Na lembrança de quem viveu a noite de Caxias do Sul dos anos 1980, dois bares marcaram época: o Tiffany's e a Cave. Os dois redutos sofisticados faziam parte do Alfred Palace Hotel. Contudo, desde a recente notícia de que o "Alfredinho", primeiro da antiga rede Alfred, passa por revitalização, com inauguração prevista para dezembro de 2025, agora sob o selo da Rede Laghetto, uma série de memórias voltam à tona.
Mesmo que os bares não fossem do Alfredinho, pode-se dizer que esse novo capítulo fecha o ciclo dos dois antigos hotéis e resgata — com nostalgia — as histórias de quem circulou por esses pontos de encontros na Rua Sinimbu, sejam caxienses ou celebridades, como o Rei Roberto Carlos.
O projeto arquitetônico da revitalização do Alfredinho, elaborado e coordenado pelas arquitetas Jessica De Carli e Marina Miot, inclusive, faz jus à essa história. O novo hotel manterá características do edifício de 1960, ao mesmo tempo em que pretende estabelecer "conexão com o mundo de hoje", explica Jessica.
O novo empreendimento vai trazer ainda restaurantes, cafeteria, bar e um rooftop (terraço na cobertura do prédio), uma novidade em relação ao prédio original. As atrações também serão abertas ao público em geral. A intenção é que o prédio histórico volte a se destacar, fazendo parte da cena cultural caxiense.
— Nós vamos ter um café para ativar o térreo, um restaurante no mezanino, aberto ao público também, e um rooftop, que não tinha antes. É muito importante que a gente consiga ativar essa relação com a rua. Nós não queremos um prédio fechado para cidade. Nós queremos um prédio conectado com a cidade — detalha a arquiteta.
Jessica reconhece que o Tiffany's é um bom exemplo de bar de hotel que se tornou icônico, como ocorre em outros centros urbanos do mundo. Desde que as obras se iniciaram, revela Jéssica, ela e a colega têm recebido mensagens de frequentadores do Tiffany’s e da Cave, confidenciando suas lembranças.
— As pessoas sempre me diziam: "eu quero que tu faças um projeto como o Tiffany's". E eu experienciei isso a minha vida inteira. Então, fico feliz de estar fazendo o Alfredinho agora, muito por essas memórias que eu fui construindo também — relata Jéssica.
O Tiffany's
No início dos anos 1980, surgiu o luxuoso bar no térreo do Palace. Como descreve o jornalista Rodrigo Lopes, na coluna Memória, o Tiffany's se tornou conhecido pelas poltronas de couro vermelho, pela trilha jazzística, pelas paredes decoradas com pôsteres de estrelas do cinema como Joan Crawford, Bette Davis, James Dean, Marilyn Monroe e Humphrey Bogart — e claro, pelo piano.
O ambiente lembrava os bares ingleses. Havia mesas de dois lugares para casais e, de quatro lugares, para grupos. Os quadros, inclusive, fazem parte da memória do colunista social do Pioneiro, João Pulita.
— Quando a Madonna surgiu, ela foi a artista que ganhou destaque num pôster grande no bar. Então, haviam as fotos de grandes estrelas, autografadas e emolduradas na decoração. A carta de drinks também era maravilhosa — relembra Pulita.
Inspiração na capital paulista
Quem projetou e decorou o Tiffany's lembra que o conceito surgiu a partir de uma viagem a São Paulo (SP). O arquiteto e urbanista José Afonso Braghirolli Galvão, 79, que trabalhou dos anos 1970 aos anos 2000 para a rede Alfred, recorda que Miguel Sehbe (que fundou a rede ao lado do irmão Jorge) o chamou para uma conversa:
— O Seu Miguel uma tarde me ligou e disse que queria falar comigo. Encontrei ele e ele me disse: "aqui tem uma passagem de avião, um valor em dinheiro e amanhã de manhã você vai para São Paulo olhar os bares e conhecer os hotéis de lá".
A ideia, como relembra o arquiteto, era ter um bar junto ao lobby do Palace. Na capital paulista, Galvão, aos 24 anos, ficou impressionado com o que viu, especialmente no luxuoso Maksoud — uma estrutura de duas torres, com samambaias descendo por todo prédio, elevadores e telhado de vidro, com vista para o céu, e um sofisticado bar. A inspiração do piano do Tiffany's, por exemplo, veio dali, quando ele presenciou um show inesquecível.
