Foi no mais recente Dia do Gaúcho, 20 de setembro, que um projeto de lei aprovado pela Câmara dos Deputados instituiu Caxias do Sul como a Capital Nacional dos CTGs. Isso porque o município comporta o maior número de entidades filiadas ao Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), somando 91 entre CTGs e 21 piquetes de laçadores. Sendo, portanto, um município tão marcadamente tradicionalista, o que explica a escassez de opções para o público degustar o prato mais típico da culinária regional, o churrasco?
Atualmente, Caxias possui 20 churrascarias tradicionais, ou seja, uma para cada 23,2 mil habitantes, de acordo com o Sindicato Empresarial de Gastronomia e Hotelaria da Serra (Segh). Para efeito de comparação, a quantidade de pizzarias com CNPJ ativo na Secretaria Municipal da Receita, no ano passado, era de 139, sendo uma para cada 3,3 mil caxienses. Numa rápida busca no mais tradicional serviço de delivery de comida, o iFood, é possível encontrar na pérola das colônias 16 churrascarias, ao passo que o mesmo aplicativo expõe 45 alternativas para o caxiense que quiser se deliciar com outra iguaria típica, porém da culinária japonesa, o sushi.
Para o professor do curso de Gastronomia da Universidade de Caxias do Sul (UCS) Israel Bertamoni, o modelo de negócio das churrascarias convencionais, que servem o tradicional espeto corrido, pode sofrer o efeito do que se conhece por padronização cultural, um movimento acentuado pela globalização e pela disseminação cada vez mais acentuada de informações:
— Entre efeitos positivos e negativos (da globalização), um dos efeitos negativos foi a padronização da cultura, onde se inclui a comida. Os fast-foods começaram a definir padrões de alimentação, transformando tudo num único sabor, que se mantém principalmente por ser mais barato, e, assim, mais vendável. Ao mesmo tempo, mudou também o perfil de consumo: as pessoas passaram a optar por uma comida menos calórica e servida em porções menores. Isso vai segmentando o mercado e fazendo aparecer outros produtos ainda mais acessíveis. Nisso, o restaurante mais clássico, que tem o tíquete médio mais elevado, acaba perdendo espaço — aponta o pesquisador.
Na opinião do presidente do Sindicato Empresarial de Gastronomia e Hotelaria da Região Uva e Vinho (Segh), Marcos Ferronato, Caxias tem um número satisfatório de churrascarias, de acordo com o contexto local, mas concorda que o setor enfrenta desafios:
— Percebemos uma mudança no comportamento do consumidor, que atualmente opta por comer moderadamente, seja por moda ou questões de saúde. Diminui, assim, a frequência de saídas para churrascarias, que são conhecidas pela fartura — argumenta Ferronato.
Do ponto de vista do empreendedor, é um ramo em que é cada vez mais necessário combater o desperdício, devido ao preço da carne e dos insumos para fazer o churrasco. Se não for bem gerenciado, especialmente o modelo do espeto corrido, pode inviabilizar o negócio.
A aparente baixa oferta de churrascarias em Caxias é percebida também no meio tradicionalista. Lideranças desse setor são nostálgicas ao recordar não apenas de estabelecimentos que marcaram época, mas da própria relação com a cultura gaúcha.
— A ligação com a nossa culinária típica anda um pouco carente de atenção. Antigamente tínhamos o Gianella (no bairro Santa Catarina), que apresentava shows de dança, chula e boleadeira enquanto se servia o espeto corrido. O próprio (CTG) Rincão da Lealdade fazia algo similar quando recepcionava em sua sede autoridades e turistas que visitavam Caxias durante a Festa da Uva. Este tipo de trabalho merecia um resgate por parte de empresários do ramo e dos próprios CTGs, mas também entendo que deveria haver um investimento (público), a fim de fomentar o setor como um todo e ajudar as entidades e trazer de volta essa característica gauchesca, tendo Caxias do Sul como referência — avalia o patrão do primeiro CTG de Caxias do Sul, o Rincão da Lealdade, Anderson Oliveira.
Já o presidente da Associação Caxiense dos CTG’s, Fernando Bonoto, entende que o protagonismo da culinária italiana pode ter contribuído para relegar o churrasco a um papel coadjuvante no cenário gastronômico local:
— Uma percepção minha sobre o fato de não termos tantas churrascarias para nossos moradores e turistas é que grande parte dos CTGs é formada por pessoas que vêm de fora da cidade. A questão gastronômica acaba ficando mais nas comunidades e nos restaurantes de origem italiana. Temos muitas festas de colônia onde o churrasco faz parte do cardápio, mas não é o prato principal, que normalmente é a massa, a sopa de agnoline, o menarosto. Diferentemente de outras regiões onde o churrasco é a manifestação cultural mais presente, não parece atrelado à cultura gastronômica de Caxias, mesmo tendo tantos CTGs. E nem todos os CTGs têm uma sede própria onde poderiam oferecer a churrascada ou os costelões.
