Minimizar ou até mesmo evitar os impactos ambientais é uma das tarefas mais complexas que as empresas mundo afora enfrentam diariamente. Até por isso, cada vez mais as ações de sustentabilidade têm ganhado espaço nos debates. Como a logística reversa e a economia circular, pautas que estão ligadas um conceito que está em alta: ESG (sigla para environmental, social and governance, no português, ambiental, social e governança).
Na prática, as ações de logística reversa envolvem um sistema de coleta, transporte, armazenamento, reciclagem e tratamentos de resíduos e embalagens após o consumo. O principal objetivo dela é dar uma nova destinação para esses materiais, para que retornem à cadeia produtiva, em vez de serem descartados. Um sistema que já existe na Serra gaúcha.
Conforme a diretora de ESG da Câmara da Indústria, Comércio e Serviços de Caxias do Sul (CIC), Fabiane Mafessoni, a logística reversa serve para evitar desperdícios e também diminuir a quantidade de resíduos despejados em aterros sanitários.
— Que a gente encontre meios e formas de viabilizar um melhor aproveitamento dos nossos resíduos e os materiais que são descartados. E que a gente consiga tornar eles um novo produto, um novo insumo.
A logística reversa é assegurada pela Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), instituída pela Lei 12.305 de 2010 e regulamentada pelo Decreto 10.936, de 12 de janeiro de 2022. A PNRS também estabelece o que ficou conhecido como responsabilidade compartilhada, em que fabricantes, importadores, distribuidores, comerciantes e consumidores, além do poder público, devem agir em conjunto neste processo. Inclusive, há alguns acordos setoriais, como para as cadeias produtivas de pneus, agrotóxicos, pilhas e baterias, óleos lubrificantes, lâmpadas fluorescentes, produtos eletroeletrônicos e seus componentes.
— A logística reversa tem muito a ver com a economia circular. Então, tu fez o produto, colocou no mercado, o consumidor usou e, no final da vida desse produto, ele tem uma cadeia que vai fazer retornar à indústria. Aí, ele pode ser reutilizado em um novo ciclo produtivo ou pode ser reciclado, e se tem a recuperação de energia e matéria-prima — exemplifica a coordenadora da Comissão de Meio Ambiente do Sindicato das Indústrias Metalúrgicas, Mecânicas e de Material Elétrico de Caxias do Sul e Região (Simecs), Luciana Rech.
Soma-se a isso o Plano Nacional de Resíduos Sólidos (Planares), instituído pelo Decreto nº 11.043 de 2022. Por meio dele, foram definidas metas para o aumento progressivo de retorno de embalagens de produtos até 2040. Em âmbito do Rio Grande do Sul, no início de novembro, o Conselho Estadual de Meio Ambiente (Consema) aprovou a resolução que define diretrizes para a implantação e implementação de sistemas de logística reversa de embalagens em geral no Estado.
Mais de 17 mil toneladas compensadas no RS
Uma das determinações da logística reversa prevista na Política Nacional de Resíduos Sólidos é que as empresas precisam comprovar a reciclagem de, ao menos, 22% da massa total de embalagens colocadas no mercado. Isso pode ser feito adquirindo essa quantidade com créditos de reciclagem por meio de operadoras como a Eureciclo, criada em 2016 em São Paulo. Os créditos de reciclagem foram regulamentados com a publicação do Decreto Federal no 11.044 de 2022, atualizado e substituído, a partir de 14 de abril de 2023, pelo Decreto Federal no 11.413.
A solução direciona para reciclagem resíduos equivalentes, em peso e material, e assim remunera cooperativas ou outras organizações, habilitando essas certificações de comprovação legal. Esse mecanismo financeiro ajuda a equilibrar os impactos dos resíduos sólidos, incentiva a cadeia de reciclagem — que está prevista na PNRS — de materiais complexos e permite o fortalecimento das principais premissas de sustentabilidade financeira ao setor.
