Não que Rodrigo Tressoldi, 35 anos, seja indiferente à morte: a teme, mas isso não o impede de planejar o fim da vida. Decidiu, por isso, o destino que terá o seu corpo em caso de morte natural: o mesmo lugar por onde circulava em uma manhã de março de 2023. Trata-se de um espaço entre mesas de inox sobre as quais havia cadáveres de pessoas que, a exemplo dele, optaram por doar o próprio corpo à ciência: o Laboratório de Anatomia Humana Lauro Backes, da Universidade Feevale, em Novo Hamburgo.
— Depois de desencarnado, meu corpo não teria "serventia" nenhuma em um cemitério. Como objeto de estudo, poderá ajudar alunos por muitos anos — justifica.
Tressoldi é um dos 184 cadastrados no programa Doação de Corpo em Vida da Feevale, criado em 2015, para fins de estudo e pesquisa na instituição. Sinalizar em vida o desejo de doar o próprio corpo é uma prática assegurada por lei desde 2002.
No passado, os cadáveres usados em laboratórios de anatomia do Brasil pertenciam a dois grupos bem definidos. Um deles era composto por pessoas não identificadas por autoridades, e o outro é daqueles cuja família não tinha interesse ou condição para os atos fúnebres.
Hoje, em contrapartida, os disponíveis em universidades são quase todos oriundos de doadores. Morador de Sapiranga, no Vale do Sinos, Tressoldi cursa o oitavo semestre do curso de Enfermagem na Feevale e também é bombeiro voluntário em Nova Hartz.
Ele conta que a ideia de ser um doador surgiu no contato com os cadáveres nas aulas de anatomia. À época, descobriu que não eram mais utilizados corpos de “indigentes” - como antes eram conhecidos os cadáveres não reclamados -, e sim de doadores voluntários.
— Tenho total respeito por essas pessoas que doaram seus corpos e estão sendo úteis. Espero poder fazer o mesmo. O contato (com corpos) em sala de aula é muito enriquecedor. Você se apropria do conhecimento com maior facilidade, pois é real, como o de um paciente — diz o estudante.
UFCSPA, referência no Estado
No Brasil, há 39 programas de doação de corpos, 10 deles no Estado (veja a lista abaixo). O RS, por isso, concentra uma em cada quatro iniciativas no país. A Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) foi a primeira instituição a criar um programa de doação de corpos no RS, em 2008. A instituição da Capital é o modelo seguido por outras universidades que buscam ter o próprio programa.
Além de pioneira, a UFCSPA é a que atinge mais pessoas. Desde 2008, foram recebidos 130 cadáveres e feitos 991 cadastros de intenção de doação, o equivalente a 73% do total das instituições gaúchas, que têm 1.355 doadores cadastrados, segundo levantamento de GZH.
O crescimento no número de programas ocorreu a partir de 2015, período em que oito foram criados; os mais recentes são da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí) e Universidade de Cruz Alta (Unicruz), ambos em 2019. O interesse no assunto se comprova, também, no aumento de cadastros no programa da UFCSPA: de 12 em 2008, no início do trabalho, para um pico de 155 em 2018. O período de pandemia significou queda: 26 em 2020 e 39, em 2021.
A expansão pode ser explicada pela segurança legal e pelo crescimento de cursos na área da saúde, em especial os de Medicina, dizem os especialistas ouvidos pela reportagem. Mesmo assim, a prática ainda é pouco conhecida na sociedade e falta “uma cultura” de doação de corpos no Brasil, a exemplo do que ocorre com quem doa órgãos, explica Andrea Oxley da Rocha, coordenadora do programa de doação de corpos da UFCSPA e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Anatomia (SBA).
— A doação de corpos trabalha para preparar os profissionais da área da saúde. A doação de órgãos é mais difundida por ter essa questão nobre de salvar uma vida de imediato. São apelos diferentes. Mas há ainda bastante desconhecimento da possibilidade de doar o corpo, é algo que nunca foi trabalhado para conscientização da população — afirma a professora de anatomia.
Segundo Andrea, o perfil do doador da universidade é composto por pessoas acima dos 60 anos. Por isso, é normal que o laboratório receba corpos de quem morreu depois dos 70 anos. Chamar a atenção dos mais jovens para a importância do ato é uma dificuldade por algumas razões:
— É depois dos 60 anos que a gente começa a pensar na morte: como vou ser enterrado, se vou ser cremado. Quando falamos com um jovem sobre doar o corpo, ele não consegue se imaginar, na velhice, em um laboratório de anatomia. Isso gera uma angústia, um constrangimento, porque o jovem não consegue se imaginar morto — explica.
