beltrão, surgida ainda na década de 1940.
— Depois que eu tive um problema aqui (apontando para a cabeça), não lembro direito — justificou.
Com o companheiro Pompílio, Cia teve 11 filhos. No mesmo terreno do Beltrão mora apenas Silvana Maria — a outra filha, Suzana Maria, reside em Montenegro. Já os filhos homens são todos falecidos. Sobre os primórdios do bairro, lembra que “no início, não tinha nada” e que sempre que podia, ajudava os outros. Algo que segue até hoje:
— A coisa mais triste é ver alguém com fome — sentencia, completando que nunca fica de “varde”, para não lembrar de coisas tristes.
Vendo “sua pintura”, indaga:
— Será que eu mereço tanta coisa assim? Só não gostei daquelas rugas muito fundas (risos). Deve ser porque estou velha mesmo. Mas fiquei muito contente com a homenagem que fizeram pra mim. Gostei de todos eles (os artistas). Que Deus abençoe cada um, que tenham bastante saúde e fiquem assim, bem velhinhos como eu.
E o apelido Cia?
— É coisa dos netos, que não sabiam falar Tarcilia, daí ficou Cia – diz a simpática senhora, cuja descendência já chegou aos tataranetos.
NÚMEROS DA PINTURA
O mural de dona Cia mede 3m de altura por 1,80m de largura e rendeu quatro dias de trabalho. O primeiro, para pintar o fundo da casa; o segundo, para marcar o desenho; e os dois últimos, para a arte e as finalizações. Foram utilizados 21 litros de tinta acrílica lilás - além de mais algumas cores para detalhes no pincel - e 30 latas de spray.
O PROJETO
O Projeto Muros da Quebrada Edição 2 tem financiamento da Lei de Incentivo à Cultura de Caxias do Sul, realização do Instituto SAMbA, apoio institucional de Chiquinho Divilas e do Vielas Espaço Cultural, além de apoio cultural da Orquídea e Agrale S/A.