Há três anos uma família caxiense desfruta da possibilidade de produzir o próprio óleo de cannabis, amparada por decisão judicial favorável que permitiu o plantio de até 12 pés da planta, cujas propriedades medicinais são cientificamente reconhecidas como analgésico e relaxante, mas que ainda encontra barreiras para ter seu uso normatizado no Brasil, em grande parte por ser a mesma folha utilizada para produzir a maconha.
No caso desta família que prefere não se identificar, o óleo de canabidiol — um dos compostos ativos presentes na cannabis, assim como o THC, entre outros — contribui para amenizar a rigidez muscular e também provoca uma significativa melhora no estado emocional da paciente, de 32 anos, que sofre de distúrbios neurológicos e, desde 2008, passa os dias numa cadeira de rodas.
— A melhora que ela apresentou com a cannabis foi muito grande. A gente sentiu a diferença principalmente quando ela teve de ficar três meses sem o tratamento, e ficou muito agitada, teve crises de choro horríveis. Também houve uma regressão na questão espástica dela (da rigidez muscular) — conta a mãe da paciente.
Tão importante quanto ter tido a prescrição médica do óleo de cannabis como auxiliar no tratamento foi a possibilidade de cultivar a planta para fazer o próprio medicamento. Antes de obter esse direito, a família precisava adquirir o óleo de associações autorizadas — caminho seguido pela maioria dos usuários — e muitas vezes não conseguia um remédio eficaz.
— O remédio prescrito para ela (a filha) é um pouco mais forte, feito com 10% de cannabis, enquanto a maioria dos óleos no mercado são bem mais fracos. Era quase como se ela não tomasse. Agora nós conseguimos fazer óleo perfeito para a necessidade dela — explica a mãe, que fez um curso de poucos dias para aprender a cultivar e extrair o remédio da planta, que é plantada em uma estufa na sacada do apartamento da família.
Para garantir o direito ao cultivo foram anos de idas e vindas em diferentes instâncias da Justiça e incontáveis recursos apresentados. Atualmente, vigora uma liminar expedida por um ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), com parecer favorável do recurso junto ao Ministério Público Federal (MPF) para que a família continue plantando. O advogado que representa a família, Patrick Mezzomo, considera que a falta de uma legislação sobre o tema é prejudicial para os pacientes e familiares, que sofrem com a insegurança jurídica:
— Atualmente, não há legislação específica que regulamente o tema, sendo que as pessoas que possuem indicação do tratamento precisam buscar o Judiciário para pleitear a garantia do tratamento, sendo que uma das linhas é buscar a possibilidade do cultivo e extração do óleo na esfera criminal. Desde 2020, após a regulamentação da Anvisa sobre os fármacos com base de CDB e a importação destes, há possibilidade de pleitear que os entes públicos (União, Estado e/ou Município) forneçam a medicação pronta. Mas só a criação de uma legislação sobre o tema irá gerar garantia jurídica e uniformização dos entendimentos, beneficiando aqueles que possuem indicação médica para o tratamento.
Da vivência pessoal à busca do bem comum
Desde a semana passada, uma segunda família de Caxias do Sul, atualmente radicada em Santa Catarina, também comemora o direito recentemente adquirido de produzir o próprio óleo de cannabis. Douglas Pes, 46, filho do dentista aposentado Genuíno Pes, é quem irá plantar os pés de cannabis para extrair o canabinóide que auxilia no tratamento do pai contra a doença de Parkinson.
— Nosso primeiro contato com a cannabis medicinal foi durante o tratamento do meu irmão, já falecido, contra um tumor cerebral. Quando a quimioterapia e radioterapia já não surtiam efeito e nós procurávamos por terapias alternativas, o canabidiol ajudou demais. Quando meu pai apresentou os primeiros sinais do Parkinson, nós procuramos médicos que prescrevem o CBD e já faz três anos que ele se beneficia desse tratamento — conta Douglas.
