Promover uma intervenção de arte urbana no bairro Euzébio Beltrão de Queiroz, em Caxias do Sul, a fim de ajudar a mudar a percepção sobre o espaço. Esse é o objetivo do projeto Mosaico da Quebrada, que irá unir artistas e moradores. A ideia consiste em colorir as moradias, a exemplo do que foi feito na favela de Santa Marta, na Zona Sul do Rio de Janeiro.
— O Mosaico na Quebrada vai dar uma cara nova para o Beltrão de Queiroz, unificando arte, dignidade, visibilidade, cor e cidadania. Quem mora no bairro será ouvido e é a comunidade que vai escolher que cor quer que as casas onde mora sejam pintadas e se quer que as moradias sejam parte do projeto — afirma um dos idealizadores da proposta o MC caxiense Jankiel Francisco Cláudio, o Chiquinho Divilas, que vive no bairro.
Em Caxias, serão pintadas as fachadas das casas e de três escadarias da comunidade, dando cor a espaços que merecem ser valorizados. As escadas também terão mosaicos de azulejo coloridos. Para se tornar real, o Mosaico na Quebrada precisa da união e parceria dos moradores, porque são eles que vão autorizar e participar das ações. A pintura começará por duas escadarias internas do Beltrão de Queiroz, e também a escadaria que liga a Rua Bento Gonçalves aos fundos do antigo INSS.
Rapper e educador social, Chiquinho usa imagens de grafitagem do mundo inteiro nas atividades que desenvolve no Beltrão. Em 2018, quando mostrou a imagem da comunidade de Palmitas, em Pachuca, no México, aos alunos, um deles se empolgou com o que viu:
— Lá é uma comunidade muito semelhante ao Beltrão de Queiroz. Eu apresento o antes e o depois da pintura e o retorno dos alunos é instantâneo. Um dia um estudante perguntou e me instigou: "Chiquinho vamos fazer isso no bairro?". Eu pensei na hora, baita ideia. De lá pra cá, falo muito sobre isso e joguei a ideia para o mundo.
O projeto começou a sair do papel quando chamou a atenção da arquiteta Jéssica De Carli, presidente do Instituto SAMbA. A entidade promove, coordena e executa ações e projetos de arte urbana.
— Hoje, o sonho não é só nosso, ele é das lideranças comunitárias, dos moradores e de quem quiser somar também porque "sonho que sonha junto é realidade'' — afirma Chiquinho, em referência a música Prelúdio, de Raul Seixas.
Como será feito
A arquiteta Jéssica de Carli preside o Instituto SAMbA e também integra o Vivacidade, que já atua em conjunto com o rapper no projeto Poesia de Rua, que é financiado pelo Ministério Público (MP). A proposta deste projeto é trabalhar oficinas de rima, de grafite e de hip hop com crianças e adolescentes do bairro. Depois serão feitos painéis e grafitagem em pontos da cidade.
Já o Mosaico é uma intervenção urbana que impactará a comunidade do Beltrão ao longo dos anos. A arquiteta explica que a primeira fase é o diálogo com a comunidade e com os líderes do bairro:
— A ideia veio de um um sonho do Chiquinho e de uma vontade da comunidade. Nós abraçamos o Mosaico na Quebrada e sabemos que não é um projeto para um ano, mas para uma década. É um projeto de vida e tem impacto grande na comunidade. Só se realiza com a vontade dos moradores, tem que ser uma vontade deles. Os que já foram consultados estão bem pilhados e empolgados mesmo com a proposta — ressalta Jéssica.
Para ela, a ideia é ousada pela magnitude:
— É uma interferência urbana e artística de dimensões que acredito que aqui no RS nunca foi feito. Fizeram isso na favela Santa Marta em 2015 e foi um projeto que levou quatro anos porque eles pintaram a favela inteira. Demorou bastante tempo, porque tem que ter esse diálogo com os moradores.
O mapeamento com a quantificação do número de casas do Beltrão está em andamento. A partir do levantamento e da conversa com os moradores, as informações são repassadas para designers e artistas.
— Temos de 100 a 120 casas no Beltrão. Com base nisso será feita uma maquete gigante para mapear as moradias e definir com eles como faremos. Fizemos visitas e é uma conversa com cada um deles. A gente diz que o final do projeto talvez nem aconteça porque acreditamos que envolva tanto a comunidade que eles mantenham e renovem a pintura ano a ano — afirma ela.
