No dia 15 de maio de 2022, Caxias do Sul amanheceu com chuva e frio. A neblina também ensaiava a presença no céu da Serra. No final da tarde, o Ginásio do Sesi recebia mais de 4 mil pessoas de 77 países para assistir à cerimônia de encerramento da 24ª Surdolimpíadas. Pela primeira vez na história, a América Latina acolhia o maior evento poliesportivo da comunidade surda. E se as dívidas de cerca de R$ 15 milhões ainda são cobradas por 130 empresas que atuaram nos bastidores, o legado esportivo ainda é comemorado pelos surdoatletas e pela própria cidade.
Para a caxiense Mariana Menegotto Cassina, do tiro esportivo, a experiência de uma Surdolimpíada em sua cidade foi incrível. Ela participou do revezamento da tocha, acesa na Suíça e que passou pela França, primeira sede dos jogos em 1924, antes de chegar para aquecer a Serra durante os 15 dias de evento.
— Eu sempre falo que cada coisa tem um sentimento, uma emoção diferente. E a emoção que senti carregando a tocha não consigo achar palavras para descrever. Saber que você é a primeira atleta caxiense a conduzir, é uma emoção e traz um carinho muito grande — declarou a surdoatleta.
Conforme Mariana, foi o seu primeiro campeonato na modalidade. Até então, pelo fato de não possuir outros surdoatletas brasileiros praticantes do tiro esportivo, não houve seletivas e nem existem, segundo ela, campeonatos para os surdoatletas brasileiros.
— Foi uma experiência válida. Pude vivenciar um campeonato, todos os tipos de emoções possíveis de serem sentidas, o período pré-prova, durante e o pós, enquanto computavam as notas para classificar os atletas para as finais. Não fui para a final por dois pontos. Mas valeu muito a experiência. Foi um aprendizado enorme e gratificante — descreveu.
No basquete, Caxias do Sul teve cinco surdoatletas: Andressa Teles de Oliveira, Morgana Gentlin Camargo, Laura Backendorf Andreazza, Marina Carvalho de Castilhos e Ketlim Janaina de Moraes Rodrigues. Elas entraram para a história da seleção feminina de basquete surda, pois foi a primeira convocação oficial em 100 anos de competição. Para Morgana, parece que os jogos foram na semana passada, os lances e a lembrança do público no ginásio do Vascão ainda estão muito presentes na memória.
— Foi inesquecível, parece que foi ontem. A equipe seleção brasileira de basquete foi convocada com 12 mulheres, com maioria gaúchas. Somos as primeiras da história. Tivemos momentos difíceis e emocionantes, mas tivemos uma união muito forte. Fomos esforçadas em busca do mesmo objetivo. As partidas foram difíceis pois as outras atletas estrangeiras eram mais experientes nos jogos — comentou Morgana.
LEGADO E ACESSIBILIDADE
Caxias do Sul recebeu atletas de diversos países. Foi também uma oportunidade de trocar de experiências, conhecer novas culturas e superar a barreira da comunicação. O Centro Surdolimpíco foi nos pavilhões da Festa da Uva e era aberto ao público. O local foi uma grande praça para estender as mãos ao mundo surdo. Para a surdoatleta Mariana Cassina, foi um momento para a cidade conhecer mais as modalidades.
— A cidade aproveitou para conhecer esta modalidade de Olimpíada para Surdos, o que talvez nem tivessem conhecimento disto. Conversei com algumas pessoas e ficaram surpresas com a quantidade de surdoatletas e conhecimento de culturas diferentes. Foi um belo intercâmbio cultural. Até para nós surdoatletas foi uma troca bem interessante – afirmou surdoatleta, que reflete sobre o que Caxias pode avançar:
Foi um belo intercâmbio cultural. Até para nós surdoatletas foi uma troca bem interessante
MARIANA CASSINA
Surdoatleta do tiro esportivo
— O que talvez a cidade pudesse fazer é incentivar mais surdos a praticarem esportes e ter incentivo da Secretaria do Esporte para que os surdoatletas possam participar (recursos para aquisição de equipamentos, uniformes), alguma espécie de bolsa atleta e disponibilidade de técnicos e intérpretes de libras para a ampliar acessibilidade.
Já para Morgana, o evento também teve um impacto social. As Surdolimpíadas foram importantes para dar visibilidade as necessidades e o que ainda precisa avançar na acessibilidade da comunidade surda na região.
— O principal é o esporte e lazer. Precisamos de mais acessibilidade para as pessoas surdas poderem participar e também competir nos jogos. É importante treinar com outras pessoas como forma de inclusão e respeito.
LEGADO EM ESTRUTURAS FÍSICAS
Entre os dias 1º e 15 de maio, 20 modalidades foram disputadas em mais de 10 locais de Caxias do Sul e da Serra para as provas das Surdolimpíadas. Locais públicos e privados receberam os surdoatletas. O Secretário do Esporte e Lazer de Caxias do Sul, Gabriel Citton destaca como positivo, as melhorias em alguns locais de uso comum da sociedade, como a pista de corrida do Sesi, que foi totalmente refeita com padrão internacional.
— A pista do Sesi é bem utilizada, os jogos escolares estão ocorrendo lá. Os jovens estão competindo em um local com toda estrutura do atletismo. Outros locais foram melhorados. Mesmo locais particulares, como Recreio da Juventude e UCS fizeram as suas melhorias. A quadra de areia da UCS hoje serve de quadras de vôlei de areia. No Vascão teve a melhoria do piso e a comunidade está aproveitando. Algumas melhorias foram com recursos da associação dos surdos. No Sesi foi o governo do estado que bancou a estrutura — descreveu.
Precisa mudar a cabeça das pessoas, no sentido de acreditar que qualquer um pode fazer um trabalho e as pessoas devem buscar conhecimento.
Além das melhorias físicas, o secretário destaca o legado intangível, que não pode ser tocado pelas mãos da comunidade, mas é percebido através do cunho social. As pessoas tiveram a oportunidade de conhecer mais as modalidades dos surdoletas e interagir. Questionado sobre o que ainda é preciso mudar e evoluir, o secretário respondeu:
— As pessoas pararem de ter medo de trabalhar com atletas com alguma deficiência. Precisa mudar a cabeça das pessoas, no sentido de acreditar que qualquer um pode fazer um trabalho e as pessoas devem buscar conhecimento. Devemos pensar em cada modalidade com as suas particularidades, mas temos que fazer um trabalho diferenciado para pessoas com deficiência. Vai desde acessibilidade nos espaços, na rua com aquele lugar com uma pessoa com deficiência e uma estrutura esportiva no paradesporto, acreditando que não é um custo, é investimento.