Em 2019, a Eureciclo começou a atuar no Rio Grande do Sul. Desde então, já destinou às reciclagens gaúchas cerca de 17 mil toneladas de resíduos. Conforme a gerente de Relações Governamentais da Eureciclo, Ana Carolina João, os investimentos nesta cadeia apresentaram um crescimento a partir de 2020. Segundo ela, isso se deve ao crescimento das ações de ESG dentro das companhias brasileiras e também a uma maior conscientização com o meio ambiente durante a pandemia de covid-19.
— Acredito que a pandemia trouxe também uma tomada de consciência para nós enquanto consumidores. Por um lado somos consumidores. E por outro olhamos para as empresas que são feitas de pessoas, então, acredito que essa tomada de consciência acabou sendo levada também para este ambiente, onde começou a ser discutido amplamente — diz Ana Carolina.
Atualmente, a Eureciclo possui uma carteira de 180 clientes somente na Serra. Na região, cerca de 190 toneladas foram encaminhadas para reciclagens.
— A adesão da Serra gaúcha e das outras regiões do Rio Grande do Sul é muito importante para a gente conseguir junto dos operadores no Estado, das empresas que estão investido no Estado, para aumentar as taxas de reciclagem — complementa Ana Carolina.
Sustentabilidade, qualidade e circularidade
Um dos exemplos de empresa na Serra que adota o modelo é a Tramontina, com sede em Carlos Barbosa e unidades em municípios da região. A empresa diz que, desde o início das atividades, há mais de 100 anos, se pauta pela sustentabilidade. Somente em 2022, investiu cerca de R$ 17,4 milhões em melhorias ambientais, sendo que R$ 325 mil foram destinados aos projetos de logística reversa em que atua. Os dados são Relatório de Sustentabilidade da empresa no ano de 2022.
Em uma das iniciativas, faz a destinação correta de equipamentos eletroeletrônicos e eletrodomésticos, por meio da Associação Brasileira de Reciclagem de Eletroeletrônicos e Eletrodomésticos (Abree). No último ano, mais de 13 mil toneladas de resíduos foram coletadas e encaminhadas à destinação correta.
No ano passado, também foram compensadas outras 13,5 toneladas de pneus por meio de uma parceria com a Usina de Tratamento de Pneus (Utep), 328% a mais que em 2021. Além disso, a rede de assistências técnicas da Tramontina recebe os pneus usados e encaminha para o descarte correto. Com essas duas práticas, foi possível chegar a um percentual de 70% de compensação dos pneus comercializados pela empresa.
A Tramontina também possui uma parceria com a Eureciclo para a compensação de 22% das embalagens colocadas no mercado interno, que tem como destino os consumidores finais. Somente em 2022, foi compensada mais de uma tonelada de embalagens em todos os Estados brasileiros mais o Distrito Federal.
— Hoje a Eureciclo é nossa parceira para minimizar o impacto ambiental das embalagens, e também para promover o impacto socioambiental, e um braço da circularidade. A gente garante que esse material está sendo reciclado — destaca o coordenador do projeto de logística reversa da Tramontina, Fernando Baretta.
Em 2022, a empresa foi além das parcerias externas e criou um projeto próprio, denominado “Seu ambiente mais consciente”. Após a iniciativa dar certo, a atuação foi expandida e hoje está presente em mais de 20 pontos em todo o Brasil — lojas da empresa. Somente no ano passado, foram coletados 69,3kg de panelas e utensílios, além de 551kg de eletroeletrônicos, eletrodomésticos, pilhas e baterias.
— Queremos que haja um consumo consciente, que aquilo que está parado possa voltar para a cadeia, porque às vezes temos uma panela ou frigideira que ficou no fundo do armário, que não está mais sendo utilizada. Claro, sempre pensando em voltar, na circularidade dos produtos – explica gerente do Núcleo de Sustentabilidade da Tramontina, Lizandra Marin.