Guardar na memória boas lembranças
Austerlitz Bisso Mendes, 78 anos, encaixa-se no perfil descrito pela professora da UFCSPA. Ele é um dos 991 doadores cadastrados no programa da universidade federal. O morador do bairro Humaitá, em Porto Alegre, tomou a decisão há 15 anos, no que se tornou o projeto de casal.
À época, o idoso conversou com a esposa sobre o queriam que os dois filhos fizessem quando os pais morressem. O casal concluiu que o mais adequado era sinalizar em vida que gostariam de doar seus corpos à UFCSPA. Foi o que fizeram:
— O benefício do estudo e da ciência é muito mais importante do que fazer toda aquela cerimônia, de caixão, velório, choro, uma coisa extremamente ruim que a pessoa nunca vai esquecer — diz o contador aposentado.
Anos depois, em 2015, a companheira morreu. A dor da perda, no entanto, não mudou os planos anos. A mulher teve a vontade respeitada e o corpo doado à UFCSPA. Anos depois, o ato, para ele, foi uma decisão acertada:
O benefício do estudo e da ciência é muito mais importante do que fazer toda aquela cerimônia, de caixão, velório, choro, uma coisa extremamente ruim que a pessoa nunca vai esquecer
AUSTERLITZ BISSO MENDES
Aposentado, doador de corpo
— Ela era a pessoa que eu mais amava. Dela, não tenho aquela memória ruim, de velório, enterro, choro. Guardo, dentro do meu coração, uma imagem da minha esposa viva — afirma.
O idoso diz ser católico, e não acreditar na reencarnação: para ele, a morte é o fim. Portanto, a doação de corpos é uma forma de altruísmo.
— Precisamos ser úteis aos demais seres humanos que ficarão na Terra. Isso, para mim, é uma coisa maravilhosa.
Morte sem tabu
Nathali Parise Taufer, 26 anos, no entanto, contraria a lógica de que o pensamento da morte vem com o avançar da idade. Há quatro anos, aos 22, a jovem decidiu doar o próprio corpo à ciência. Ela descobriu a possibilidade durante atividades na disciplina de anatomia da graduação de Biologia na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
— Não tenho problema algum em falar sobre a morte. É algo tão natural, faz parte do nosso processo, da nossa vida, que é uma das poucas certezas que temos — diz.
A desinibição no trato da morte se somou à falta de vontade de ser enterrada do “modo antigo”:
— A ideia convencional do cemitério, do túmulo, foi uma coisa que eu nunca quis, por uma série de motivos: poluição, superlotação e “obrigar” que várias gerações cuidem daquele túmulo, que muitas vezes não moram na cidade, que nem nos conheceram em vida, e isso seguir até que alguém resolva destruí-lo.
Tornar-se doadora é uma das consequências do entendimento que Nathali tem do próprio corpo: antes disso, ela afirma ter se cadastrado para ser doadora de órgãos e medula óssea, além de doar sangue de forma frequente. Optar por doar o corpo não impede que a pessoa doe órgãos também. Hoje moradora de Florianópolis, Santa Catarina, a bióloga viveu a maior parte da vida em Relvado, no Vale do Taquari. Nathali conta que a opção de doar o corpo virou “assunto” entre os familiares no passado.
— Alguns acharam estranho, outros acharam bonito. Os mais velhos da minha família são bem apegados ainda ao corpo, à questão da alma, são religiosos. Então, até cremar já é algo que eles têm ficam com um pé atrás. Imagina doar meu corpo! Mas é uma coisa minha, que eu tenho de definir, não quero que decidam por mim — afirma.
Da morte à preparação para o estudo
Na Feevale, o processo para preparar o corpo para estudos dura de seis a 18 meses. No laboratório, são usadas duas substâncias no preparo de cadáveres: formol e glicerina. Alguns cadáveres são mantidos inteiros, e outros são separados para estudos específicos. Ossos também fazem parte do acervo. O tempo que o cadáver será utilizado nas aulas depende de alguns fatores, explica Marcelo Marques Soares, professor e coordenador do laboratório da Feevale.
— Alguns corpos duram um, outros cinco ou seis anos. Depende do uso. Se é para estudar músculos, dura menos. Se é para estudar vísceras, dura mais. Se tiver muitas aulas de anatomia e oferecer esse cadáver para estudar, ele tem um tempo mais curto. Se eu tiver poucas turmas, será usado por mais anos.
Para preparar o cadáver, a universidade investe R$ 5 mil, segundo estimativa do coordenador do laboratório. Não entra nessa conta o valor para manter a estrutura, os profissionais e o transporte. A logística também requer cuidado: é preciso ter um procedimento interno para buscar o corpo após a morte do doador e lidar com familiares. Esse último ponto é também delicado, porque, para evitar desentendimentos futuros entre familiares, a universidade aceita doações apenas quando a família é unânime no destino do cadáver.
