Sentado em um dos bancos no largo da Prefeitura Municipal de Caxias do Sul, com vista para a entrada principal, é possível observar um vaivém de pessoas carregando pilhas e pilhas de documentos, sejam em pastas ou envelopes. Por conta da pandemia, muitos dos serviços só têm sido possíveis com agendamento prévio. Esse emaranhado de documentos é condição para uma lista sem fim de encaminhamentos de serviços, solicitações de alvarás, inscrições em licitações (até mesmo da área da cultura), pedidos de licença e por aí vai. Popularmente, esse conjunto todo, nem sempre harmônico, recebe a denominação de burocracia.
Apesar da importância de cada documento solicitado, todos os entrevistados nesta reportagem, inclusive o prefeito eleito, Adiló Didomenico (PSDB), reconhecem que a burocracia virou sinônimo de processos lentos, desgastantes, tediosos e que emperram o fomento das mais diversas cadeias produtivas.
Importante lembrar que, na etimologia da palavra, burocracia se origina de ‘bura’, do francês ‘bureau’, um pano simples com o qual os antigos escrivães forravam a mesa de trabalho e, mais tarde, passou também a designar o móvel, o escritório e as próprias funções desse servidor; e deriva-se ainda de ‘cracia’, que em grego significa poder, governo, autoridade.
Mas talvez o significado mais coerente com a percepção que a maioria das pessoas tem, sobretudo do serviço público, está na definição criada pelo economista Jean-Claude Maria Vincent (1712-1759), que tacha a burocracia como “a administração pública por meio de funcionários sujeitos a uma rotina inflexível”. É necessário esclarecer, que a dita inflexibilidade, muitas vezes, é por causa da legislação que também precisa de revisão e atualização, pelo menos é o que sugere o grupo Mobilização por Caxias (Mobi), na Agenda Eleições, entregue a cada um dos candidatos à prefeitura do município.
Há diversas formas de se apontar qual o impacto real da burocracia na vida do cidadão. No entanto, no ambiente macroeconômico, o chamado Custo Brasil é a forma mais abrangente de se tabular o conjunto de dificuldades estruturais, burocráticas e econômicas que encarecem e comprometem novos investimentos pelas empresas e pioram o ambiente de negócios no país. Há pouco mais de um mês, o secretário especial de Produtividade, Emprego e Competitividade, Carlos da Costa, revelou que, de 2019 para 2020, o Custo Brasil baixou de R$ 1,5 trilhão para R$ 1,2 trilhão.
– Queremos baixar a menos da metade e, talvez, chegar a zero nos próximos 5 anos – disse o secretário, enquanto representava o ministro da Economia, Paulo Guedes, no Congresso Virtual Alacero (Associação Latino-Americana do Aço), abordando a reindustrialização da América Latina, em programação no dia 10 de novembro.
Na apuração desta reportagem, alguns entrevistados preferiram não comentar abertamente sobre suas dificuldades na aprovação de projetos, das mais diversas áreas, porque temem ficar à mercê de decisões individualizadas, nem sempre baseadas em critérios técnicos. Os defensores da digitalização dos serviços entendem que estes contratempos seriam amenizados com mais agilidade e menor desgaste entre o poder público e o setor privado.
Se a vida imita a arte, ou vice-versa, é sempre um bom tema para uma conversa entre amigos. Porém, há sempre boas lições que suscitam da ficção. Na abertura do filme O Processo (1962), com direção de Orson Welles, em um roteiro baseado no livro de mesmo nome de Franz Kafka, há uma cena que pode retratar bem o lado mais tenso e desanimador da dita burocracia.
Um homem do campo aproxima-se de uma porta e pede para entrar. O porteiro declara que, de imediato. não pode permitir-lhe. Passa um tempo e o homem volta a perguntar se poderá entrar, ao que o porteiro responde: “É possível, mas não agora”.
Para encurtar a história, a cena avança e o homem permanece ali, diante da porta, até envelhecer, mas agora sentado em uma banqueta cedida pelo porteiro. O texto de Kafka revela o sentimento desse homem que “amaldiçoa a fatalidade, em voz alta durante os primeiros anos, depois envelhece e contenta-se em resmungar com os seus botões”. Já no final da sua vida, o homem do campo reúne forças para fazer uma última pergunta.
“Que queres tu saber ainda?”, pergunta o porteiro, “tu és insaciável”.
“Todas as pessoas se esforçam por alcançar a lei”, diz o homem, “como é que ninguém, exceto eu, solicitou a entrada durante todos estes anos?”
“Ninguém mais podia obter a autorização de entrar, porque esta entrada se destinava só a ti. Agora, vou-me embora e fecho-a”, diz o porteiro.
A cena fica melhor com a narração de Orson Welles, mesmo assim, lê-la e dar-se conta da forma como se estabelecem ordens, processos e interpretações da legislação já é um tapa de luva. Revisar e aprimorar são dois verbos que Adiló Didomenico promete conjugar, desde os primeiros dias da nova administração (leia a seguir). Oremos.
