A ideia de pulverizar produtos contra o coronavírus em áreas urbanas utilizando aviões, que repercutiu nesta terça-feira (16), não é exclusividade do vereador de Canela. O uso das aeronaves agrícolas já foi cogitado por prefeituras Brasil afora, o que motivou um posicionamento contrário do sindicato que representa as empresas da categoria, enquanto não houver aval científico da medida. No entanto, é na substância sugerida pelo vereador que recai o maior descompasso: embora eficiente para limpeza das mãos, o álcool gel não é recomendado nem seguro para ser pulverizado em ambientes.
Ainda em abril do ano passado, o Sindicato das Empresas de Aviação Agrícola (Sindag) emitiu nota afirmando não ser possível fazer a aplicação aérea de produtos contra o coronavírus “sem uma pesquisa detalhada, acompanhada de equipe multidisciplinar e chancelada pelos Ministérios da Saúde e Meio Ambiente”. A divulgação foi motivada por consultas que chegavam às empresas, principalmente por prefeituras que começavam a empregar caminhões pipa e pulverizadores costais para limpar espaços públicos, utilizando desinfetantes à base de cloro. A ideia era de que o uso de aviões pudesse cobrir de forma mais rápida e segura (pelo distanciamento dos operadores) áreas ainda mais amplas.
Segundo o diretor executivo da entidade, Gabriel Colle, desde então não houve nenhum avanço em termos de pesquisa e comprovação da tese. Ele destaca que seria necessário respeitar a elaboração de métodos e validação dos resultados antes de projetar qualquer uso.
— Não há nenhuma medição da eficiência de aplicação. O que nos falta hoje é pesquisa. Talvez, o que a gente possa motivar com isso é que o Ministério da Saúde, ou uma secretaria da Saúde, uma universidade, compre a ideia e faça uma pesquisa. Aí no estudo precisa aparecer a altura ideal da aplicação, a quantidade, e, principalmente, qual é o tipo de produto. É uma possibilidade, mas a ideia do álcool em gel provavelmente foi infeliz — explica Colle, que recebeu o vídeo do vereador de Canela de um amigo norte-americano, dando uma dimensão do tamanho da viralização. A fala também foi parar no jornal britânico The Guardian.
Veja o vídeo:
Interessado na possibilidade, o sindicato procurou referências em outros países e encontrou notícias vindas do Chile. Por lá, a prefeitura de Santa Cruz contratou uma empresa para pulverizar um desinfetante orgânico fabricado em Luxemburgo, ainda em abril do ano passado.
— Teve a aplicação, mas a gente não teve nenhuma informação sobre a eficiência. Não houve retorno, inclusive da empresa que fez o trabalho — esclarece o diretor do Sindag.
Uso de drones e avião contra outras doenças
As aeronaves agrícolas são empregadas no combate a doenças provocadas por mosquitos, como dengue, chikungunya e zika, em países como Estados Unidos, Cuba, Austrália, Espanha e Argentina. A prática é prevista no Brasil em lei de 2016 mas, segundo Colle, depende da publicação de estudos no Brasil para entrar em vigor.
Em relação ao uso de drones para desinfecção de ruas, há testes envolvendo empresas que também são filiadas ao sindicato, inclusive no Rio Grande do Sul. Os equipamentos são utilizados para desinfetar locais pontuais, evitando a exposição de pessoas que teriam que fazer esse trabalho — ideia diferente da pulverização em grandes áreas proposta pelo vereador.
— Se houvesse um produto que comprovadamente funcionasse, em uma cidade como Canela, por exemplo, um avião aplicaria em toda a extensão em questão de duas horas, no máximo. Mas teria que ser um produto eficiente e seguro — ressalta.
OMS não recomenda pulverizações
A bióloga e imunologista Melissa Markoski, professora de Biossegurança da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e membro da Rede Análise Covid-19, lembra que as gotículas liberadas no ambientes por pessoas contaminadas pelo coronavírus, ao tossir, por exemplo, tendem a cair em superfícies próximas a elas. Já as gotículas menores, chamadas aerossóis, ficam pouco tempo dispersas no ar. Por isso, a pulverização de produtos, seja por aviões ou por drones, não são eficientes para combater o problema.
— Tanto o que cai na superfície como o aerossol precisa do corpo da pessoa receptora para que o vírus possa entrar na célula, se multiplicar. No tempo que o vírus fica no ambiente, é rapidamente disperso. A ação da luz solar já é o suficiente para, em poucos minutos, inativar essas partículas que ficam ali — explica.
O outro fator que impede a medida é relacionado à biossegurança. Segundo Melissa, o álcool pode ser usado na higiene das mãos e na limpeza de superfícies e compras em casa, por exemplo. No entanto, a pulverização de produtos em ambientes é desaconselhada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) desde maio de 2020.
— Como você vai liberar no ambiente uma substância potencialmente inflamável? Além disso, vamos imaginar pessoas alérgicas respirando esse ar. Pode ser perigoso por contaminar o ambiente, dessa vez com uma substância química e não com o vírus — destaca.