No livro Serei sempre o teu abrigo, o escritor português Valter Hugo Mãe, escreve: "Há sempre lugares, nem que pequenas gavetas, onde não se fica ou não se mexe. Lugares onde protegemos com garra e ternura uma parte da vida, garantias ou provas de amor, tudo quanto nos mantém ou pode reerguer". Mortos deixam sempre memórias aqui e ali. Pode ser uma carta de amor no bolso de um paletó antigo, um troféu dourado descascado pelo tempo ou uma coleção de chaveiros e, se houver chave, talvez não abra mais porta alguma.
No calendário, 2 de novembro marca o Dia de Finados ou dos Mortos, a depender da tradução de uma antiga tradição, que remete ao Século 10. No ano 998, um religioso fiel da Igreja Católica, na abadia beneditina de Cluny, na França, chamado de Odilo (ou Santo Odilon, como era conhecido entre os católicos), orientou aos fiéis que, anualmente, sempre nesse dia, dedicassem suas orações à alma daqueles que se foram. Apesar da orientação da doutrina para que os familiares intercedessem por seus entes queridos, para que eles pudessem fazer sua passagem do Purgatório ao Paraíso, sabe-se que, para além do rito religioso, muitos aproveitam a data para recordar os que já se foram.
A partir desse rito de passagem, a reportagem entrevistou as psicólogas Ana Reis e Franciele Guimarães e o escritor Fabrício Carpinejar, caxiense e atual patrono da Feira do Livro de Poro Alegre, para que pudessem conduzir o leitor por essa jornada que envolve lembranças, sorrisos e amor, mas também medo, traumas e angústias. E tudo isso, a partir de um novo contexto social, o peso da pandemia aos que ficam. Nesse sentido, até mesmo o luto precisou e ainda precisa ser ressignificado. Porque velórios têm sido acelerados, limitados a um menor número de pessoas ou ainda, com caixões lacrados.
Em suma, despedir-se tem sido ainda mais desafiador.
"Fazer toda dor valer a pena"
A psicóloga Ana Reis carrega no olhar o abraço de ternura e cuidado aos que ficam. Porque depois da morte há que se agarrar à vida que segue. E nunca é fácil recomeçar. Antes é preciso recolher-se às memórias, permitir-se chorar e sentir a dor que brota no luto e, só depois, lutar para ressignificar o resto de vida que ainda resta a quem se despede dos que morrem.
Ana é especialista em luto e doutora em Teologia e, apesar do mapeamento de todos os meandros da alma, reconhece que o luto em tempos pandêmicos se tornou ainda mais duro e frio do que antes da covid-19.
— Dentro do contexto da pandemia, a morte e o luto deixaram de ser distantes e passaram a ser experimentados dentro do grande guarda-chuva do medo, do distanciamento físico, que, inicialmente, se confundiu com distanciamento afetivo — explica.
Dentro dessa ótica, cada palavra, cada gesto, cada fragmento de silêncio pode significar maior ou menor intensidade da dor. Porque, se atualmente, a pandemia parece assustar menos as pessoas, afinal tem morrido menos gente, por outro, há muitas marcas e cicatrizes na alma dos que perderam entes queridos por causa desse vírus.
— O luto passou a ser vivido de uma forma diferenciada. Ver notificações de luto nas mídias gerou uma intensificação de angústias. E isso fez com que, num primeiro momento, houvesse uma espécie de luto coletivo, com implicações que foram invadindo nosso modo de ser e viver com concepções diferentes sobre o tempo, sobre o contato com outras pessoas, e sobre as despedidas — avalia.
Essa dor que se amplificou por conta da pandemia também fez crescer a sensibilidade das pessoas à dor do outro, acredita Ana.
— Testemunhei situações muito bonitas de vizinhos que deixavam cestas para famílias em isolamento que haviam perdido entes queridos para a covid. Na cesta não havia apenas alimentos, mas também recados, cartões, bilhetes, dizendo que estavam rezando por todos.
Ana crê no poder transformador de quem encara o luto de frente, apesar da dor.
— Acredito que no final de tudo isso vamos poder olhar para trás e perceber, talvez, se não dentro de cada um de nós, mas no coletivo, o que fomos capazes de descobrir e de transformar. Não acredito que situações difíceis aconteçam para que a gente aprenda algo. Mas tenho testemunhado um esforço muito grande das pessoas em fazer toda dor valer a pena e de transformar as situações tão duras que estamos enfrentando em algo que possa dar sustentação para a vida.
Ou seja, que o luto sirva para amplificar a vontade de viver.
"Não dizemos adeus da mesma forma que antes"
Despedir-se nunca foi uma tarefa simples, mas os inúmeros relatos de quem fica recolocam esse verbo em outro patamar, com ainda mais pesar. Essa informação é reforçada pelo acompanhamento e aconselhamento clínico da psicóloga Franciele Guimarães, pós-graduada em Psicologia Hospitalar.
