23 abril de 1616. Naquela mesma data, um sábado, o mundo perdia dois dos maiores escritores da história: William Shakespeare e Miguel de Cervantes. Também naquele dia, morria Inca Garcilaso de la Vega, cronista peruano menos conhecido do que os autores de Macbeth e Dom Quixote, mas que ao lado deles forma o trio que fez a Unesco, em conferência realizada em 1995, escolher 23 de abril como o Dia Mundial do Livro e dos Direitos do Autor.
Mais do que celebrar os autores, a data se propõe a homenagear tradutores, editores, leitores, livreiros, todas as pessoas que se envolvem com a literatura, seja por vocação, profissão ou paixão. Também é o dia em que ações buscam conscientizar sobre a proteção aos direitos autorais, tanto de obras artísticas quanto de produções científicas.
Como homenagem pelo Dia Mundial do Livro, o Almanaque convidou cinco caxienses apaixonados por literatura para falar sobre uma obra que tenha marcado sua vida e sua formação, como cidadãos e como leitores. Confira:
CLÁUDIA MELANE (foto que abre a reportagem)
A auxiliar de Cultura e Lazer do Sesc e estudante de biblioteconomia Cláudia Melane, escolheu Semeador de Ideias (Planeta, 2010. 272 páginas), do escritor e psiquiatra paulista Augusto Cury.
“Sou uma leitora tardia, herdei da avó paterna de meu filho um acervo de mais ou menos 150 livros e pensava em iniciar a leitura deles “após me aposentar”. Acontece que fiquei desempregada por dois anos e, em meio a isso tudo, entrei em depressão, em virtude das dificuldades e da falta de perspectivas profissionais, de vida.
Um dia, sentada em frente à estante, pensei “é agora que vou começar a ler esses livros” e, a partir daí, “maratonei” diversos deles, li muito mesmo, e me peguei rindo alto por várias vezes enquanto lia. Numa dessas, meu filho abriu a porta do quarto para ver porque eu estava rindo tanto e alto, e comentou: “ah, é do teu livro que você tá rindo, mãe!”.
Os livros foram um respiro, um alívio para aquele momento de difícil aprendizado na minha vida. E por uma feliz coincidência do destino, há dois anos trabalho em uma biblioteca maravilhosa, lendo, sugerindo, comentando sobre os livros. Também voltei a estudar, aos 52 anos!
O livro que marcou a minha vida é Semeador de Ideias, do escritor e psiquiatra Augusto Cury, que fala justamente dos nossos questionamentos em momentos de dificuldades, da existência de Deus, fala das coisas que realmente importam e não têm preço, como a família e o tempo que dedicamos às pessoas que amamos”.
GILMAR MARCÍLIO
O filósofo e escritor caxiense escolheu Os Frutos da Terra (original de 1897. Edição traduzida mais recente: Lebooks, 2019, 120 páginas), do escritor francês André Gide, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1947.
“Aos dezessete anos, morando em uma comunidade rural e com pouco acesso à informação, os livros representavam uma janela para o mundo. Na verdade, a mais importante. Eu lia avidamente, para entender o que estava acontecendo com meu corpo e o turbilhão emocional instalado dentro de mim. Adolescente, buscava nos autores, agora meus amigos, uma espécie de confraria onde fosse possível aceitar o que ainda não tinha nome, mas precisava ser traduzido. E foi nesse exato momento de inquietação que descobri um escritor fundamental até hoje em minha vida. Refiro-me a André Gide, e especialmente à maravilhosa obra Os Frutos da Terra. Lá encontrei respostas, ou, antes, deparei-me com perguntas fundamentais. E tudo isso em linguagem poética, através de um libelo apaixonado e ardente. Um grito de liberdade. Passados tantos anos, volto a ele com frequência para reencontrar aquele garoto que aninhava no coração uma chama que persisto em manter viva dentro de mim.
Esses Frutos, mescla de ensaio e poesia, revelam a doutrina de seu autor, um homem que tirou o mofo da literatura bem-comportada e lhe devolveu o lustro de sua pátina inicial. Gide escreve para um imaginário Nathanael, apresentando-lhe sua filosofia hedonista, sagrada, suas verdades além das convenções. Uma espécie de programa de vida em que as convenções perdem o lugar. É um texto límpido e carregado de sensualidade, desafio ainda atual contra o bolor de uma moral que não se coaduna com os espíritos desejosos de habitar o edifício da verdade. A páginas tantas, lemos: “Camarada, não aceites a vida tal qual a propõem os homens. Não cesses de te persuadir que ela poderia ser mais bela, a vida; a tua e a dos outros homens; não uma outra, futura, que nos consolasse desta e nos ajudasse a aceitar sua miséria. Não aceites.”