— Estava lá tomando meu whisky, vendo ideias para o Tiffany's e vi um casal entrar. Foi o maior show de samba-canção que eu vi na minha vida. Ela cantando e ele tocando o piano. Nunca mais esqueci — exclama o arquiteto.
No bar caxiense, a trilha era mais pautada pelo jazz, com nomes como Charles Aznavour e Ray Conniff, que o arquiteto conta ouvir até hoje. Outra inspiração foi uma peça única, desenhada no teto do bar, para a iluminação. A viagem também trouxe referências para o Donjon e a Cave, os outros redutos do Palace.
De lazer e hopedagem, a ponto de encontro dos caxienses
Galvão relembra que a ideia era ter ambientes de lazer aos hóspedes com o Donjon, o Tiffany's e a Cave. O arquiteto conta que era comum os frequentadores do Palace utilizarem a piscina coberta no segundo piso (uma das adaptações de Galvão ao projeto que veio do Rio de Janeiro), e depois aproveitarem para bebidas no Donjon, o restaurante de alta culinária que dividia o andar com a piscina e que, às vezes, tinha até show com trompetista.
— Botávamos a roupa (depois da piscina e sauna), íamos tomar uma bebida ao redor da piscina e depois se jantava no Donjon. O pessoal fazia isso — detalha o arquiteto.
Já no subsolo, com entrada pela Praça da Bandeira ou por dentro do hotel, numa rua criada por Galvão apenas para isso, ficava a Cave, inaugurada por volta de 1974. No ambiente, uma parede tinha uma verdadeira obra de arte. O pintor uruguaio Robinson Sobrera inspirou-se nas vinícolas caxienses e criou uma cena de freis degustando vinho. Um dos pratos mais relembrados é a pizza. Entre os drinks — assim como no Tiffany's —, tinha opções como o Alexander, uma mistura de creme de leite, leite condensado e licor de cacau.
Era mais romântica aquela época. Uma vida mais romântica
JOSÉ AFONSO BRAGHIROLLI GALVÃO
Arquiteto e Urbanista
A esposa do arquiteto, a jornalista Marilia Frosi Galvão, 75, recorda ainda que era uma época de mais segurança, em que os casais e amigos podiam sair à noite a pé, para ir até esses pontos de encontros.
— Era mais romântica aquela época. Uma vida mais romântica — define Galvão.
"Não tem mais nada igual"
Os redutos do Palace eram frequentados por clientes de todas as idades. Entre eles, também personalidades locais, como rainhas e princesas da Festa da Uva, o ex-governador Germano Rigotto, e o advogado Willy Sanvitto, líder da construção do Estádio Alfredo Jaconi. A publicitária Flávia Gazola, 63, lembra que Sanvitto, sempre simpático, costumava pagar a conta do pessoal.
Frequentadora do bar, mesmo quando foi morar em Porto Alegre, Flávia relembra das noites embaladas pelo piano ao vivo e também as festas. Algumas celebrações de aniversário foram no Tiffany's.
— Nós fechávamos o bar para fazer festa. Nós fizemos muita festa lá — relembra a publicitária.
Nos anos 1980, em uma época que "ninguém tinha limites", como ri Flávia, o bar do Alfred Palace ficou marcado e deixa saudades:
— O bar mais legal que Caxias já teve. Não tem mais nada igual.
"íamos fechar a noite na Cave ", diz Ferronatto
Outro bar do Palace que também fez história foi a Cave. O produtor cultural Luiz Carlos Ferronatto, 69 anos, foi um dos responsáveis por selecionar a trilha sonora da casa, baseada em jazz e bossa nova.
O reduto também recebia música ao vivo em um ambiente para cerca de 200 pessoas. Ferronatto recorda com carinho de apresentações como as de Jorge Mautner e do conjunto de bossa nova, Tamba Trio (foto abaixo).
O espaço, no subsolo do Palace, era perfeito para os encontros com os amigos.
— Íamos fechar a noite na Cave, especialmente no domingo. Eu tenho a lembrança de me encontrar com toda aquela turma depois de sair do cinema, ou de algum show e ficar lá até fechar. Os garçons tinham que mandar a gente embora. Lá conversávamos sobre política, sobre arte — descreve.
O reduto também recebia música ao vivo para cerca de 200 pessoas. Ferronatto lembra das apresentações de Jorge Mautner, do conjunto d bossa nova, Tamba Trio, e da Suite para Flauta e Jazz Piano de Claude Bolling, interpretada por músicos de Porto Alegre.
