Há um ano, Caxias do Sul vivia na plenitude o velho e costumeiro normal: volta às aulas, retomada das atividades após o veraneio na praia, uma ressaca boa após três anos sem Carnaval de rua, a expectativa para a realização da Festa das Colheitas nos pavilhões da Festa da Uva. Até que, às 19h20min de 11 de março de 2020, a prefeitura oficializou o primeiro diagnóstico positivo da covid-19, doença que já assustava o mundo e que havia sido confirmada no Rio Grande do Sul um dia antes.
A rotina da cidade não sofreu grande impacto imediato. Enquanto autoridades de saúde estavam preocupadas em evitar a transmissão comunitária, fazendo o rastreamento de quem havia feito viagens internacionais e isolando aqueles que apresentavam sintomas, parte da população iniciava uma corrida aos supermercados para garantir itens como papel higiênico e água, além de álcool gel. Foi somente 10 dias depois, com a publicação de um decreto proibindo o funcionamento de tudo que não fosse essencial e com a adesão das duas maiores empresas da cidade à paralisação, que foi possível perceber efetivamente que a pandemia havia chegado a Caxias. Um detalhe importante sobre a segunda-feira que Caxias parou: havia apenas cinco pessoas contaminadas pelo coronavírus na cidade.
A gente foi preparado para salvar vidas, não ter que escolher entre vidas
ANDRÉA DAL BÓ
Médica infectologista
Um ano depois, entre idas e vindas de medidas restritivas, Caxias vive o pior momento da pandemia: o primeiro caso de covid-19 se transformou em 32.710 pessoas contaminadas, sendo que 520 pacientes não resistiram aos efeitos da doença. Além disso, a cidade precisa lidar com os dilemas de uma economia fragilizada.
O monitoramento de dados da pandemia na cidade, que começou com os casos suspeitos, passou para confirmados, curados e mortes, está prestes a ter mais um triste e evitável patamar: o das pessoas que morreram à espera de um leito de UTI. Até o fim da tarde de quarta-feira (10), eram 54 pacientes aguardando uma vaga pelo SUS.
— O profissional de saúde não foi preparado para escolher quem vai viver e quem vai morrer. E eu não queria que nenhum colega chegasse a esse ponto que, infelizmente, a gente está prestes a chegar. A gente foi preparado para salvar vidas, não ter que escolher entre vidas — afirma a médica Andréa Dal Bó, integrante da Sociedade Riograndense de Infectologia e que ajudou a coordenar as ações da prefeitura contra o coronavírus na cidade até o ano passado.
A infectologista destaca a evolução da ciência ao longo de 12 meses, em relação ao diagnóstico da doença, conhecimento dos sintomas e até o desenvolvimento de vacinas. Além disso, há a confirmação de que os protocolos recomendados desde o surgimento da covid-19 efetivamente funcionam para evitar a contaminação. Uma das poucas constantes daquele 11 de março diz respeito às medidas de prevenção. Desde o início da pandemia, o mantra da higienização das mãos, do uso de máscaras e do distanciamento social é o que vem salvando vidas.
— Com um número tão menor, a população tinha uma adesão realmente maior às medidas de prevenção. Mesmo com tanto conhecimento adquirido houve uma perda do medo e uma negação da doença e do que ela pode provocar. O que mudou de um ano para cá foi o medo — analisa Andréa.
Perda do medo e falta de empatia
A médica lembra que a perda do medo do contágio não é exclusividade da covid-19, comparando à alta de infecções por HIV. Em 2018, o Brasil contabilizava um acréscimo de 21% de casos em relação a 2010.
— As pessoas perderam o medo do HIV, embora hoje a gente tenha uma condição muito mais favorável, é verdade. De qualquer forma, as pessoas foram se descuidando, não usando mais preservativo, se arriscando nas relações. Da mesma forma a gente vê isso com a covid, em um tempo muito mais curto, infelizmente.
"A gente ainda luta contra um vírus muito ruim é que o vírus da falta da empatia"
ANDRÉA DAL BÓ
Médica infectologista
Mais do que a naturalização diante de uma situação adversa, a médica atribui o agravamento da pandemia a outro comportamento social tão ou ainda mais perigoso. Diante de uma mutação do vírus que tem capacidade de transmissão duas vezes maior em relação ao ano passado, o que significa mais pacientes acometidos, demandando ainda mais da estrutura hospitalar, há quem insista em não se colocar no lugar do outro.
