As condições da Educação Infantil no Brasil foram alvo de um estudo inédito apresentado nesta sexta-feira (10) em São Paulo. Os dados apresentados reúnem informações sobre 3.467 turmas em 1.807 unidades educacionais. Intitulado como Avaliação da Qualidade da Educação Infantil, o levantamento apurou, por exemplo, que 10,8% das turmas observadas tiveram casos de interações verbais negativas, que apenas 10% das turmas oferecem acesso livre aos livros e que só 9% das turmas têm planejamento diário. Por outro lado, a maioria das turmas apresentou práticas de oralidade e de trabalho com artes qualificados.
A pesquisa, realizada em 2021 pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, em parceria com o Laboratório Estudos e Pesquisas em Economia Social (Lepes) da Universidade de São Paulo (USP), avaliou as unidades educacionais em quatro dimensões: infraestrutura, currículo, interações e práticas pedagógicas, e equipe e gestão. O levantamento foi feito em 12 municípios de todas as regiões do país. No Rio Grande do Sul, a capital Porto Alegre participou da iniciativa.
A avaliação levou em consideração a Base Nacional Curricular Comum. Beatriz Abuchaim, gerente de conhecimento aplicado da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, destaca que marcos legais como esse trazem parâmetros do que se define como uma educação de qualidade, objetivos a serem alcançados e os direitos das crianças.
— O estudo acaba por mostrar que alguns desses conceitos que estão nesses documentos legais ainda não estão implementados. Então, a gente precisa trabalhar sobretudo com a formação dos professores, tanto inicial quanto continuada, para que essas concepções sejam entendidas e, mais, que sejam traduzidas em práticas que realmente beneficiem o desenvolvimento e a aprendizagem das crianças.
A doutora em Educação pontua que ainda existem duas concepções erradas associadas à essa etapa de ensino. Uma delas é que as escolas são apenas locais para as crianças ficarem enquanto os pais trabalham e outra é que esta é apenas uma etapa para preparar as crianças para o Ensino Fundamental.
— Uma Educação Infantil de qualidade olha para o que a criança é hoje, para as suas possibilidades hoje, para o seu desenvolvimento hoje. Esse período de zero a seis anos é essencial para toda a aprendizagem posterior e para tudo o que a pessoa via se tornar. Então, a pessoa ter boas experiências nessa época, ela cria uma boa base para toda a escolarização dela e podemos dizer que para toda a vida.
O professor Daniel Santos, um dos coordenadores do Lepes, pontua que essa é uma fase do desenvolvimento com grande potencial pela aprendizagem, o que precisa ser aproveitado nas escolas. Ele salienta, inclusive, que a brincadeira é um direito da criança que pode ser aproveitado para desenvolver novas habilidades:
— A abertura que uma criança tem para construir hipóteses, testar, experimentar, se jogar e aprender é maior do que a gente vai ter em qualquer outra fase da nossa vida. Então, essa consciência da facilidade que uma criança pequena tem de aprender e, portanto, que importância tem você explorar isso para expandir o potencial humano e o perigo que é não aproveitar essa oportunidade e deixar as desigualdades crescerem e se cristalizarem.
O pesquisador defende que as conclusões da Avaliação têm o potencial de colaborar efetivamente para mudanças nos processos adotados nas unidades educacionais e, como consequência, melhorar a Educação Infantil no país.
— O que essa pesquisa traz de novo é um tipo de informação que é acionável, ou seja, trata de coisas que podem ser modificadas a partir da política pública, mas que diz respeito a processos. Então, o que é isso? Vamos falar em um tripé básico: colocar a criança no centro do processo de aprendizagem no sentido de que você tem que construir uma educação que seja significativa para ela e que, portanto, ela queira estar ali e não que caia de cima para baixo; uma educação que discute que criança queremos formar e se preocupa com a noção integral do desenvolvimento; e o papel do adulto mediando essas oportunidades e, ao fazer isso, ele atua não só escolhendo o que ele vai trabalhar com a criança – se vai ser um dia natureza, como vai fazer, se vai ser trabalhar com projetos – mas também respeitando os ritmos e individualizando o olhar para cada criança. E tudo isso com o complemento, que também está na BNCC, de ter uma escola que se preocupe em criar um contexto que ofereça oportunidades.
Diferenças dentro da mesma rede
Um dos apontamentos da pesquisa é que, dentro da mesma rede de educação, há escolas com desempenho melhor e pior. Na média, a Educação Infantil desta amostra é avaliada como regular em todas as dimensões. Mas, individualmente, aparecem desafios diferentes. A gerente de conhecimento aplicado da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal destaca que essa percepção pode apontar também para soluções:
— Se eu tenho escolas que estão muito boas, que elas possam servir de inspiração e, talvez, suportar, ajudar e apoiar essas escolas que não estão se saindo tão bem no processo avaliativo. Quando a gente tem uma escola que está indo bem, a gente mostra para a comunidade escolar que é possível, sim — comenta Beatriz Abruchaim.
Resultados gerais
:: Infraestrutura: de modo geral, as crianças têm acesso à estrutura do prédio, equipamentos e materiais pedagógicos capaz de atende-las. Porém, o levantamento mostra que esse suporte não gera experiências que garantam mais autonomia ou coloquem os pequenos como protagonistas. Na sala de referência, há materiais pedagógicos básicos, mas isso não resulta na facilitação do trabalho investigativo, nem na presença adequada de livros de história.
:: Práticas pedagógicas: há atividades que possibilitem aprendizagens previstas na BNCC, mas não são usadas estratégias lúdicas que favoreçam que a criança seja protagonista. Um exemplo: o acesso aos materiais, na maioria das vezes, passa pelo professor e não com autonomia da criança. Outra situação é a falta de interação do professor com as crianças em brincadeiras livres ou nas práticas de oralidade. Essa interação, segundo especialistas, serve para mediar e ampliar as aprendizagens destes momentos.
:: Equipe e gestão: essa item avalia questões que impactam a qualidade do atendimento oferecido às crianças. No nível regular, os profissionais têm o preparo e engajamento mínimo, mas não pesquisam sobre outros recursos para ampliar as aprendizagens. Além disso, não possuem momentos de reunião, estudos, formação e planejamento.
* A repórter viajou a São Paulo a convite da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal