Onze de março de 2020 será lembrado na história de Caxias do Sul como o dia em que o primeiro caso de coronavírus foi confirmado na cidade. Para a educadora Letícia Ferreira e o promotor de eventos Sílvio Ribeiro, o dia 11 ficará para sempre marcado com medidas bem específicas: 47 centímetros e 2,85 quilos.
A cesárea estava agendada para o dia 30 de março; Letícia teve contrações no dia 6 e, por fim, Bruna, a primeira filha do casal, veio ao mundo às 17h57min do emblemático dia 11. Pela imprevisibilidade, os avós não puderam estar no dia do parto e deixaram a visita para o dia seguinte. Até aí sem problemas, máscaras ainda não eram obrigatórias e o hospital não tinha restrições.
A bebê de Letícia e Sílvio nasceu com 36 semanas, quando o esperado pelos médicos gira entre 37 e 42. À medida que mais se falava no vírus, a família começou a temer o contágio em razão dos pulmõezinhos da Bruna; a mãe precisou tomar injeções para ajudar na formação do órgão da bebê após as primeiras contrações.
— A gente não sabia como ela estaria por ter nascido antes. Nos acalmamos por pensar: "(a doença) não afeta tanto as crianças". Mas fiquei com medo, agora que eu tive ela, como vai ser o mundo? É tua primeira filha. Quando nasce, que seria esse momento... deu todo esse pane no mundo e a gente não sabia mais como agir. A gente queria privar ela do mundo, esconder pra proteger — diz a educadora.
Entre as mudanças de planos, estava o batizado, planejado para ocorrer em uma cerimônia em casa, como era tradição na família. Ainda não ocorreu. A festinha do primeiro aniversário, marcada para este domingo, também teve de ser cancelada. A licença-maternidade de Letícia, que duraria quatro meses, acabou indo até meados de setembro, quando ela retornou à escolinha. Para não deixar a bebê na casa da avó, o que aumentaria o risco de exposição da idosa, a mãe optou por levar Bruna junto. Já Sílvio, que tem uma empresa de eventos, precisou buscar outro emprego e passou a trabalhar na produção de aparelhos de ar-condicionado e refrigeradores. Alguns membros da família, como o bisavô que reside em Jaquirana, ainda não conhecem a bebê. Ao menos não pessoalmente.
— (O maior aprendizado foi) não perder o contato, mesmo que a gente não pudesse se ver. A família tem que estar unida pra lutar para as coisas darem certo. A gente podia escrever, se falar, se ver pelo celular. As pessoas mandavam mensagem: "como vocês estão?", o tanto de gente que se importava! Ficou essa parte e não perder essa esperança, a gente ainda tem esperança. Daqui um tempo vai melhorar. A gente espera um futuro melhor pra nossa filha— resume Letícia.
Quase como se concordasse com a mamãe, Bruna, que estava dormindo até esse ponto da entrevista, se manifestou ao fundo da ligação. De personalidade calma, mas com seus momentos de brava, segundo a mãe, a menininha ensaia os primeiros passos e já fica em pé. Na quarentena, a maior alegria foi quando ela começou a engatinhar, aos nove meses. O barulho dos joelhinhos se arrastando pelo apartamento fez o casal congelar na hora e perguntar um pro outro: "tu viu o que eu vi?"
A memória se mistura às fotos do nascimento e da primeira comida, à primeira roupinha, ainda guardada, e à lembrança de quando surgiu o primeiro dente. Bruna não conhece o shopping, por exemplo, mas deu seus passeios para tomar sol, com distanciamento, pela lagoa do bairro Parque Oásis, onde a família mora. Conforme os pais, nunca foi de chorar muito e, além de dar beijo, já sabe fazer "tchau" com a mãozinha — saudação, aliás, bastante adequada para os tempos de pandemia.
— No primeiro dia em que eu ouvi o choro dela, foi muito emocionante e foi aí que descobri que ela era a pessoa mais importante da minha vida. Quando ela riu pela primeira vez, cada sorriso dela nos fazia esquecer do que estava acontecendo de ruim lá fora. Cada evolução dela é muita alegria pra nós — acrescenta o papai coruja.
Entre descobertas e aprendizados
Quem divide a data do aniversário com Bruna é o Martin, assim como a mãe dele, Daiane Maino Tramontina. Mãe também da Valentina, 4, a arquiteta explica que a ideia de marcar a cesárea do segundo filho com o advogado Mateus Tramontina veio para concretizar o maior presente de aniversário, o nascimento do caçula.
— Não somos pais de primeira viagem, a gente já tinha vivenciado a maternidade e a paternidade, claro que em tempos diferentes. Quando o Martin nasceu, eu sabia que a pandemia estava acontecendo no mundo, mas sempre fui muito otimista — conta Daiane.
A ficha caiu mesmo quando a família soube, no dia seguinte, do primeiro caso confirmado em Caxias, notificado, inclusive, no Complexo Unimed, mesmo hospital onde o bebê nasceu. Assim como Letícia, Daiane teve medo.
— Quando percebi que tudo fechou uma semana depois, eu fiquei pensando: "botei um filho nesse mundo desconcertado". Era muito triste. Quanto valor tinha nossa liberdade. Eu estava muito grata por estar em casa, cuidando do meu filho, mas, ao mesmo tempo, queria que ele crescesse, queria sair de carrinho, pegar um ar. Foi difícil não poder mostrar pra ele as coisas lá de fora — relembra a mãe.
Além de proteger a família do contágio, ter passado mais tempo em casa trouxe novidades. Como a convivência com a mana, que é muito ativa, foi maior, Martin começou a caminhar aos nove meses. Entre descobertas e aprendizados, alguns mais cedo para uns e mais tarde para outros, histórias como a dos pequenos Martin e Bruna, num ano em que tantas famílias perderam pessoas e não só números, mostram que, por trás das estatísticas, a morte não pode ser banalizada. E nem a vida.