O caxiense explica a diferença que o óleo de CBD faz no sentido de dar mais qualidade de vida ao pai no enfrentamento da doença degenerativa:
— Ajudou muito a reduzir os tremores da doença, a permitir que ele caminhe melhor, e ele também passou a ter menos espasmos durante o sono, conseguindo dormir melhor. Também contribuiu para a melhora do humor, do apetite e do funcionamento do intestino. Não é apenas o paciente que se beneficia, mas toda a família que dá o suporte.
Indo além da experiência familiar, Douglas quer lutar para que mais pessoas possam ter o acesso facilitado e a mesma garantia judicial para poder desfrutar dos benefícios medicinais da cannabis, seja para si ou para um familiar convalescente. Essa foi a motivação por trás da criação, em março, da Associação Novos Caminhos, voltada a ajudar mais pessoas a ter acesso ao tratamento de qualidade e com preços mais acessíveis. A entidade pode ser encontrada pelo Instagram neste link ou pelo site.
"Há falta de médicos prescritores", afirma especialista
Além da falta de uma legislação específica, um dos maiores entraves para quem busca tratamento com cannabis ainda é a falta de prescritores, mesmo que todo médico e todo dentista esteja autorizado a receitar o medicamento. O psiquiatra caxiense Dr. Rodolfo Variani, no entanto, se tornou um entusiasta da planta desde que teve o primeiro contato, ainda como estudante de Medicina da UCS, em uma viagem a Holanda durante período de intercâmbio em uma universidade italiana.
— Tive acesso à literatura sobre o tema, sobre as muitas possibilidades terapêuticas, e desde então fiquei com aquele interesse. Mas no Brasil ainda não era fácil. Durante a residência em psiquiatria que fiz no Rio de Janeiro, por volta de 2017, o assunto começou a entrar na pauta. Mas tudo ainda era mais complicado — conta.
Uma virada de chave na questão da cannabis no Brasil, mesmo que longe de ser definitiva, foram duas resoluções da Anvisa de 2019, que permitiram a venda de produtos à base de cannabis em farmácias (RDC 327) e a importação de produtos para uso próprio (RDC 660), segundo explica o médico:
— Foi a partir de então que pudemos atender a um volume maior de pacientes que receberam a prescrição de cannabis. A principal dificuldade encontrada hoje em dia é o afunilamento da demanda. Os pacientes já conhecem sobre o assunto, já têm a informação, diferentemente de outros tempos em que o saber médico era concentrado no profissional, mas acabam encontrando no médico uma barreira para ter o acesso.
Variani é diretor técnico de uma clínica especializada em tratamentos canábicos nas áreas de psiquiatria, neurologia e geriatria, a Gravital, com diversas sedes pelo Brasil (no RS está sediada em Porto Alegre) e possibilidade de atendimento por telemedicina. Nos últimos três anos, o médico já prescreveu produtos à base de cannabis (além do óleo para uso sublingual, o mais comum, também são utilizadas soluções em forma de creme, balas comestíveis, supositório, entre outras) para mais de mil pacientes, tendo atualmente de 10 a 20 novos pacientes por semana. Ele explica quais são as comorbidades mais recorrentes que podem ser tratadas com a cannabis:
— As evidências mais robustas são para as dores crônicas. Já é consenso para a comunidade científica que a cannabis funciona no tratamento da dor ortopédica, da dor reumática, da dor psíquica, que é a dor da fibromialgia. A gente também observa respostas boas para epilepsia, para enxaqueca, e temos outras situações que ainda não há um consenso acadêmico, pois faltam estudos, mas que na prática a gente vê bastante benefício. Falo da ansiedade, da depressão, do autismo, das demências, como mal de Alzheimer, e doença de Parkinson. Na psiquiatria clínica a cannabis é uma ferramenta que, se bem utilizada complementando o tratamento médico adequado, pode trazer muitos benefícios aos pacientes.
Além do acesso que, mesmo a passos lentos, se torna menos restrito, outra mudança importante nos últimos anos, segundo explica o especialista, também é referente ao custo do fitoterápico:
— Hoje a gente já consegue falar em tratamentos que podem custar entre R$ 200 e R$ 300 por mês, algo impensável alguns anos atrás, quando dificilmente sairia por menos de quatro dígitos.