Somam-se a essas iniciativas de logística reversa outros projetos de sustentabilidade da empresa como o desenvolvimento da linha Lyf, a primeira produzida com o RecyPlast, matéria-prima inovadora e 100% reciclável utilizada nos cabos das panelas e concebida sob os princípios da economia circular. Além disso, em outros processos internos, a quantidade de materiais e resíduos reutilizados ou reciclados ultrapassou as 23,4 mil toneladas somente em 2022.
— Trabalhamos dia após dia para dentro do que for possível e viável minimizar os impactos, e aí o consumidor entender que o produto Tramontina que chega na casa dele carrega toda essa preocupação ambiental — comenta Baretta.
— É conseguir usar ao máximo possível o recurso que a gente tem, sem gerar um impacto ambiental negativo. E, para o consumidor, ele tem que ter confiança no que a Tramontina faz, então não é só confiar no produto, que é bom e que vai poder usar, mas como é feito na operação. Ambientalmente falando, queremos reduzir os impactos ao máximo — finaliza Lizandra.
Logística reversa e economia circular no dia a dia
A empresa Soprano, de Farroupilha, também é parceira da Eureciclo no trabalho de compensação de 22% de massa equivalente das embalagens colocadas no mercado brasileiro. Desde o início da parceria, em 2019, já foram compensadas 522 toneladas de papel e papelão, 38 toneladas de plástico e duas de metais. Inclusive, alguns produtos da empresa gaúcha carregam um selo que comprova o trabalho ambiental com a empresa paulista.
Mas o assunto sustentabilidade na empresa é ainda mais antigo, como destaca a coordenadora de qualidade e sustentabilidade, Juliana Zardo.
— Quando surgiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos (em 2010), a gente já trabalhava com essas questões ambientais. Ainda não era um setor bem estruturado, mas já tinha uma pessoa e (já havia) esse trabalho voltado para a parte de efluentes e outros impactos relacionados ao meio ambiente.
No que diz respeito à logística reversa, há processos claros e definidos por contratos. Insumos como os toners de impressoras, utilizados em diversos setores da empresa, são devolvidos ao fornecedor para que possam ser encaminhados corretamente ao descarte. Materiais de informática, como computadores e tablets, também são destinados a um parceiro para receberem a destinação final.
Há também um trabalho de logística reversa para os equipamentos fotovoltaicos. Conforme Juliana, são itens que possuem uma vida útil longa, mas que, eventualmente, podem apresentar algum problema técnico e precisarem ser descartados. Assim, são encaminhados a um parceiro de Caxias do Sul, que faz o desmonte e destina os componentes à reciclagem.
A Soprano também faz uma integração entre os setores para minimizar os impactos ambientais, principalmente no processo de construção de novos produtos e embalagens. A coordenadora de qualidade e sustentabilidade da empresa afirma que é possível ir além do que determina lei, principalmente pensando em um legado ambientalmente positivo.
— Já estamos envolvendo o pessoal do marketing e das engenharias para começar a pensar em outros produtos. A atuação acaba sendo cíclica, vamos desde o desenvolvimento do produto e da embalagem até a destinação dela.
Ações voltadas à economia circular também estão presentes nas fábricas. Na unidade de utilidades térmicas, por exemplo, o reaproveitamento de plástico é de cerca de 90%. Outro investimento que chama atenção é a Estação de Tratamento de Efluentes Descarte Zero, onde é promovido o reuso da água no processo de acabamento de peças. Para se ter uma dimensão do projeto, desde o início das atividades, em 2015, já foram economizados cerca de 15 milhões de litros de água.
Oportunidade de mercado
Engenheiro mecânico de formação, Daniel Borges viu em 2011 uma oportunidade de mercado. Um ano após a publicação da Política Nacional de Resíduos Sólidos, percebeu que a Serra gaúcha não possuía empresas especializadas na gestão de resíduos eletrônicos. Assim, criou a Ambe, que desde então está localizada na BR-116, no bairro Cristo Redentor.