“Se digitalizar os processos, vai diminuir a decisão do ‘influenciador político’”, defende Nelson D'Arrigo
O empresário Nelson D’Arrigo, atual presidente da Associação das Imobiliárias de Caxias do Sul (Assimob), é conhecido por seu posicionamento forte. Fosse ele jogador de futebol, poderia ser comparado a Dunga, que não desgrudava do calcanhar dos atacantes adversários. Para ele, não se trata apenas de digitalizar todos os processos, D’Arrigo é mais enfático:
– Informatizar a prefeitura é o investimento mais barato a ser feito e que vai trazer muito resultado. Mas, para mim, o maior desafio é mudar a cultura de quem trabalha lá. Melhorou muito no atual governo Flavio Cassina (PTB), sim. Mas tem de melhorar muito mais.
D’Arrigo afirma ter sido prejudicado no Governo Daniel Guerra (Republicanos).
– Se digitalizar os processos, vai diminuir a decisão do “influenciador político”. Porque se estiver tudo ok com a documentação, o sistema vai liberar e pronto. No Governo Guerra, todos os que tiveram qualquer relação com os governos anteriores ou apoiaram o Edson Néspolo na eleição (anterior, de 2016), foram prejudicados.
O empresário cita um exemplo que justificaria ter sido prejudicado na administração anterior.
– Eu tenho tudo documentado. No dia 13 de novembro de 2017, eu solicitei o IU (Informação Urbanística). Eu recebi a resposta em 17 de maio de 2018. A liberação do projeto, que geralmente é mais complexa, demorou bem menos tempo. Só que, em função da crise que já vinha se arrastando e na demora dessa liberação, eu reuni as pessoas, depois de ter construído o primeiro andar dessa obra, e fechei a construtora – revela.
D’Arrigo diz que o mercado tem se tornado muito instável nos últimos anos, por conta das crises econômicas.
– Estamos enfrentando uma crise também de credibilidade. Hoje, para vender um imóvel na planta é difícil, o comprador quer saber quem é o construtor, e se a empresa está sólida. Está melhorando muito, mas vai voltar a crescer quando todos os elementos forem harmônicos. Até para a compra dos insumos, porque está faltando até cimento. Mas isso, com o tempo se resolve. O que precisamos acelerar é a liberação das construções, porque isso movimenta rapidamente a economia – defende.
O empresário enfatiza, no entanto, que a digitalização dos processos e mudança da mentalidade são urgentes.
– Esses dias, aconteceu aqui com a gente, na imobiliária (Ello D’Arrigo). Entramos com um pedido para pagar o ITBI (Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis). Fui lá então, no balcão da prefeitura, para saber o que estava errado e ver o que era preciso alterar. Cheguei lá e me disseram que não poderiam emitir o documento, porque o estagiário que faz a impressão não estava naquele dia por causa do rodízio da pandemia. Isso tem de mudar urgentemente.
Adiló diz que nova licitação com empresa de software é prioridade
Durante as reuniões com a equipe de transição entre o atual Governo Cassina e a futura administração, na qual Adiló Didomenico será empossado como chefe do Executivo, em janeiro de 2021, descobriu-se que a prefeitura está com um problema jurídico com a atual empresa que fornece o software de gestão.
– A prefeitura enfrenta um sério problema, que se agravou com a pandemia. A empresa que fornece software para o governo, foi multada pelo Governo Guerra, que judicializou a questão. Vamos ter de encontrar uma saída rápida, logo no início do nosso mandato, abrindo uma nova licitação. Não é possível que a prefeitura fique trancada por uma pendenga dessas – diz Adiló, em tom de desabafo.
Na campanha a prefeito, Adiló defendeu em muitos momentos, a digitalização dos processos, como sendo uma das ferramentas mais efetivas para fomentar o desenvolvimento econômico. Mas, bem como explicita no documento Agenda 2020, organizado pelo movimento Mobilização por Caxias (Mobi), outro importante ponto é a revisão das leis. Conforme estimativa levantada pelo Mobi, há em Caxias mais de 9 mil leis ordinárias e 20 mil decretos.
– Muitas dessas leis são até controversas, e outras, ao longo dos anos, ficaram desatualizadas. Isso não dá segurança jurídica ao empreendedor. Com essa revisão, acreditamos que até mesmo os prazos de avaliação dos servidores será menor – avalia o prefeito eleito
Com relação ao trabalho dos servidores públicos, Adiló diz que o clima interno, nas mais diversas secretárias, já está melhor. Para ele, havia uma pressão política desnecessária que acabou atrapalhando, no final das contas, o cidadão caxiense.
– Muitos servidores sofreram muito durante esse período do governo anterior. Temos ouvidos relatos de que, se houvesse qualquer situação em desacordo com o governo, era sindicância pra cá e pra lá – revela.
Adiló entende que a digitalização dos processos é um desafio, mais um dos que encontrará na gestão de Caxias. No entanto, até em função do que se viu durante a pandemia, é o momento ideal para implementar esse novo conceito.
– Isso é uma tendência, e a pandemia nos fez olhar com mais atenção para isso.
Ideias do novo governo
No Plano de Governo de Adiló Didomenico constam as seguintes ações para diminuição da burocracia:
Criação de assinatura digital e de taxa única para redução da burocracia,
Ampliar o uso de novas tecnologias com o objetivo de atualizar, agilizar, otimizar e dar transparência à administração municipal.