Embora se torne cada vez mais fácil adquirir os medicamentos canábicos, especialmente através de associações autorizadas, Variani frisa que a cannabis é um tratamento adjuvante que não pode prescindir da prescrição e do acompanhamento médico.
— É importante destacar que a cannabis tem de ser bem indicada, bem orientada, se não ela sequer vai funcionar. Há muitas considerações sobre dosagem, sobre composição dos tipos de óleo, que fazem diferença na hora de atenuar algum sintoma. E, acima de tudo, a cannabis tem um caráter adjuvante. Ela precisa de um acompanhamento médico regular, e demanda tempo para dar resultado. São longas semanas de ajuste de dosagem, principalmente — aponta.
Caxias terá encontro para debater a cannabis medicinal neste sábado
Debater e ampliar o conhecimento sobre pesquisa, produção e a utilização de medicamentos com base na cannabis sativa é o objeto de um encontro que irá ocorrer neste sábado (3) em Caxias do Sul, na Câmara Municipal (Sala Geni Peteffi), das 9h às 13h.
Aberto ao público, o evento foi proposto pelo gabinete do deputado estadual Leonel Radde (PT), responsável por criar, no início de maio, a Frente Parlamentar da Cannabis Medicinal. O evento terá como painelista a pesquisadora caxiense Manuela de Moraes, e contará também com a participação das advogadas Carolina Vollmer Cervo (OAB) e Letícia Ana Basso (Defensoria Pública) e da deputada federal Denise Pessôa (PT), além do próprio Radde. A mediação será do psicólogo Luís Carlos Bolzan, representando o Conselho Regional de Psicologia (CRP).
— Nós do CRP temos o interesse em ouvir mais relatos e aprofundar os estudos, para que possamos avançar rumo a uma normatização para o uso da cannabis. O que temos encontrado nessa discussão é que vários colegas psicoterapeutas apontam que os seus pacientes em diferentes situações têm encontrado maior qualidade de vida com essa prescrição médica. Nosso entendimento é que há uma necessidade inequívoca de avançar nessa discussão. Não podemos cair num proibicionismo, ou num aspecto moralista, que não permita que tantas pessoas possam gozar de um benefício que a ciência oportuniza a elas. Temos visto em outros países o uso dessas medicações de forma exitosa e entendemos que aqui no Brasil temos de colher os mesmos frutos — avalia o psicólogo.
TEMA DENTRO DE OUTROS TEMAS*
Graduada em Comércio Internacional, a pesquisadora caxiense Manuela de Moraes destaca que o encontro na Câmara pode ser um pontapé inicial em um movimento educador sobre a cannabis e sobre os direitos ao tratamento para pacientes e familiares de Caxias do Sul:
— O tema da cannabis medicinal é um guarda-chuva que abriga outros temas em si. Tem recortes de saúde pública, de segurança e de economia, uma vez que estamos mandando para fora do país um dinheiro que poderia girar no Brasil, se mais pacientes tivessem o direito de produzir o seu próprio óleo. Mas, neste momento específico, a gente quer levantar o debate e trazer o conhecimento para a população. Após um período histórico muito grande de proibição, como chegar agora e dizer que dá para usar porque é medicinal? Antes de tudo é preciso que haja um movimento educador na sociedade, que mais pacientes saibam que têm o direito ao tratamento com a cannabis e como assegurá-lo.
Além do interesse acadêmico, Manuela viveu uma experiência familiar com o uso medicinal da cannabis, fato que contribuiu para aumentar o interesse sobre o assunto. O pai da pesquisadora, já falecido, recebeu o tratamento enquanto lutava contra o câncer colorretal:
— Num quadro já avançado de câncer, tendo passado por quimioterapia, radioterapia e tendo voltado da UTI extremamente debilitado, após ter feito uso do óleo ele teve a oportunidade de voltar a ser ele mesmo um pouquinho, e eu posso falar com todo o amor sobre a experiência de tê-lo de volta enquanto ele estava em tratamento. Trata-se de um tratamento que a ciência já comprovou ser eficaz para pessoas que vivem, muitas vezes, em condição de sofrimento. (*colaborou Gabriela Alves)