De março de 2020 para cá, mais de 600 mil vidas foram perdidas no Brasil para uma única doença, a covid-19. Neste período, o Rio Grande do Sul chegou a registrar mais mortes do que nascimentos. O luto nestes 19 meses, então, passou a fazer parte do cotidiano da população, e isso fez com que Fabrício Carpinejar sentisse necessidade de escrever sobre o assunto.
— Nunca enxerguei a morte desta maneira, tão próxima quanto hoje. Então, veio essa urgência de abordar este assunto, de dar esse abraço. Queria poder falar da morte sem pudor, sem medo — explica.
A ideia do autor, que trabalhou em Depois É Nunca (Bertrand Brasil, 128 páginas, R$ 39,90) desde quando a pandemia começou a mostrar o seu potencial de letalidade, era transformar o livro em um ombro amigo para todos aqueles que perderam alguém. Em suas reflexões, o escritor pretende, de maneira delicada, ajudar para que as pessoas que estão sofrendo com a ausência "não se sufoquem” e, com isso, consigam aprender a conviver com a perda.
— Depois que você tem um morto na sua família, não tem mais como retornar ao que era. Você não tem como eliminar aquela dor. Você tem como conviver com ela, você vai ajeitar aquela dor para doer menos, mas não tem como apagar. Não tem como apagar uma cicatriz — enfatiza Carpinejar.
Assim, ao longo de 128 páginas, o autor pretende que a sua narrativa seja "como uma única conversa", sendo norteada pela saudade, mas também pela esperança. O livro inteiro, para dar essa sensação de proximidade do escritor com o leitor, conta com textos interligados, sem pausas de títulos.
Depois É Nunca, logo na abertura, conta com a dedicatória "para os familiares e amigos das centenas de milhares de vítimas da covid-19 no Brasil". A decisão de fazer esta homenagem aos enlutados pela doença, segundo o escritor, é para reforçar que não dá para "fingir que nada aconteceu".
— Não tem como negar o país, não tem como negar o nosso tempo, não tem como negar onde nos encontramos. As pessoas podem negar até um certo momento, mas não tem mais como negar, não tem como procurar subterfúgios, atenuantes. Houve uma matança generalizada — diz o escritor.
O orgulho
Entre as reflexões que Carpinejar faz na publicação, abordando desde as memórias guardadas do derradeiro momento em que chega a notícia da morte de alguém, passando pela incredulidade, também existe um ponto que o autor considera simbiótico com o começo do luto: o orgulho.
Segundo ele, o sentimento é importante no período inicial da perda, pois é ele que vai "dar combustível para dar a volta por cima". Porém, o poeta enfatiza que o orgulho tem data de validade, pois quem o cultiva por muito tempo pode ficar alheio à vida em função da ausência, tornando-se indiferente e egoísta.
— O orgulho é como um superpoder quando você está frágil demais. Por ele, você continua vivendo, trabalhando, cuidando da família. O orgulho faz com que você lide com o começo do luto, mas depois você precisa pedir ajuda. Você precisa se despedir dele. Depois de um tempo, ele começa a tirar você do convívio — pontua o autor, destacando que Depois É Nunca serve para ajudar nessa fase do "pós-orgulho".
Visões
O autor acredita que colocou, em sua obra, diversas perspectivas em torno da morte. Inclusive, aconselhando na questão do comportamento para lidar com alguém que está passando pela fase do luto.
— Por exemplo, quando você tem um amigo que perdeu alguém, dê espaço para essa pessoa, não faça perguntas indiscretas, não tente ser mais importante do que a pessoa que está sofrendo. Assim, vou reconstituindo cenas a respeito da morte. O livro tem uma cumplicidade afetuosa, mas o tema é duro — destaca.
Mas, mesmo com a dificuldade de abordar o assunto, Carpinejar acredita que o livro conta com cenas comoventes, inclusive ao abordar a questão de que quase todo mundo que está prestes a morrer quer dar a mão antes de partir, experiência que o autor vivenciou ao se despedir de seus avós.
— É um silêncio de catedral, irrepetível na vida. E há uma generosidade na doença em que todo mundo que está prestes a morrer melhora um pouco para poder se despedir. Parece até que a pessoa vai ter alta, que vai melhorar, mas não. Ela juntou todas as suas forças, todos os seus trocados, para conseguir dizer que está indo. Até na mais cruel despedida, existe essa educação das últimas palavras — relata.
Mesmo com essa vivência, Carpinejar diz que o seu livro não tem a perspectiva de quem perdeu alguém e presta uma homenagem, mas sim sobre o lugar de empatia, sobre o ato de se colocar no lugar do outro:
— Não posso substituir aquilo que sinto por aquilo que o outro está sentindo, mas posso estar ao lado. Estar ao lado é sempre muito mais difícil, porque você sempre quer, de uma certa forma, ser valorizado pelo sofrimento. Aí, você fica tomando sofrimentos emprestados. Não há essa dramatização no livro. Reconheço os meus limites.
O patrono
A chegada às livrarias de Depois É Nunca está marcada para esta segunda-feira (11) e, no dia 29, começa a 67ª Feira do Livro de Porto Alegre, que retorna parcialmente para a Praça da Alfândega e que tem Carpinejar como patrono. De acordo com ele, o mês cheio de novidades foi coincidência, uma vez que o livro já estava programado para a data antes dele saber que seria o símbolo do evento literário neste ano.
— Isso só reforça o meu papel de dar palavra a quem não tem encontrado as suas próprias. E tenho obrigação, como patrono, de jamais subestimar a dor do outro, de nunca dizer que é bobagem, nunca usar a régua da minha vivência. É tão estranho isso, mas o que mais as pessoas precisam hoje é do abraço e é o que a gente vai precisar inventar: um novo abraço, mas com os olhos — diz.
Perguntado se está tranquilo com a recepção do livro neste momento do país e seguro com o conteúdo de sua obra, que toca em um tema tão delicado, Carpinejar responde, aos risos:
— Tranquilo nunca, seguro jamais. Se tivesse, não seria literatura.