— (O objetivo era) Buscar um negócio diferente, porque na época ninguém falava em descartar equipamentos eletrônicos – relembrou Borges, diretor operacional da Ambe.
Segundo Borges, mensalmente cerca de 80 toneladas de resíduos eletrônicos, entre entradas e saídas, passam pela empresa. Ele relembrou que há poucos anos a meta era de 20 toneladas mensais.
— Quando começamos, não era todo mundo que tinha computador em casa, hoje não tem alguém que não tenha um notebook. (Com) A crescente pela necessidade do descarte, (com) a crescente tecnológica, celulares se tornando obsoletos, as pessoas foram migrando, e o que faz com o velho? Então, surgiu a Ambe para dar um descarte correto para esse tipo de equipamento, e que na época não tinha nada.
São inúmeras peças de computadores, celulares, eletrodomésticos, eletroeletrônicos, entre outros que passam pelos dois pavilhões da empresa diariamente. Entre as atuações da Ambe está a coleta e o transporte, separação, desmanufatura, descaracterização, estocagem, destinação, entre outros de todos esses materiais.
Nos últimos anos, a Ambe expandiu as fronteiras. Além de ser uma referência para o trabalho de logística reversa na Serra, possui clientes em outras cidades do Rio Grande do Sul, e também importantes parceiros comerciais em Santa Catarina, Paraná e São Paulo.
Os objetivos de Borges seguem os mesmos desde a fundação da empresa, há 12 anos.
— Queremos ser referência na gestão de material eletrônico. Nosso objetivo era ser gerência regional, estadual, e atualmente a gente percebe que está entre os 10 do Brasil — relatou.
Dia a dia de uma cooperativa
Um dos trabalhos mais importantes em toda a cadeia da logística reversa é desempenhado pelas associações e cooperativas de reciclagem, como a Paz e Bem, localizada no bairro Santa Fé, em Caxias do Sul. Nela, 70 cooperados atuam diariamente na triagem de materiais.
Conforme o presidente da Paz e Bem, Tiago Pavelski, a desvalorização dos materiais é grande, e uma alternativa para manter o local são os créditos de reciclagem, vendidos aos operadores de logística reversa que, posteriormente, repassam às empresas que precisam atingir as metas previstas na legislação.
— Hoje a gente usa (os créditos de reciclagem) para sobreviver, porque os materiais não se pagam. Se não existisse o crédito de logística reversa, já tinha fechado a reciclagem, ela não se manteria do tamanho que temos.
Todos os meses, os cooperados fazem a triagem de aproximadamente 900 toneladas de resíduos. Desse montante, 70% são vendidos para empresas que utilizam em novos produtos, e os outros 30% são enviados para aterros sanitários. O produto que possuiu a maior taxa de reciclabilidade é o vidro. Quando intacto, passa por um processo de descontaminação e é vendido para empresas de bebidas. Se tiver quebrado, é vendido como caco. Mas, para que essa cadeia dê certo, segundo Pavelski, é necessária a conscientização.
— Só funciona quando o consumidor final compra um produto feito com material reciclado. Se ele não faz isso, não adiantou nada na cadeia.
Uma das ações previstas na Política Nacional de Resíduos Sólidos é desenvolver a cadeia e aqueles que trabalham em associações e cooperativas. Um exemplo da Paz e Bem são as oportunidades de estudos para os cooperados, em que a cooperativa paga 50%.
— A cadeia se melhora trazendo educação, estudo, investimentos técnicos para as pessoas que estão ali (recicladores). Não adianta dar o dinheiro do crédito para as reciclagens se elas não trouxerem resultados – comenta Pavelski, que complementa:
— Tu dá dignidade, por isso que a cooperativa deu certo. Ela busca isso, dar dignidade para quem trabalha com reciclagem.
A cooperativa Paz e Bem, que funciona neste formado há dois anos e meio, tem metas claras para os próximos anos.
— A ideia é que daqui cinco ou seis anos a cooperativa vire uma usina de reciclagem, que a gente se torne uma das maiores do Brasil.