— A covid-19 tem nos feito repensar as formas como nos relacionamos e nos despedimos. O fato é que não dizemos adeus da mesma forma que anteriormente. Diante da alteração nos formatos de velórios e sepultamentos durante a pandemia, perdem-se rituais importantes ao processo de compreensão da morte — afirma Franciele.
A psicóloga explica que a despedida de quem se ama é uma das etapas essenciais do luto. Primeiro, porque promove o contato com a realidade da morte, o que, segundo ela, favorece a assimilação da perda, além de permitir que o sofrimento possa ser compartilhado.
— Desta forma, os rituais necessitam ser repensados de forma que seus significados possam ser mantidos, mesmo que em outro formato. Independentemente do ritual a ser utilizado é importante escolher formas de despedidas que façam sentido ao enlutado, respeitando o tempo de organização de cada pessoa, já que este é um processo individual. É buscar alternativas com o intuito de amenizar a dor e o sofrimento, uma vez que o afeto pode ser expressado de várias formas — ensina.
Franciele diz que o Dia de Finados é importante para reafirmar laços que nem mesmo a morte rompeu e também para ressignificar a vida:
— Percebo que a pandemia nos trouxe algumas reflexões, principalmente no que tange ao investimento nas relações, provocando transformações no modo de pensar, sentir e agir. Saímos transformados dessa experiência, não somos os mesmos que antes! Passamos a olhar para a vida de forma diferente, sabemos a importância de um abraço, da presença física e, principalmente, em expressar nosso afeto a quem amamos. A cada um de nós cabe encontrarmos um sentido para esta experiência.
"Luto é a fisioterapia da alma"
O escritor caxiense Fabrício Carpinejar acaba de lançar Depois é nunca, com impressões sobre a morte e suas decorrências, por vezes recheadas de memórias de amor e afeto, mas também de dor e tristeza. São relatos de sua vida e de outras vidas, todas caminhando sobre a linha tênue entre a iluminação do reconhecimento do luto com perspectivas de sobrevida e o pesar duro e frio permeado em culpa sobre culpa, quando não há compreensão do que significa a morte.
— É um momento único e extraordinário que estamos vivendo, porque, afora a anestesia individual, existe uma anestesia coletiva. E também um boicote ao luto, uma censura ao luto, como se fosse um movimento político. Todo mundo tem apressado o enterro. Apressam os mortos. Apressa que a pessoa se recuperasse rapidamente, como se a morte fosse um aborrecimento menor — provoca Carpinejar.
Apesar de a morte ser a primeira certeza que sem tem depois do nascimento, poucas pessoas estão dispostas a se preparar para ela.
— O luto tende a demorar de cinco a 10 anos. Não é pouca coisa. Há toda uma reabilitação emocional. Assim como quem sofre acidente tem de fazer fisioterapia, o luto é a fisioterapia da alma. É aprender a caminhar sozinho, a segurar a vida sozinho, a firmar o passo. E não deixar a culpa ser maior do que a gratidão. Isso é o mais difícil.
Em um dos trechos de seu livro, Carpinejar abre mais uma janela para acessar a alma em prosa poética para dissecar a morte e encontrar a vida lá dentro, e escreve: "Médicos e enfermeiros conhecem essa cena de cor: os dedos do paciente e do seu familiar se entrelaçam com um nó. Com muita força. Com uma fé que não permite nenhuma fresta. Não há como a vida não escoar dali". E esse gesto a que se refere o autor, de uma forma sublime, parece resumir quão remoída é a despedida. Mas, ao mesmo tempo, esses dedos entrelaçados parecem transferir algo, um para o outro.
— Parece que tem algo escondido na concha do gesto. Talvez a alma — diz Carpinejar, citando a frase que completa a sentença acima.
Depois de mais uma pausa, Carpinejar complementa:
— Transgredir o luto é um desespero pela vida, tanto que falo no livro tu tens a sensação de que o morto está presente por tudo, de que ele pode ler teus pensamentos… O que tem de gente confessando seus erros, seus pecados, é um momento de expiação absoluta, de catarse. Você se confessa para quem estiver na sua frente, pode ser um garçom...
O escritor revela que o nome do livro, Depois é nunca, nasceu antes dos textos para compor a obra.
— O título serve pra nos darmos conta da intensidade do agora antes da despedida. Porque cultivamos o passado e cultuamos o futuro, nem sempre estamos no presente. E porque é muito triste uma vida em que a memória é feita de frustrações e desejos que não foram cumpridos.
Ou seja, a morte nos ensina ontem, hoje e sempre o valor e a urgência da vida para sublimar o imponderável.