A verba será captada via Lei de Incentivo a Cultura (LIC) tanto municipal quanto estadual e de parcerias com empresas. Também contará com o apoio da prefeitura e demais entidades de Caxias do Sul. Sobre prazos, Jéssica acredita que entre o final desse ano e o início de 2022 começará a pintura dos becos e da escadaria da Bento.
Cara nova para o Beltrão
Além da renovação das fachadas, os moradores terão a oportunidade de fazer cursos de capacitação na área de pintura e de mosaicos de azulejo. A finalidade é gerar emprego e renda. Também terá oficina de arte para as crianças e adolescentes. A inspiração veio da escadaria Selarón que enche de cor um dos caminhos entre os bairros da Lapa e de Santa Teresa, no Rio de Janeiro. Jéssica e Chiquinho estiveram no Rio em abril para ver de perto os projetos e se inspirar para tirar a ideia do papel.
— Durante todo esse processo teremos uma construção coletiva. Vai ter os artistas, mas toda a comunidade vai pegar junto então não terá a assinatura de uma pessoa única. Acreditamos que esse conhecimento proporcionado pelas oficinas ajude os moradores a se profissionalizar — explica Jéssica.
A interferência artística também quer integrar a comunidade e ampliar o senso de pertencimento dos moradores, bem como dar visibilidade e mais segurança ao bairro.
— A arte pode melhorar o meio ambiente e também o psíquico de cada um. Queremos ajudar nesse sentimento de pertencer, porque é uma conversa com cada um dos moradores para que veja o Beltrão como uma comunidade que as pessoas se orgulhem e também mais segura.
A arquiteta cita que há dados que mostram que os índices de criminalidade caem em pontos onde são feitas intervenções artísticas como a que pretendem fazer no bairro. Já Chiquinho observa o bairro em que cresceu, a "quebrada dele", e sonha com dias em que o Beltrão seja realmente valorizado:
— Se um morador ou moradora for reconhecido pela obra que fez já ganhamos o jogo. Se um projeto social for incluído na comunidade, fruto das cores e do colorido das casas é um sinal que vencemos. Se os moradores responderem que após o projeto concluído, fortaleceu a autoestima, o sentimento de pertencimento, ganhamos o jogo. Sei que pode ter um retorno ainda maior: ser um cartão postal para a Z.O (Zona Oeste) de Caxias, a diminuição da violência e incluir o Beltrão no mapa turístico, entre outras atividades que podem gerar renda e ficar o dim-dim na quebrada.
O que significa para o Beltrão de Queiroz
A reportagem esteve no bairro para que lideranças e os idealizadores explicassem como pretendem renovar e valorizar o cenário. Durante a caminhada pela Rua Cristóforo Randon, trocaram ideias e mostraram com carinho que cada espaço do bairro carrega histórias de quem vive ali. Pessoas que batalham por uma vida melhor e mais leve. Apontando para uma das escadarias e casas, Chiquinho conta que pensam em grafitar em uma das paredes um símbolo com quem a comunidade se identifique, e além de pintar as fachadas também fazer ajustes necessários nas moradias. Para ele o Mosaico na Quebrada significa esperança:
— Queremos que o projeto traga cor e esperança para o Beltrão de Queiroz. É um projeto de ressignificação e pertencimento. Não apenas pintar as casas, mas revitalizar uma região historicamente prejudicada. É a hora da virada, usando a cultura como ferramenta para a transformação social e quem sabe, através desse projeto, consolidar uma identidade.
A comunidade, que fica entre o Estádio Centenário e o Cemitério Público Municipal, é mais conhecida na cidade pela criminalidade. Muitos se referem de forma pejorativa ao bairro como Vila do Cemitério. Miriam Machado, 48 anos, chama o Beltrão de Queiroz de casa. O lar onde nasceu e de onde não pretende sair. Presidente da Amob, ela conta que foi inspirada a seguir na luta pela comunidade por Adão Borges da Rosa, o Dão, como era conhecido no Beltrão, e que foi um dos maiores líderes do bairro.
— Eu me identifico com o bairro e não penso em sair daqui. Comecei com trabalho voluntário quando era jovem e nunca imaginei que seria presidente do bairro. Foi a melhor coisa que eu fiz, e eu tenho o respeito de todos aqui. Não quero ir embora. Se um dia eu for quero poder olhar para trás e ver que ajudei a construir algo e melhorar o bairro.