Ao mesmo tempo, a Cave promovia jantares para artistas que vinham se apresentar em Caxias. Ferronatto, que produzia shows na cidade entre 1980 e 1990, lembra de ter jantado por lá com o cantor Alceu Valença. Esse foi só um dos músicos que vieram para Caxias e se hospedaram no Palace (veja mais, abaixo).
— Foram realmente dois bares de muito bom gosto (a Cave e o Tiffany's). Era, assim, o que tinha de melhor em Caxias naqueles anos 1980. Era padrão, quase, digamos, de hotel de primeiro mundo — afirma Ferronatto.
Palace, o hotel dos artistas e das celebridades
Ferronatto, Renato Henrichs e Rocha Netto foram responsáveis por trazer diversos shows naquela época em Caxias. O hotel escolhido para hospedagem era o Palace, o mais luxuoso da cidade.
Alguns dos nomes que passaram por ali, entre os anos 1980 e 2000, foram, por exemplo, Roberto Carlos, Raul Seixas, Lobão, Rita Lee, Paralamas do Sucesso e Belchior.
O hotel também recepcionou lideranças políticas, como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o Lula (sempre hospedado no quarto 1013).
Numa dessas vindas até mesmo a polícia precisou ser chamada. Quando o RPM fez show em Caxias, em 1986, os membros hospedaram-se no hotel. Ferronatto lembra que eles precisaram de escolta porque mais de 500 fãs aguardavam por eles na frente do prédio logo na chegada.
— Era uma confusão, ninguém mais podia entrar no hotel, tivemos que chamar a polícia para botar ordem na frente — lembra o produtor.
O que ninguém sabia é que Rocha Netto, 65, era responsável pela estadia de dois dias da banda liderada por Paulo Ricardo e driblou todo mundo — até mesmo o jornalista Pedro Bial, enviado para gravar em especial para a Globo. O DJ e produtor conta que deixava o Landau dele em uma saída na Rua Os Dezoito do Forte e com o carro, transportava os músicos.
— Depois desse show do RPM teve um jantar privado só com o pessoal da produção e da gravadora CBS. Jantamos com toda a banda depois do show ali no Donjon — revela.
Essa é uma das tantas histórias vividas. Netto lembra ainda que sempre que Roberto Carlos vinha a Caxias, a parede da suíte tinha que ser pintada de azul. Mas, um dos momentos mais marcantes foi a recepção aos Mamonas Assassinas, em 1996, naquele que seria um dos últimos shows da banda.
Como conta o produtor, eles passaram três dias em Caxias e se divertiram, indo até jogar futebol e fazer churrasco. Antes de irem embora, Netto realizou um desejo do filho, que queria conhecer os Mamonas.
— O meu filho queria conhecer e aí, levei ele ali no Palace. Foi uma coisa muito legal porque eles tinham uma empatia e um respeito com a gurizada. Eles não saíram aqui de Caxias sem atender toda a gurizada antes de viajar — conta o DJ e produtor.
Três dias depois, ocorreu o acidente aéreo que matou toda a banda. Netto não tinha ainda nem revelado as fotos que fez do filho com a banda.
O apagar das luzes
Já depois do período das celebridades e dos redutos, o Palace seguiu o ritmo de outros hotéis caxienses, recepcionando turistas e viagens a negócios. Quem recorda disso é Arlei Zucco, 60, que trabalhou durante sete meses no turno da noite no restaurante Donjon, entre 2005 e 2006, ano de fechamento da hospedagem.
Zucco recorda que o hotel ainda tinha uma estrutura "bem conservada". Responsável por preparar o café dos hóspedes, ele lembra ainda que havia dias em que chegava a montar a mesas para 240 pessoas.
— A estrutura era muito boa. Aquela época ainda eu acho que ele era o primeiro ou o segundo mais procurado — acredita Zucco.
Às vezes, o hotel recepcionava coquetéis. Mas, a época das celebridades passou, e ficaram apenas as histórias.
Relembre o que aconteceu com os hotéis Alfred e Alfredinho
- Inaugurado em 1963, o Alfredinho funcionou até 2013, sendo os últimos dez anos administrado pela Coophotel. Depois, foi repassado ao Estado e vendido a uma incorporadora de Ivoti. A empresa vendeu para o empresário caxiense Almir Persico, que é o atual proprietário e responsável pelo investimento que está sendo feito no local.
- Inaugurado em 1974, o Alfred Palace ficou em funcionamento até 2006, sendo que em 2004 foi à leilão e mudou de mãos. Por volta de 2016, tornou-se um prédio empresarial.