Isso não é uma reportagem sobre viagens. É uma reportagem sobre os impactos e transformações que uma jornada por diferentes povos, culturas e países provocam. E mais, as quebras de paradigmas e o desvelar de ignorâncias a quem, naturalmente, se permite a enxergar a vida em um outro lugar por meio dos olhares de quem lá vive. E o que isso tem lá a ver com vitrines adornadas com enfeites de Natal, oferecendo sugestões de presentes em meio a um estranho clima festivo, às portas de uma mudança de governo no Brasil, uma guerra incômoda entre Rússia e Ucrânia, uma nova onda de covid-19 lá na China e as rusgas daqui e dali, porque a reflexão de fechamento de um ano expõe sempre um descaminho, um desamor, uma desilusão.
O ponto de partida aqui é o seguinte. Uma viagem pode ser só um passeio, um pretexto pra lotar o celular de fotos e vídeos incríveis, postar meia dúzia delas nas redes sociais, além de um tempo pra ficar de pernas pro ar e curtir, até onde alcançar o planejamento financeiro de cada um. Mas uma viagem pode ser também a jornada de uma via só através de uma imersão pelo desconhecido, desde que de olhos bem abertos pra desvendar, por exemplo, como povos ancestrais se estabeleceram alicerçados em suas crenças, filosofias e princípios religiosos.
Esse foi o enfoque da empresária e consultora de viagens Leidy Indicatti, 36 anos. Só não sabia ainda que ao mergulhar em culturas tão diversas provocaria nela transformações na maneira como vê a vida (dela e do outro) e é isso que ela compartilha aqui com a gente, nessa reportagem.
— Estar acostumada a viajar não significa que não vamos nos surpreender com os lugares que vamos visitar. Tirei pouco mais de 30 dias pra fazer o que brinco dizendo, que é “menu degustação” de religiões, culturas, filosofias e crenças. Meu foco era entender um pouco mais como aqueles povos vivem e porque vivem assim. Porque não tem como entendê-los sem conhecer a religião e a crença deles. E de uma certa forma, nosso dia a dia está determinado baseado naquilo que a gente acredita — explica, em uma entrevista concedida em um ambiente que é mais do que uma loja de uma grife de moda, é um espaço também criado pra promover encontros e reuniões de gente, apesar de diversa, que dialoga sem conflitos.
Em 33 dias Leidy encarou mais do que uma viagem e, sim, um período sabático e imersivo saindo do Brasil com destino ao Egito, Israel e Índia. A Palestina não estava nos planos e apesar de pouco tempo no solo, que ainda nem é reconhecido como um país, também deixou nela marcas que dão conta de compreender mais sobre um povo sempre estigmatizado e marginalizado. Em cada parte uma lição que, ao final, ela resume como um “caleidoscópio de cores, sabores e filosofias”.
E ainda, pode-se depurar desse relato de viagem, como segue sendo imprescindível, por uma melhor convivência em sociedade, elementos chave como a empatia, a compaixão e o olhar despido de julgamentos. Apesar da singularidade, de pontos de vista por vezes conflitantes, do futebol à política, passando pela educação dos filhos, por escolhas amorosas e até religiosas, Leidy reforça a ideia de que “somos um”. Mesmo que seja mais trabalhoso erguer pontes do que estabelecer muralhas, travessias como essa justificam a importância de que aceitar a vida do outro é partilhar da harmonia e do amor, deixando a intolerância no mar do esquecimento.
Egito: 12 dias
A viagem ocorreu entre outubro e novembro deste ano. E tinha como ponto central a visita a Índia por conta de um festival que já encantava Leidy antes mesmo dela pisar em solo indiano. Mas, antes de revelar o fim, a porta de entrada para essa jornada por meio de “religiões, culturas, filosofias e crenças” foi o Egito.
O primeiro choque cultural, por assim dizer – e porque não, também existencial – foi compreender que o egípcio ancestral, principalmente do período faraônico, diferentemente do senso comum atual, projetava sua vida para o pós-morte e não para curtir o hoje e agora.
— Para entender o Egito tu precisa de um egiptólogo pra te explicar a história e o contexto todo. O mais incrível é que me dei conta lá, ao ouvir as explicações que eles viviam para a morte. Pois tudo o que eles faziam em vida era pensando no pós-morte — conta ela.
Leidy, que trabalha com viagens desde 2004, disse que sua forma de transitar pelo Egito foi visitar lugares respeitando a linha do tempo.
— Então, primeiro vi pirâmides, depois os túmulos, as tumbas, entendi mais sobre os faraós e as crenças deles, fui nos templos e, no final, fui aos museus para fechar os pontos.
Entre tantos paradigmas quebrados, que segundo ela, ajudam a estabelecer mais proximidade por meio da empatia, apesar das diferenças, Leidy recordou de uma parada inesperada.