— A gente ainda luta contra um vírus muito ruim é que o vírus da falta da empatia. O olhar que diz "não aconteceu comigo, então eu vou continuar sem máscara e vou continuar me aglomerando, porque eu estou cansado". Mas com certeza ninguém está mais cansado do que os profissionais de saúde que estão na linha de frente, trabalhando diariamente há mais de um ano, tentando levar essa informação, tentando sensibilizar a população. Estamos cansados, mas o trabalho é incansável. Às vezes, eu me sinto como se estivesse gritando em um "grand canyon". Essa é a sensação, porque eu falo, falo, falo, a gente vem falando a mesma coisa ao longo de um ano. As pessoas sabem, não é falta de informação, mas elas se apegam infelizmente a fatos que não contribuem — desabafa.
Circulação de pessoas é igual a leitos ocupados
Desde 24 de fevereiro, quando quebrou o recorde de casos ativos de covid-19, Caxias só vê a curva de contaminação subir. Até quarta-feira, eram 3.993 pacientes com potencial transmissão do vírus e que têm ou ainda podem ter complicações da doença. Mesmo com a adoção de medidas mais restritivas, impostas pela bandeira preta do modelo de distanciamento controlado, até então inédita na cidade, a infectologista afirma que ainda é cedo para projetar quando os casos vão começar a diminuir. Ela destaca que a circulação de pessoas teria que ser ainda menor para barrar a disseminação do vírus e a sobrecarga dos hospitais.
— O vírus não circula sozinho, ele precisa da pessoa para circular. Basta ver o que aconteceu aqui no Natal. Nós estávamos beirando um colapso como o que a gente está enfrentando agora, alto pico de internações de casos, que conseguiu ceder porque as pessoas se dispersaram com os feriados de fim de ano. Pela redução da mobilidade houve uma redução incrível de contaminação até final de janeiro. E quando voltou a ter a mobilidade, com o retorno das atividades ao final do veraneio, voltou a aumentar o número de casos.
Quando houve a redução de casos, a indicação de especialistas era para que se tomassem precauções para quando a mobilidade voltasse a subir. Ao contrário disso, houve novas flexibilizações, como retorno de aulas presenciais e liberação de espaços como parques e praças, por exemplo.
— A gente precisaria de uma circulação bem menor de pessoas nas ruas e a gente não vê isso. A gente sabe que Caxias é uma cidade industrial e um bom percentual da indústria ainda trabalha, então não reduziu a circulação. Isso faz com que a gente continue em patamares tão altos. Enquanto a gente tiver pessoas circulando, vai ter o vírus circulando e vai ter leitos ocupados — afirma Andréa.
Só a vacinação pode devolver a normalidade
Se a chegada da vacina contra a covid-19 foi o momento de maior esperança no último do ano, o ritmo em que as doses vêm sido aplicadas ainda não corresponde à necessidade para barrar a doença. Andréa destaca que o país tem capacidade para fazer muito mais do que foi feito até agora, com equipes de saúde pública com ampla experiência no assunto, além de capilaridade de estrutura e logística para distribuição das doses. Mesmo assim, apenas cerca de 4% da população foi vacinada até agora. Em Caxias, até ontem, eram 24.422 pessoas que haviam recebido a primeira dose da vacina em uma população estimada de 517 mil pessoas.
— Todos os municípios do Brasil conseguem vacinar alguém, tem uma sala de vacina para isso. O que falta é que se tenha vontade para que isso realmente chegue até a população.
Em relação à produção dos imunizantes, Andréa afirma que o país, no momento, não tem capacidade para fabricar as doses na quantidade e velocidade necessárias para, com isso, reduzir, os casos. A compra de fabricantes estrangeiros deve resultar em entregas apenas no segundo semestre. Até lá, não há outra solução a não ser a prevenção.
— A gente precisa vacinar, para ontem, o maior número possível de pessoas. É a única forma da gente voltar ao novo normal. Até lá, ainda vai ter um bom chão pela frente. Precisamos clamar para que a população tenha adesão às medidas que a gente sabe, cientificamente, que reduzem a contaminação.