Foram 15 dias que mudaram a rotina de Caxias do Sul e região. Nas ruas, delegações de 74 países uniformizadas com as cores de suas bandeiras. Rede hoteleira cheia, modalidades olímpicas sendo disputadas em diversos locais e com entrada gratuita. Um evento de proporção nunca antes visto na Serra gaúcha e que traria alento aos setores da economia amplamente afetados pelas restrições impostas pela pandemia de covid-19.
As Surdolimpíadas prometiam deixar um legado na estrutura esportiva da região e recuperar os cofres das empresas de transporte, gastronomia, publicidade e hotelaria. No entanto, a realidade se mostrou bem diferente ao fim do evento, que completa nesta terça-feira (23) cem dias desde que a cerimônia de encerramento, que aconteceu no dia 15 de maio, no Ginásio do Sesi.
Organizados em grupo de WhatsApp, credores dos mais diversos ramos e com quantias distintas a receber somam um prejuízo de R$ 12,5 milhões. As dívidas, que ultrapassam seis dígitos, ficam ainda maiores quando as empresas contabilizam o período em que deixaram de faturar para uma dedicação exclusiva ao evento.
É o caso da PróArt Comunicação Visual, que desempenhou um papel fundamental na organização de um evento desafiador pela forma de comunicação. Foi preciso investir maciçamente em identidade visual para comunicar serviços, transformar os locais de disputa e apresentar, com especificidades, cada uma das 26 modalidades dos Jogos. Rubens Sulivan, gestor de negócios da empresa, orçou em R$1,2 milhão os serviços prestados por 25 pessoas durante os dois meses. Desse montante, apenas R$450 mil, ou 37,5%, foram pagos, deixando para trás uma dívida de R$ 750 mil.
— Tinha uma programação semanal. No início foi pago, depois acabaram não pagando mais. Já estava com o pé atrás, dava pra observar a falta de organização. Descapitalizamos o caixa da empresa, e em alguns dias trabalhamos até 4h da madrugada para atender a padronização dos locais de competição — contou.
Sem o pagamento devido e com um CNPJ a zelar, Sulivan realizou empréstimos bancários para cumprir as obrigações com fornecedores e manter empregados seus 31 colaboradores.
— Ficamos três meses no cheque especial, foram 60 dias sem faturamento, atendendo só as Surdolimpíadas. Não é só os R$750 mil que não recebemos, mas os R$ 600 mil que deixamos de faturar. Meu fornecedor não quer saber se eu não recebi, ele vai me protestar — desabafou.
Para Sulivan, a esperança de receber o valor é mínima, devido a burocracia e as ramificações dos organizadores do evento. Segundo ele é preciso chegar ao Comitê Internacional de Esportes para Surdos (ICSD), entidade que detém a verba para os pagamentos.
— A responsabilidade deve recair para a organização federal, que deve citar a instituição internacional, que tem sede na Rússia, que está em Guerra. Sendo realista, a expectativa é muito baixa — afirmou.
De acordo com o Sindicato Empresarial de Gastronomia e Hotelaria (Segh - Uva e Vinho), 35% da dívida total gerada pela Surdolimpíada é com os hotéis e restaurantes da região, afinal a capacidade do receptivo de Caxias do Sul se esgotou durante o evento e as delegações se hospedaram em municípios de toda a Serra gaúcha. No caso dos hotéis, segundo o diretor de relações institucionais do Segh, Rudinei Galafassi, um percentual pequeno foi pago durante o evento, diferente dos restaurantes que ainda têm cerca de 90% da dívida em aberto.
— Nos hotéis, quem foi pago foi devido a diminuição de atletas que viriam ao evento. Quem iria receber 100 pessoas, por exemplo, e acabou hospedando a metade, foi pago integralmente, porque o valor inicial recebido cobriu — explicou Galafassi, que aponta a má gestão como causadora dos prejuízos.
— A dívida é do Comitê Organizador, os atletas pagaram sua vinda, porém a organização usou esses valores para fazer outros investimentos para realizar o evento – afirmou.