— Visitamos a casa de uma família no Vilarejo Bassaw, tomamos chá, entendemos como era a vida deles nesse lugar onde moram cerca de 100 pessoas. Fizemos um passeio pelo rio Nilo e a certa altura paramos numa pequena ilha. Foi algo bacana pra gente e pra eles, porque era o primeiro grupo que essa família recebia, no sentido que foge completamente do roteiro tradicional. Eles mostraram o quarto da menina e tinha uma colcha da Hello Kitty na cama. E isso acaba nos aproximando, porque minha sobrinha também tem uma colcha da Hello Kitty. Então, o que tu achava que seria um choque, num primeiro momento, acaba mostrando elementos que se conectam.
Israel: 7 dias
Depois do Egito, Leidy encarou uma viagem pra Israel com destino a Tel Aviv e Jerusalém. Mas, diferentemente do trajeto em solo egípcio feito em companhia de um grupo, dessa vez ela viajaria sozinha. Apesar de saber de antemão que há uma proximidade muito grande, dentro da chamada “Cidade Antiga”, em Jerusalém, ela se surpreendeu em ver que os armênios, os cristãos, os árabes e os judeus convivem nesse mesmo espaço de uma forma em que cada um respeita as diferenças do outro.
— Passando por Israel, o berço das três religiões monoteístas. Se eu não tivesse passado pela Índia, diria que Jerusalém é a cidade mais louca que eu já conheci. Andar pelas ruas e sentir a história pulsante com cristãos, judeus e muçulmanos convivendo com uma proximidade absurda. E é inevitável que isso traga uma reflexão sobre todos os problemas que enfrentamos hoje, como é o caso da Palestina, onde fica Belém, cidade sagrada para os cristãos onde a tradição incorpora o nascimento de Cristo.
Leidy complementa:
—Fui a Belém só que eu quis conhecer esse lugar com um guia palestino. Ele me recebeu lá e me contextualizou a questão da Palestina hoje. E eu acho legal ter os dois pontos de vista, do israelense e do palestino, porque se tu fica em um só aquele viés vai ser completamente tomado. Estamos vivendo um momento em que ali reina a paz então me sentia segura.
Índia: 14 dias
De Jerusalém, Leidy voltou pra Tel Aviv, em Israel, pra pegar um voo com destino a Deli, capital da Índia.
— A Índia culminou em um caleidoscópio de cores, sabores e filosofias. Foi um choque cultural gigantesco em que o ápice foi um festival chamado Dev Deepawali, na cidade sagrada de Varanasi, em que peregrinos hindus de toda a Índia se dirigem para receber bênçãos às margens do Rio Ganges. Além disso, tive a oportunidade de conhecer religiões que eu nunca havia tido nenhum contato, como é o caso do Sikhismo e Jainismo. Além do Budismo, que nasceu na Índia e depois se alastrou para outros países, e o Islamismo, que é muito presente lá também.
Leidy reconhece que em um primeiro momento a Índia provoca um choque em quem lá pisa, porque tudo é caótico, do trânsito a essa profusão de rituais distintos, e claro, as vacas que são vistas e reverenciadas por toda parte. Contudo, ela revela como foi, de certa forma, seduzida pelo povo indiano.
—A Índia tem o poder de subverter todas as nossas convicções e preconceitos. É um país fascinante, seguro por conta das suas crenças e com pessoas, ah as pessoas!, amáveis e respeitosas. Em todos os templos que visitei me senti superacolhida. O que me fazia pensar no que aconteceria se uma pessoa de lá, por exemplo, um Sikh, com seu tradicional turbante, aparecesse dentro de uma igreja aqui, para ver uma missa ou um culto. No mínimo receberia olhares tortos e sussurros de todos os lados — observa ela.
De forma sintética, mas profunda, Leidy diz:
— Você pode ir para a Índia e não gostar da Índia. Mas uma coisa é certa: você nunca voltará o mesmo de lá.
Caminho de volta
Como se volta pra casa depois de um tempo de imersão profunda, como se viu aqui nesses relatos, não apenas nessa profusão multifacetada de raízes culturais e de crenças tão diversas, mas de uma jornada interior tão impactante? No caminho de volta, ainda com os pés na Índia, Leidy escreveu o texto a seguir e postou-o nas redes sociais:
Depois de 33 dias e 3 (intensos) países será muito difícil iniciar essa nova viagem... a de voltar para casa. Para o meu país, um Brasil dividido e que me dá medo só de pensar.
Muito do que vivi aqui vai continuar reverberando por muito tempo ainda. E uma coisa é certa: minha luta sempre será pela unicidade, amor e entendimento recíproco de tudo e de todos. Pois somos UM. E essa é a clareza que eu nem sabia que buscava, mas que me foi entregue de uma forma tão intensa e genuína nestes últimos dias, após percorrer a história de tantas religiões, da fé, das guerras e dos deuses de tantos povos.
E essa é a minha verdade.
Eu deixo a Índia, mas a Índia jamais vai sair de mim.