O Rio Grande do Sul é um território construído a muitas mãos. Mãos de indígenas, negros, portugueses, espanhóis, italianos, alemães, poloneses, sul-americanos, entre tantas outras, que por aqui se estabeleceram e ajudaram a diversificar a cultura desta terra. Hoje, muito do que se conhece e se cultiva da música, da dança, da culinária e de trajes, por exemplo, é fruto dessa mistura de diferentes povos. Essa pluralidade é celebrada na temática dos Festejos Farroupilhas deste ano, que se encerram nesta terça-feira (20): Etnias do gaúcho: terra de muitas terras.
O doutor em História e docente na Universidade de Caxias do Sul (UCS), Ramon Victor Tissot, lembra que o território que hoje se conhece como Rio Grande do Sul começou a ser povoado há 12 mil anos e, para ele, não há como falar sobre a história do Estado e, por consequência, todos os desdobramentos da diversidade cultural, sem remeter à experiência humana desenvolvida neste período.
— Houve várias levas migratórias de etnias (indígenas) muito diferentes que vêm ocupando o espaço aqui desde 12 mil antes do presente. Para termos uma ideia, as duas principais etnias indígenas que hoje habitam o Rio Grande do Sul são os guaranis e os caingangues, e ambas vivem aqui, no território, há mais de 2 mil anos. É uma história muito longa e falar de cultura gaúcha é remeter, primeiro, a esses povos originários — pontua o historiador.
O professor destaca que o próprio hábito do chimarrão, um dos mais enraizados costumes gaúchos e cuja data de "nascimento" é desconhecida pelos estudiosos — além do próprio cultivo da erva-mate — remete aos povos indígenas. Por outro lado, Tissot afirma que um período pouco valorizado, enquanto experiência humana, é o surgimento dos Sete Povos das Missões, conjunto de sete aldeamentos fundados pelos jesuítas no RS sob a tutela da coroa espanhola, no fim do século 17. Desta época se origina muito do que se conhece da tradição campeira.
— Nessas missões jesuíticas, onde viviam descendentes de europeus e indígenas, se cultivava muita erva-mate para bebida, havia criação de gado, artesanato com couro, coisas que ligamos muito à cultura gaúcha hoje —explica.
O professor ainda reforça que os descendentes africanos tiveram papel central para a formação populacional e cultural do Estado, embora acredite que esta contribuição ainda seja pouco reconhecida.
— As pessoas escravizadas são, acima de tudo, pessoas que amam, que produzem arte, que estabelecem relações, têm seus afetos e desafetos, produzem beleza. Além da questão religiosa, que é muito presente aqui no Estado, há influências na música, nas formas de representação visual, no gosto artístico do gaúcho — detalha.
Diversidade cultural também na música
As diferentes etnias que se estabeleceram no Rio Grande do Sul ao longo da história deixaram importantes heranças para a música gaúcha, seja em composições, ritmos ou instrumentos. O professor de música e integrante do grupo caxiense Yangos, Tomás Savaris, explica que os ritmos musicais prestigiados até hoje tiveram forte influência europeia e países da América Latina.
— A valsa, o xote e a polca vêm da Europa. Um pouco da nossa milonga vem da Argentina, e um pouco do Uruguai. A vanera vem da Europa, mas a origem, na verdade, é cubana — a habanera. Os espanhóis levaram para lá e se popularizou. O único ritmo que consideramos daqui, do Rio Grande do Sul, é o Bugio. Aí tem uma divergência, que o pessoal aqui da Serra diz que o surgimento é em São Francisco de Paula e o pessoal do meio do Estado diz que é em São Francisco de Assis — explica Tomás.
Os instrumentos que animam bailes, integram invernadas e festivais também remetem ao passado ligado à imigração:
— A gaita quem trouxe foram os italianos; a viola, os portugueses. A viola entra no Brasil antes do violão, mas ele se popularizou mais pela facilidade: tem menos cordas, as quais são mais fáceis de encontrar ou fabricar. Por outro lado, quando pensamos em instrumentos de percussão temos que ligar ao povo negro — comenta o músico.
As próprias letras das músicas se diversificaram com o passar do tempo para atender a demanda urbana, segundo Tomás.
— As letras dessas músicas das danças mais tradicionais, como o Pezinho, têm influência de músicas resgatadas da Europa. Nas músicas de baile, vamos perceber que as letras são compreensíveis para a pessoa urbana. Já a música nativista fala muito da lida do campo, tudo sempre muito poético, com um linguajar mais específico.
Pluralidade na dança, na vestimenta e na gastronomia
Em 2017, o CTG Campo dos Bugres apresentou ao público um espetáculo chamado Miscigenação Sulina. O roteiro, com a participação de 28 dançarinos, evidenciou a presença de espanhóis, portugueses, indígenas, italianos, alemães, entre outros, na história do Estado. Mas a diversidade cultural do Rio Grande do Sul é celebrada há muito tempo na entidade caxiense, segundo a integrante do departamento cultural do CTG e diretora artística da 25ª Região Tradicionalista, Marcia Teixeira. Ela detalha, por exemplo, que estilos como Pezinho, a Cana Verde e o Caranguejo foram trazidos pelos portugueses, mais especificamente pelos açorianos. A dança Tirana do Lenço, por sua vez, é de origem espanhola.
— A própria cultura italiana, que muitas vezes ligamos somente à gastronomia, trouxe o Quatro Passi, o acordeom... O alemão também nos trouxe algumas danças, como o Xote Carreirinho. A cultura gaúcha é uma mescla de etnias. Claro que se formos ver aqui, a nossa região é mais ítalo-gaúcha. Quando os italianos chegaram, tinham os bugres e foi surgindo essa miscigenação. Por isso, é comum vermos nos CTGs o churrasco acompanhado com o vinho, o macarrão. Existe essa mistura — diz Marcia.
Os trajes usados nos CTGs — ou mesmo fora deles — também possuem referência nos diferentes povos que se estabeleceram por aqui.
— Toda nossa pilcha tem certa influência. Se olharmos os pentes das estancieiras, são de origem espanhola. A bombacha é turca. Os próprios ponchos, se formos voltar na história, vamos chegar nos índios que usavam as peles para se cobrir. Depois, se evoluiu até chegar nos teares — exemplifica a integrante do CTG Campo dos Bugres.