Com a promessa de um legado significativo na estrutura esportiva, de gastronomia, publicidade e hoteleira da região, o fim das Surdolimpíadas em Caxias do Sul representou também preocupação e dívidas para os cerca de 130 credores do evento. A expectativa, além do esporte, era de movimentar a economia regional, em restaurantes, hotéis, transportes e outros segmentos da hospitalidade e turismo. Um ano depois da competição, no entanto, fornecedores dos mais diversos segmentos ainda sofrem com as dívidas não pagas pela organização. Ao todo, de acordo com Rubens Sulivan, gestor de negócios da ProArt Comunicação Visual e um dos organizadores do grupo de empresários que ainda não receberam os pagamentos, a dívida chega aos R$ 15 milhões.
— É frustrante saber que realizaram o evento às nossas custas. Não temos perspectiva de receber. Alguns dos empresários envolvidos entraram com recurso judicial, mas, pelos desdobramentos, a gente fala em 10 anos de processo para quem sabe receber alguma coisa — pontua Sulivan.
Segundo o empresário, cuja empresa foi a maior fornecedora para a identidade visual do evento, com trabalhos voltados às 26 modalidades em 22 espaços de competição, a organização das Surdolimpíadas não manteve contato com os credores neste um ano pós-evento.
— Procuramos eles, tentei contatar a associação dos surdos, em Caxias, e a única resposta que eu tive foi que a nossa tratativa deveria ser direto com os advogados deles. Eles não dariam retorno mais para nós. Eu, como representante dos 130 empresários envolvidos, vejo que há um descaso também do setor público porque ninguém se mobilizou — desabafa.
Em agosto do ano passado, o grupo de 130 credores se reuniu em um encontro público na Câmara de Vereadores. Na ocasião, o então CEO da competição, Richard Ewald, citou a Guerra da Ucrânia durante os Jogos, a não participação da Rússia na competição e o fluxo cambial como principais motivos para que as dívidas tenham sido deixadas.
De acordo com ele, a principal fonte financiadora era o pacote logístico, vendido a cerca de US$ 1,5 mil por participante. Tal diferença, entre receber em dólares e pagar os fornecedores em real, geraria a renda necessária para viabilizar as Surdolimpíadas. Mas a queda do dólar frente ao real, e a ausência dos russos, que seriam a maior delegação presente em Caxias do Sul, justificam uma quebra de 36% no orçamento, o que representou, segundo ele, um rombo de R$ 16 milhões.
As Surdolimpíadas ocorreram de 1º a 15 de maio de 2022. Caxias foi palco de disputas entre cerca de 6 mil atletas de 74 países, que ficaram hospedados em hotéis pela região, competiram em clubes, ginásios e centros esportivos da região. Foi a primeira vez que o evento foi visto no Estado.
"A comunicação se tornou inviável, porque não tivemos mais retorno"
O diretor de Hotelaria e Relações Institucionais do Sindicato Empresarial de Gastronomia e Hotelaria da Região Uva e Vinho (Segh Uva e Vinho), Rudinei Galafassi, explica que, há um ano, nenhum contato foi feito por parte da organização das Surdolimpíadas.
— Não tivemos contato, posicionamento ou respostas. Nos primeiros dois meses, houve muitas promessas de pagamento, mas, depois disso, o Comitê Organizador (do evento) foi dissolvido. Tanto a sociedade de surdos de Caxias, que era a entidade responsável, quanto o comitê, por mais que tentássemos contato, não ofereceu mais retorno — explica.
Além de diretor do Segh, Galafassi é proprietário do Bemtevi Hotel e Restaurante, em Farroupilha. Ele explica que grande parte dos 130 credores que ficaram no prejuízo ingressaram com medidas judiciais coletivas contra a sociedade de surdos.
— Alguns ficaram com 100% da dívida, como foi o caso dos restaurantes, porque tinha sido combinado de ser pago ao final do evento. Outros ficaram com dívidas menores porque receberam alguma parte no início. Teve quem recebeu 100% dos valores, mas isso apenas antes do evento, porque depois os pagamentos deixaram de ser feitos — pontua Galafassi.
Empresa responsável pela logística precisou pagar fornecedores com caixa próprio
A empresa Brocker Turismo, de Canela, foi responsável pelos serviços de logística da competição. Todo o transporte de atletas entre os hotéis e locais de provas foi organizado pela empresa, que precisou contratar outros parceiros para a demanda. Segundo a diretora da Brocker, Carlise Bianchi, esses parceiros foram pagos. Porém, com o dinheiro do caixa da empresa, já que as dívidas com o Comitê Organizador nunca foram repassadas.
— Optamos por não entrar com nenhum tipo de ação judicial porque a sociedade de surdos não tem nenhum bem no CNPJ deles. Ao longo desse um ano, tivemos um contato com o Gustavo Perazzolo (presidente do Comitê Internacional de Esportes para Surdos, na época das Surdolimpíadas). Fizemos reuniões também com o CEO do evento, Richard Ewald. Eles nos informaram que estavam tentando fazer um projeto e publicar um livro para arrecadar recursos — conta Carlise.
De acordo com a empresária, nenhuma evolução nos pagamentos ou qualquer outro tipo de negociação ocorreu. Carlise informou à reportagem que não se sente confortável em divulgar os valores da dívida com o Comitê Organizador, mas que a Brocker Turismo foi uma das que ficou com maior déficit.
"Não recebemos nenhuma explicação", lamenta empresária de Bento
A empresária Maitê Michelon, diretora financeira da rede de hotéis Dall'Onder, de Bento Gonçalves, explica que o valor da dívida continua o mesmo. Só para a rede de hotéis, os valores não recebidos chegam a mais de R$ 822 mil.
— Não recebemos nenhum contato ou explicação. Fomos a Caxias várias vezes para conversar com o Richard (ex-CEO das Surdolimpíadas) e com as pessoas responsáveis. Eles nos passaram que estavam procurando recursos do governo do Estado, de várias formas, mas, depois disso, sem sucesso — conta Maitê.
Ela integra o grupo de credores que ingressou com uma ação judicial para a exibição de documentos, que, segundo ela, há poucos dias, foi deferida. Agora, o juiz deve analisar a necessidade de ouvir as provas testemunhais solicitadas pelo grupo.
— Estamos sem explicações, não sabemos o paradeiro das pessoas. Eu, pelo menos, não sei. Pagamos todos os nossos fornecedores porque nós, além da hospedagem, oferecemos alimentação para delegações que estavam em outros hotéis. Tivemos que pagar todos os nossos custos em dia e ficar com um prejuízo de mais de R$ 822 mil, que é um valor estrondoso, que fez um buraco no nosso fluxo de caixa — pontua.
Contrapontos
A reportagem tentou contato com o ex-CEO da competição, Richard Ewald, com o presidente da sociedade de surdos de Caxias do Sul, Gustavo Perazzolo, e com o advogado que representa a sociedade de surdos, Wilson Estivalete. Ewald afirma que não responde mais sobre o assunto. Gustavo não respondeu ao contato da reportagem e o advogado informou que vários credores entraram com ações judiciais, bloqueando as contas da sociedade dos surdos. No entanto, não enviou a prometida nota oficial até a publicação desta reportagem.