A atuação pela igualdade de direitos entre as etnias e o combate ao racismo de três personagens de Caxias do Sul foi reconhecida por meio da Comenda Zumbi dos Palmares, honraria oferecida anualmente pela Câmara de Vereadores de Caxias do Sul. Os agraciados — José Luis Borges Lyrio, Tatiane Duarte de Oliveira Silva e Paulo Roberto Borges — foram homenageados em um ato realizado no Plenário da casa legislativa na quarta-feira, 20 de novembro, Dia da Consciência Negra.
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A comenda existe desde 2005, em uma iniciativa do vereador Edson da Rosa, primeiro legislador negro eleito na cidade. A cerimônia também agraciou, pela primeira vez, um imigrante com o Prêmio Caxias: Abdou Lahat Ndiaye (Billy), fundador da Associação dos Senegaleses na cidade.
"Meu partido é a capoeira"
Quando recebeu o reconhecimento por meio da Comenda Zumbi dos Palmares, na Câmara de Vereadores, foi como se um filme de toda a vida passasse pela cabeça do agente sócio-educativo José Luis Borges Lyrio, 54 anos. Um dos momentos marcantes que veio à tona foi o dia em que conheceu a capoeira, prática que conduziu sua vida profissional e resultou na formação de um grupo que dissemina a cultura brasileira, transformando a vida de centenas de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social.
— Eu trabalhava no restaurante do Clube Guarany e escutei uns batuques, era um batizado de capoeira que acontecia no salão. Até então eu nunca tinha ouvido falar, a capoeira é contagiante, foi amor à primeira vista — lembra Lyrio, que à época tinha 17 anos.
Filho de oficial militar e empregada doméstica, em uma família de quatro irmãos natural de Vacaria, aquele ano, 1982, era o primeiro que ele vivia em Caxias do Sul. A paixão pela capoeira foi potencializada quando Lyrio começou a trabalhar como educador social na Comissão Municipal de Amparo à Infância (Comai), onde atuou de 1991 a 1999.
Ao longo de oito anos, mais de 600 crianças e adolescentes tiveram contato com a prática e outras atividades mediadas pelo educador em comunidades como Belo Horizonte, Montes Claros, Euzébio Beltrão de Queiroz e Serrano.
Desde 1995, Lyrio também mantém o Grupo de Capoeira Grilhões da Liberdade, que hoje tem cerca de 600 integrantes que disseminam a cultura da capoeira _ arte genuinamente brasileira _ a jovens gaúchos e catarinenses, trabalhando ainda o viés esportivo da atividade nas periferias. É por meio da capoeira que Lyrio atua contra a desigualdade social e o preconceito racial.
— Meu partido sempre foi a capoeira. Cada música conta uma história. Sempre expliquei pras crianças que elas podem frequentar qualquer lugar e que temos que ir à luta, buscar as oportunidades.
"Saí dos becos e vielas do Beltrão de Queiroz e sobrevivi"
Nascida e criada em Caxias do Sul, Tatiane Duarte de Oliveira Silva, 33, não só sobreviveu a muitos percalços da vida como também tem buscado fazer a diferença na vida de pessoas que vivem nas periferias da cidade.
A emoção tomou conta do discurso de agradecimento à comenda recebida na quarta-feira quando, diante de familiares e amigos que acompanharam sua luta, Tatiane destacou a importância da união e do reconhecimento da história dos povos negros no Brasil.
Alinhada ao discurso da vereadora carioca negra Marielle Franco, assassinada em março de 2018, Tatiane conta que, ao sair do bairro Euzébio Beltrão de Queiroz para viver com a mãe e os irmãos no Vale da Esperança (foto), começou a dimensionar a discriminação sofrida por negros e não-negros que vivem nas comunidades, bem como as falhas nas políticas públicas e a falta de informação, barreiras que dificultam o acesso desse público a diverso serviços básicos.
— Vivemos um momento de crise, com ataques às políticas públicas. Por falta de informação, muitas pessoas acabam morrendo — avalia a homenageada, que desde o ano passado coordena o projeto A Voz do SUS, criado por ela para mapear o atendimento de saúde junto nas comunidades e colaborar com a melhora do cenário que ela considera desigual.
À mãe — ex-presidiária que criou cinco filhos sozinha na comunidade conhecida como "Vila do Cemitério" — e a todos que fizeram parte de sua caminhada Tatiane dedicou o reconhecimento do Poder Legislativo. Ela lembra do que passou na infância, sem acesso à saúde, à cultura e ao lazer, sendo hoje envolvida com o movimento Hip Hop, o Carnaval e integrando a diretoria de etnias da União de Associações de Bairros (UAB). Tatiane também é coordenadora do Instituto Afro Origem e teve importante atuação na associação da comunidade Vale da Esperança.
— Negro, pobre e favelado não tem vez. Dentro da vila eu só lembro de tiroteio, drogas, morte. Eu tive que pensar fora da caixa para sair dessa realidade e hoje levantar a bandeira de luta e resistência. Saí dos becos e vielas do Beltrão de Queiroz e sobrevivi.
"Mesmo que digam que não, o negro ainda é discriminado"
Por ser em vida, o reconhecimento por meio da Comenda Zumbi dos Palmares foi ainda mais importante do ponto de vista do agraciado Paulo Roberto Borges, 54. Criado no bairro Euzébio Beltrão de Queiroz, em uma família engajada em ações comunitárias, ele que diz ter sido natural seu envolvimento em movimentos pelos direitos das pessoas negras e de combate à desigualdade social.
— Mesmo que digam que não, o negro ainda é discriminado, tem menos oportunidades, mão de obra menos valorizada e, por isso também acaba sendo mais marginalizado.
Citando personagens como Dão (Adão Borges da Rosa), Perci dos Santos e outros líderes comunitários ainda ativos, como Chiquinho Divilas (Jankiel Francisco Cláudio) e Cara Preta (Paulo Roberto Teixeira), Borges relata situações de dificuldade vivenciadas por muitas pessoas nas periferias caxiense e a importância das políticas públicas.
— A gente busca crescer, mas o governo tem que entrar com contrapartida. Tem pessoas sem moradia, sem vaga em escola infantil, a gente vê muita coisa e tenta buscar alternativas pra essas pessoas.
Borges diz ter sofrido preconceito racial ao longo de toda sua vida e afirma que ainda são muito recorrentes as piadas em relação à cor, citando casos recentes ocorridos em Caxias do Sul. Ele lamenta as perseguições às religiões de matiz africana e às celebrações tradicionais como o Carnaval.
— Estão acabando com o pouco acesso à cultura que a comunidade negra tem depois de tanta luta para conquistar o direito de praticá-la.
Motorista socorrista do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) há 15 anos, o agraciado deste ano também foi educador social da Fundação de Assistência Social (FAS), diretor do Conselho Municipal da Comunidade Negra (Comune) e conselheiro tutelar por três mandatos. Borges integrou, ainda, o movimento local em favor das cotas para negros e afros nas universidades, direito consolidado pela Lei Federal 12.711/2012.
— Sabe quando a gente é adolescente e quer mudar o mundo? Pois então, a minha adolescência não passou e nem vai passar.