O professor da UCS Israel Bertamoni, acredita que, uma experiência tradicionalista completa, onde se insere o churrasco, pode vir a ficar restrita quase que somente a cidades turísticas ou a metrópoles fora do Rio Grande do Sul, sendo o churrasco parte de uma experiência étnica a ser oferecida. O pesquisador cita como exemplo Curitiba, que tem o dobro de churrascarias do que Porto Alegre. Outra hipótese que Bertamoni oferece para ajudar a compreender a baixa presença das churrascarias no mapa gastronômico caxiense é o preço médio do espeto corrido, proibitivo para a maior parte da população. Não se trata, segundo o professor, de um problema do município em si, mas, sim, de uma característica comum a cidades de vocação operária:
— Cidades operárias, como Caxias, têm uma tendência a ter um padrão cultural de alimentação mais barata, rápida e de fácil acesso. Em certa medida, uma alimentação também mais democrática. Neste sentido podemos comparar com Canoas, cidade de porte semelhante a Caxias, onde o xis é o prato principal.
CLÁSSICO, MAS COM TOQUE MODERNO
Se em quantidade de churrascarias Caxias pode deixar a desejar, o mesmo não se pode dizer em termos de qualidade. Não é preciso recorrer a números, mas apenas saber apreciar o bom churrasco para concluir que, seja na área central, nos bairros ou mesmo no interior, os espetos corridos concorrem em pé de igualdade com as galeterias, os baurus ou as pizzarias como estabelecimentos preferidos de quem gosta de comer bem e com conforto.
Na área central de Caxias, uma referência em espeto corrido - e uma das poucas que ainda servem também à noite - é a Laço de Ouro, no bairro Nossa Senhora de Lourdes. De portas abertas desde 2000, o espaço mudou de proprietário há pouco mais de um ano, quando foi adquirido pelo empresário Reginaldo Pedrotti, natural de São Marcos.
Pedrotti, também proprietário de um posto de combustíveis e de uma loja de rolamentos, conta que a Laço de Ouro aposta em três frentes: o salão, que atende com bufê e espeto corrido, o pegue-e-leve, que é mais forte aos domingos, e o delivery, modalidade que deu ao negócio o maior incremento de receita neste primeiro ano. Apenas na principal plataforma de pedidos online, o iFood, o faturamento, que beirava os R$ 30 mil ao mês, triplicou, passando a superar os R$ 90 mil no período.
— A gente adequou o produto à necessidade do cliente, que passou a poder montar o seu combo, escolhendo desde a quantidade de arroz, qual o legume e também o tipo de carne. Antes, a churrascaria tinha no iFood apenas três combos já prontos e pouco variados. Hoje, se o cliente quer uma refeição mais balanceada, mas sem deixar de degustar o sabor da carne, ele poder fazer essa escolha — destaca o empresário.
Embora tenha mantido a forma tradicional da Laço de Ouro de servir o churrasco aos clientes, optando pelas peças inteiras e com o garçom tirando as lascas na frente do cliente, Pedrotti optou por investir no atendimento ainda mais personalizado para fidelizar a clientela, recorrendo até ao auxílio de uma psicóloga, que passou a atender os funcionários da churrascaria em sessões semanais:
— O cliente que gasta R$ 300 para trazer sua família numa churrascaria (o espeto corrido completo custa R$ 99 por pessoa) faz questão e tem todo o direito de ser muito bem atendido. Se ele pedir pra trocar o prato três vezes, o garçom precisa atendê-lo com sorriso no rosto. Se este profissional está com um problema em casa, isso não é problema do cliente. O trabalho com a psicóloga ajudou muito nesse sentido e fez toda a diferença, aliado a um tratamento diferenciado que a gente faz questão de dar a nossa clientela mais fiel. Se um cliente vem todo domingo comer com a gente, é justo que o primeiro churrasco do ano ele ganhe como cortesia.
SABOR E AMBIENTE INCONFUNDÍVEIS
No distrito de Vila Cristina, às margens da BR-116, a fachada pintada de amarelo é tão tradicional quanto o espeto corrido servido pelo Restaurante Mazzochini. E o “selo de garantia” conferido pelo tempo em atividade não é à toa. A churrasqueira está sob o mesmo comando há 47 anos. O assador é Rui Pezzi, 63 anos, um dos três funcionários que se tornaram sócios ao aceitar o convite para assumir o negócio ainda antes da morte do primeiro proprietário, João Mazzochini, em 2013.
— Entrei aqui com 16 anos. Levei o primeiro ano só para acertar o tempero. Os outros 46 anos passei assando o churrasco da mesma maneira, sem revelar o segredo — diverte-se o churrasqueiro.
