“Deixou em testamento o desprendimento, ofertou seu corpo para ser estudado por muitos graduados”. É o que diz um trecho da homenagem escrita pelo frei Jaime Bettega ao tradicionalista Rubens Candeia, morto em 2017 por insuficiência respiratória e que, 13 anos antes, deixou registrado em cartório o desejo de ter o corpo doado para estudos.
A placa com os dizeres está pendurada na entrada do laboratório de anatomia da Universidade de Caxias do Sul (UCS). Junto dela, a Oração do Cadáver demonstra o respeito de acadêmicos e professores pelos corpos que são manuseados diariamente e possibilitam o aprendizado do corpo humano.
Nascido em Lagoa Vermelha, Candeia teve ampla participação comunitária, principalmente no tradicionalismo. Fez parte da fundação do CTG Campo dos Bugres e aproveitava a característica barba branca para, por quase 40 anos, representar o Papai Noel pelos bairros de Caxias do Sul.
Foi por conhecer o desprendimento do pai em prol dos outros que a filha Elisabete Candeia não se surpreendeu quando o pai registrou em testamento o desejo de ter o corpo doado após a morte. Coube a ela, junto da funerária, levar o pai falecido até a universidade, onde Candeia permanece até hoje e tem seus músculos dissecados e expostos para o aprendizado de futuros profissionais.
— Ele falava para todo mundo isso, que não queria ser enterrado, queria ser estudado. Papai era descendente de indígenas, se curava com chás e criava as próprias pomadas — conta.
A iniciativa de Candeia ainda veio a influenciar a família. De acordo com Elizabete, uma irmã e um sobrinho também se doaram em vida e tem seus corpos à disposição do laboratório há três e dois anos, respectivamente.
Ter o corpo do pai exposto para centenas de alunos anualmente por mais de seis anos não causa estranheza à filha, que entende que a vontade do pai está sendo realizada. Elizabete, inclusive, já o visitou por mais de uma vez, hábito que não ocorre desde o início da pandemia de covid-19.
— Ia sempre no aniversário dele, mas aí veio a pandemia e não me deixaram mais. No ímpeto da pessoa pode chocar, mas eu, como filha, não. Olho para os outros e sim, acho cadavérico, mas meu pai não. Vejo ele como a pessoa linda que foi — diz.
Quem preparou o corpo doado para os estudos foi Leonardo Abreu, que há 25 anos é responsável por conservar o material biológico em uma solução de formol e glicerina. O primeiro passo, segundo ele, é injetar em intervalos de 10 centímetros, cerca de 15ml de formol nos músculos e artérias. O produto químico faz com o que sangue se espalhe, condense e não gere odores. Também por isso que os corpos utilizados no laboratório são rígidos e escuros.
— Depois das injeções, mergulhamos o corpo em um tanque com formol e ali eles permanecem por até um ano para depois serem dissecados, quando separamos a pele da gordura e vão se expondo estruturas como nervos e artérias — explicou.
Ao longo do tempo e quanto mais os alunos se aprofundam nas estruturas do corpo humano, o objeto de estudo acaba se deteriorando e precisa, então, ser “aposentado” na forma da cremação. Mas, segundo Abreu, que entende como ninguém que ali está apenas o corpo físico e nada mais, estruturas como a de Candeia podem ser estudadas por até 10 anos.
— Espiritualmente, a pessoa que doa o corpo é muito elevada e a família também, porque não é só a pessoa que está se doando, mas o familiar que traz aqui e sabe que o ente será um benefício para a humanidade.