Para ela, o Mosaico é uma oportunidade de inserir quem vive no Beltrão na sociedade:
— Pertencimento para mim é a palavra chave. Eles também estão aqui e pertencem à sociedade. Queremos valorizar o nosso lugar, porque muitos têm vergonha de morar ou de falar que moram aqui. É um projeto inovador, e que pode trazer turistas da Serra e até os caxienses para conhecer o nosso bairro. Irá diminuir a violência e gerar interesse em investir em projetos sociais para as crianças e adolescentes, e espero que especialmente para as meninas. Minha preocupação maior é com elas porque as iniciativas que temos raramente se identificam com o que é a cara delas. Espero que o Mosaico na Quebrada mude o destino delas e que tenham perspectivas de vida diferentes.
O vice presidente do bairro, Yuri Velasque Machado, 25 , é uma das lideranças mais jovens. Ele acredita que o Mosaico irá mudar o maneira como o Beltrão é visto:
— De forma totalmente positiva, o Mosaico vem para dar uma nova cara ao Beltrão, que muitas vezes é discriminado. Vai ser a virada. Tenho certeza de que as pessoas irão ver com os outros olhos a nossa comunidade. Trará novos projetos e a confiança de novos parceiros. Trará a autoestima dos moradores e o orgulho de dizer que pertence ao Beltrão. Não precisará mais mentir no currículo onde mora — avalia o jovem.
Ele ressalta que todas as iniciativas precisam do apoio dos moradores, porque são feitas por eles e para eles, mas as ações também precisam de ajuda da sociedade caxiense.
—O que mais precisamos é de confiança e apoio da sociedade em geral. Precisamos de cursos de capacitação. Muitos jovens seguem o caminho inverso daquele que queremos por falta de oportunidade. Há muito talento no bairro, basta saber garimpá-lo. Tem muito médico, advogado, bancário e, por que não?, gerente de uma multinacional oculto dentro das periferias. Eu como um dos mais jovens líderes comunitários, preto, acadêmico, classe média, sou exemplo de que podemos mais e junto dos parceiros busco a dignidade do bairro Euzébio Beltrão de Queiroz — aponta Yuri.
Isabel Cristina Borges, 48, conhecida como Nega, também é um das vozes mais presentes da comunidade. Ela atua em várias frentes para ajudar o bairro onde nasceu:
— Vai mudar bastante a imagem do Beltrão, porque vivemos em uma sociedade onde imagem é tudo, e tem umas casas mais precárias que vão receber reforma e pintura. O projeto vai trazer luz para o bairro. Eu amei. Se nos dias de jogos do Caxias já aparecem imagens dos moradores assistindo ao jogo no bairro, imagina todo colorido. Será um ponto turístico e vamos começar a sair mais em outras manchetes de jornal, com uma outra visão do nosso bairro — espera.
Presidente do Centro Cultural Beltrão de Queiroz, denominado Instituto Adão Borges da Rosa, Paulo Roberto da Rosa Teixeira, 49, conhecido como Cara Preta e sobrinho de Dão, também acredita que a iniciativa beneficiará todo o bairro.
— É um proposta audaciosa, mas um projeto bonito. Junto com a comunidade vamos poder tirar essa imagem ruim que foi criada em relação ao bairro. A nossa comunidade pode se tornar um lugar turístico. Terá o embelezamento das casas e a reforma de janelas, telhados e pinturas para colorir o Beltrão. O Mosaico pode trazer incentivos e mais projetos sociais para que as nossas crianças tenham um futuro melhor. O pessoal da comunidade está entendendo que será bom para todos e estão ansiosos e empolgados para que o projeto comece, porque vai modificar a comunidade — afirma ele, que também preside a escola de samba e o time de futebol XV de Novembro.
Outros planos
Dentro do Mosaico na Quebrada pretendem também desenvolver o projeto Morrinho, baseado no que foi instalado na favela Pereira da Silva, no bairro Laranjeiras, zona sul do RJ. A história da brincadeira começou em 1997, quando o jovem Cirlan Souza de Oliveira, de apenas 14 anos, e o irmão Maycon de Oliveira, oito, passaram a reproduzir o cenário da favela usando tijolos e outros materiais recicláveis. A brincadeira chamou atenção de outros jovens e deu origem a uma maquete de pequena escala, que mede hoje 450 metros quadrados e enfeita o cenário da Favela Pereira da Silva. Usando carrinhos, bonequinhos de lego e outros objetos, foram reproduzidos também os habitantes da favela e todos os detalhes das ruas.