Esse processo poderia ser simplificado - e barateado - caso a instituição investisse em peças sintéticas e softwares, recursos disponíveis, mas usados em menor frequência. Isso, porém, não deve mudar:
— Com o corpo, o aluno estuda o que ele vai ver no paciente. É o mais próximo que conseguimos ter da atividade profissional. O conhecimento da nossa estrutura é um dos passos fundamentais para a consistência de uma carreira sólida na área da saúde. O desenvolvimento do conhecimento só ocorre se tivermos investimento na ciência básica, que é o caso da anatomia.
Na Feevale, a doação de corpos beneficia alunos de outros cursos, além da Medicina: Odontologia, Fisioterapia, Quiropraxia, Enfermagem, Educação Física, Estética, Nutrição e Farmácia. Depois do uso, o corpo é incinerado.
História e legislação
Ao longo da história, o entendimento sobre o uso de corpos para estudo mudou. Segundo Julio de Oliveira Espinel, professor do curso de Medicina da Feevale, o desenvolvimento da prática foi atrapalhado por posicionamentos religiosos que entendiam o ato como oposto a crenças morais e religiosas, em especial na Idade Média. Nesse período, ter o corpo usado para estudo era até motivo de punição.
— Ocorria de cadáveres estudados serem de pessoas condenadas por crimes graves. Então, para piorar a situação, além da morte, o bandido era condenado a ter o corpo destrinchado, o que era uma grande desonra. Às vezes, isso era o mais temido: eram feitos acordos para o bandido ser morto, mas não ser levado para a anatomia — contextualiza Espinel.
A doação de corpos é uma prática prevista no Código Civil Brasileiro por meio da lei número 10.406, de 10 de janeiro de 2002. O texto diz, no artigo 14, que “É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte”.
Os alunos têm de entender que aquela pessoa está ali por acreditar que a gente ia tratar ela de uma maneira digna.
JULIO DE OLIVEIRA ESPINEL
Professor do curso de Medicina na Feevale
Antes da norma, porém, não havia legislação que permitisse faculdades terem acesso a corpos de doadores voluntários. A opção para obter material para ensino e pesquisa vinha apenas da lei número 8.501, de 30 de novembro de 1992, que disciplina a destinação de cadáveres não reclamados às autoridades públicas: a norma ainda vigente determina que cadáveres não reclamados em um prazo de 30 dias podem ser destinados às escolas de medicina. Esse foi um período no qual as peças eram “contadas”, de difícil acesso aos laboratórios e estudantes.
— As fontes de cadáveres para anatomia eram corpos de pessoas encontradas mortas, sem nenhum familiar ou que não pudessem ser reconhecidas. Elas ficavam nas câmaras dos departamentos médicos legais e depois eram ofertadas a faculdades. Havia uma questão ética: a pessoa não tinha escolhido isso (ter o corpo doado) — conta Espinel.
Hoje, no Estado, as universidades usam quase na totalidade corpos que foram doados por pessoas em vida ou por famílias que sabiam da vontade do ente. Essa característica reforça a importância do respeito àqueles que escolheram doar o próprio corpo, de forma voluntária.
— Os alunos têm de entender que aquela pessoa está ali por acreditar que a gente ia tratar ela de uma maneira digna. E isso até mesmo com os ossos: se temos uma ossada, esse osso não pode cair no chão, esse osso não pode ser batido. São pessoas que optaram por deixar que a ciência as use para formar novos profissionais. Por isso, temos uma responsabilidade enorme com cada corpo — lembra o professor.
Principais informações
O processo de doação de corpos muda para cada universidade, que definem detalhes. Há, porém, pontos em comum. Leia mais neste link as instruções da UFCPA.
- O doador deve ter mais de 18 anos
- É preciso declaração de doação de órgãos e restos mortais e reconhecer o documento em cartório. É aconselhado que um familiar seja testemunha
- É permitido que o corpo seja velado antes de ser levado à universidade
- A universidade é a responsável pelo transporte do cadáver. Há um limite estipulado de distância para buscar o corpo
- Não há custos para a família com o transporte
- Não são aceitos corpos em caso de morte violenta, ou seja: decorrente de acidentes de qualquer natureza (trânsito ou queda), homicídio ou suicídio. Isso porque, os corpos devem ser submetidos à necropsia e, conforme necessidade da investigação, devem estar à disposição para exumação
- A instituição de ensino não paga nenhum valor ao doador ou à família