Em Bento Gonçalves, a rede de hotéis Dall’Onder lotou duas unidades durante a realização dos Jogos e estima ser o segundo maior credor do evento, com um rombo de R$ 800 mil no caixa. Além da hospedagem, o hotel ofereceu alimentação para delegações em outros locais, o que aumentou ainda mais o prejuízo. Para a diretora financeira do Dall’Onder, Maitê MIchelon, é um duro golpe em quem agora precisa escolher as dívidas a serem pagas.
— Tivemos que fazer empréstimos durante a pandemia e agora estou deixando de pagar essas dívidas pra pagar os fornecedores — afirmou Maitê, que precisou contratar mão de obra extra para atender à época, e deixou de receber hóspedes que na maioria das vezes pagam de forma antecipada.
Nos cálculos de Maitê, as Surdolimpíadas pagariam R$1,1 milhão pelos serviços prestados pela rede de hotéis. Desse valor, apenas 20% foi quitado e a esperança pelo restante a ser pago, segundo ela, diminui conforme o tempo passa:
— É muito dinheiro para uma empresa que está se recuperando de dois anos de pandemia. O pessoal do comitê foi muito educado, nos recebeu e falou dos projetos para angariar fundos, mas não vemos uma luz no fim do túnel, de quando vamos e se vamos receber.
Em um túnel escuro em que não se vislumbra saída, os credores agem como podem, recorrem ao governo e realizam reuniões públicas, como a desta segunda-feira (22) que promoveu o encontro entre o legislativo, executivo e o Comitê Organizador. O objetivo é, segundo Sulivan, “não cair no esquecimento”.
— Os governos devem se mobilizar para algumas emendas emergenciais. Não deixa de ser uma calamidade, são mais de 130 CNPJs e 500 CPFs. A gente trabalha pra poder reagir e superar, mas o prejuízo está aí e com juros altos.
"Problema coletivo de 130 empresas"
É dessa forma que o representante dos credores, Rubens Sulivan iniciou a Reunião Pública na tarde desta segunda-feira (22). A presença do secretário de Esporte e Lazer de Caxias do Sul, Gabriel Citton, como único representante do executivo no encontro, também foi lamentada na audiência que pediu a prestação de contas do evento e cobrou o envolvimento dos governos no respaldo à cobrança e na busca por alternativas de pagamento.
O CEO do Comitê Surdolímpico, Richard Ewald, voltou a citar a Guerra da Ucrânia durante os Jogos, a não participação da Rússia na competição e o fluxo cambial como principais motivos para que as dívidas tenham sido deixadas. De acordo com ele, a principal fonte financiadora era o pacote logístico, vendido a cerca de U$ 1,5 mil por participante. Tal diferença, entre receber em dólar e pagar os fornecedores em real, geraria a renda necessária para viabilizar as Surdolimpíadas. Mas a queda do dólar frente ao real, e a ausência dos russos, que seriam a maior delegação presente em Caxias do Sul, justificam uma quebra de 36% no orçamento, o que representou, segundo ele, um rombo de R$ 16 milhões.
Além disso, dívidas foram deixadas pelas próprias delegações que, ao final do evento, ainda não haviam acertado os valores devidos. De acordo com Ewald, são 190 mil dólares a serem recebidos de oito delegações. Quênia é a primeira da lista com uma dívida de 92 mil dólares ao Comitê Surdolímpico.
— Esses são valores, mais cedo ou mais tarde devem entrar, pois as nações precisam quitá-los para participar de eventos futuros — explicou Ewald, que também explanou sobre os contatos com os governos estadual e federal na busca por uma solução:
— Não é somente os políticos quererem, é preciso achar meios legais pra conseguir a verba, então propusemos um projeto de renúncia fiscal, que a Procuradoria Geral da República irá emitir um parecer sobre a possibilidade — afirmou.
Para cobrar a dívida das delegações estrangeiras, Ewald disse que o assunto já foi levado ao Ministério das Relações Exteriores que irá intermediar o assunto.
Procurado para comentar o tema, o presidente da ICSD, o caxiense Gustavo Perazzolo, não quis se manifestar e disse que toda a negociação e contatos com a imprensa envolvendo o assunto das dívidas está sob a responsabilidade de Ewald.