Se a fórmula do tempero é guardada a sete chaves, a receita para o sucesso tem alguns dos ingredientes revelados por Juliano Pezzi, filho de Rui e gerente da casa. Tão importante quanto servir a "inigualável costelinha", diz, é apostar na refeição servida à mesa (onde o espeto corrido custa R$ 85, de segunda a sexta-feira, R$ 100 no sábado e R$ 120, no domingo), com a maior comodidade para o cliente.
— Acho que o sistema de servir tudo na mesa é o mais importante pra nós. Nunca tivemos bufê, porque assim o cliente não precisa ter de se levantar, nem esperar com o prato na fila — acrescenta Juliano Pezzi.
Sem se preocupar em investir em redes sociais ou na modernização do ambiente, que nunca passou por uma grande reforma, o negócio se mantém estável pela tradição. A única mudança mais significativa ocorreu após a pandemia, quando deixou de abrir à noite. Pesou para isso, também, a falta de mão de obra, especialmente para os finais de semana, quando o movimento é maior. Fora isso, é provável que a churrascaria Mazzochini, que já é a mesma há mais de meio século, continue sendo a mesma daqui mais meio século (contanto que o assador passe adiante o segredo do tempero, claro).
— A gente recebe muitos turistas que podem estar hospedados em Gramado, Bento Gonçalves ou Nova Petrópolis, que quando pedem uma referência de onde comer o churrasco raiz, é aqui que mandam eles virem. Porque o pessoal gosta deste ambiente mais rústico, de chegar e se sentir em casa, sem ter muita etiqueta — define o gerente.
"VOCÊ DISSE BUFÊ LIVRE COM CHURRASCO?"
Uma das churrascarias mais recentes a abrir em Caxias do Sul é a Lisboa, no bairro São Ciro, junto a um posto de combustíveis às margens da BR-116. Quem empreende no local é Vinícius Lisboa, 29 anos. O jovem empresário, cuja maior parte da trajetória profissional se deu atendendo e depois gerenciando uma tradicional casa especializada em baurus no interior de Flores da Cunha, identificou a carência que os moradores do bairro sentiam de opções para comer um churrasco fora de casa. Por isso, acrescentou ao já bem abastecido bufê, com 18 saladas e 14 pratos quentes, algumas opções de carne assada. Isso além da opção do miniespeto corrido.
— Se tem uma coisa que o caxiense adora escutar é “bufê livre com churrasco”. Meu público é a classe média. Sirvo o miniespeto a um valor mais barato do que as churrascarias tradicionais (R$ 55 o miniespeto, durante a semana, e R$ 69,90, fim de semana), sem tanta diversidade de cortes, mas com muita qualidade para trazer a família - comenta Vinícius, que abriu o restaurante em fevereiro do ano passado junto com a esposa, Dienani, responsável pela cozinha.
Mesmo com o negócio indo bem, o jovem empreendedor não projeta ampliar o espaço ou mesmo abrir uma filial no centro da cidade. A razão para optar por manter o Lisboa em seu tamanho atual também tem a ver com algo que pode ser atribuído à cultura do caxiense:
— As pessoas gostam de conhecer o proprietário do restaurante, de ser atendido ou recebido por ele, de poder fazer um elogio ou uma crítica. Aqui trabalho com a minha família, todo mundo sabe fazer um pouco de tudo. Essa característica, que tem ajudado o negócio a dar certo, eu não conseguiria levar para outro lugar.
UM ASSADOR A DOMICÍLIO
Um dos primeiros a explorar em Caxias num ramo que ganha cada vez mais adeptos, de prestar serviços gastronômicos a domicílio, Jeferson Alves oferece, há 10 anos, o seu talento de assador a quem prefere promover uma confraternização no conforto do lar ou na sede do clube, terceirizando o serviço de preparar, assar e servir.
Boa parte dos eventos aos quais atende é realizada em quiosques na sede campestre de clubes como o Recreio da Juventude, em Caxias, sendo também chamado a assumir a churrasqueira em festas em condomínios. Alves explica que seu público prioriza dois fatores: praticidade e preço mais em conta:
— Eu cobro por pessoa (R$ 65 a R$ 80), um valor que fica abaixo do que se gastaria numa churrascaria. E sou eu quem leva as carnes e todo o equipamento para fazer o churrasco. O cliente não tem nenhuma preocupação, apenas aproveita o seu momento de lazer com os amigos ou com a família.
“Jef Churras”, nome que adotou para divulgar o negócio no Instagram, conta que, embora eventualmente ainda asse algum costelão, a maioria dos clientes tem preferido a parrilla, no estilo uruguaio de assar na grelha, ao churrasco assado no espeto:
— É claro que o nosso churrasco gaúcho tem todo um ritual, mas às vezes a espera é mais longa. A parrilla é muito mais rápida. Em meia-hora a carne está pronta para ser servida.