Gide sempre foi para mim um mentor espiritual. Seu poema em prosa ainda ressoa com o frescor da primeira leitura. Sua voz límpida e corajosa canta em meu ouvido: Não te conformes”.
JONAS PICCOLI
O ator e escritor caxiense Jonas Piccoli escolheu três livros, um para cada fase da vida. O Pequeno Príncipe, do francês Antoine de Saint-Exupéry (original de 1943. edição mais recente em português: Novo Século, 2019. 98 páginas); O Mundo de Sofia, do norueguês Jostein Gaarder (original de 1991. edição mais recente em português: Cia. das Letras, 2012. 568 páginas) e a antologia Toda Poesia, de Paulo Leminski (Cia. das Letras, 2022. 424 páginas).
“Sempre fui muito apegado a livros infantis e quadrinhos, mas uma obra que fez muito sentido na época, e que reli pouco tempo atrás, é O Pequeno Príncipe. Tem uma questão emotiva, pois é o livro que eu lia junto com o meu pai, olhando as gravuras. Foi o primeiro livro que tive com a capa gasta e as orelhas levantadas, de tanto que eu levava para tudo quanto é lugar. Era o meu talismã.
Na adolescência, O Mundo de Sofia me ensinou o que era filosofia, que eu podia entender aquilo, e que, lá pelas tantas, o autor começava a conversar com o próprio personagem do livro, quebrando a quarta parede literária. Aquilo explodiu minha cabeça. Esse livro me fez pesquisar sobre filósofos, me interessar pelo mundo da filosofia, e gostar de ler algo além de ficção e de livros de terror.
Já na fase adulta, estou gostando muito de ler e de repensar uma maneira de ser através do bom e velho Paulo Leminski, com seus poemas muito fortes, brincadeiras com palavras, muitos maneirismos. Atualmente é esse bigodudo quem me faz pensar.
Cada bom livro é importante para uma determinada fase, e faz diferença naquele período. Poderia citar muitos outros. Existem livros que te entretém, que são legais, mas não deixam nada, porém sempre há aqueles que deixam pedaços dele grudados na tua mente, te cutucando e te fazendo revisitá-los de tempos em tempos. A maravilha dos livros é que daqui um ou dois anos eu provavelmente possa citar outros, porque eles estão sempre nos mudando”.
NICOLE BOFF CASAGRANDE
A estudante caxiense que aos 14 anos idealizou o Leitura-te, projeto de estímulo à leitura de autores nacionais, escolheu “Como eu não me apaixonei por você” (e-book Kindle, 854 páginas), da escritora independente carioca Mary Dionísio.
“É muito difícil responder qual o livro que mudou minha vida?, mas eu citaria “Como Eu Não Me Apaixonei Por Você” da Mary Dionisio, minha escritora favorita e também uma das melhores pessoas que tive a oportunidade de conhecer.
Todas as palavras neste livro foram escritas com o máximo de cuidado e amor, sendo que meu trecho preferido está ainda no prólogo, quando ela escreve sobre os dois estudantes de Jornalismo que protagonizam o romance: “primeiro eles se fizeram bem, para depois fazer bem um ao outro. Essa passagem dá uma noção do poder de curar e iluminar que a escrita dessa autora tem.
Quando eu estava atravessando um momento bastante difícil, esse foi meu livro do conforto, que me motivava a seguir em frente. Isso foi antes do romance virar, de fato, um e-book, o que só aconteceu em março deste ano. Desde 2020 a autora postava os capítulos no Wattpad (plataforma de interação entre autores e leitores) e eu acompanhava, voltando ao texto como meu porto seguro, quando estava tudo péssimo.
A Mariana dá a vida pelas histórias que ela conta, e da mesma forma eu dou a vida pela escrita nacional. Ver o livro dela encantando cada vez mais leitores, desde que passou a ser vendido na Amazon, é incrível”.
CHIQUINHO DIVILAS
O rapper e educador social caxiense escolheu Cabeça de Porco (Objetiva, 2005, 282 páginas), de Celso Athayde, MV Bill e Luiz Eduardo Soares.
“Quando eu li as entrevistas que MV Bill, Celso Athayde e Luiz Eduardo fizeram em várias quebradas do Brasil, descobri que periferia é periferia, em qualquer lugar. Os relatos transcendiam os espaços pesquisados pelos autores. Muitas histórias, inclusive, já tínhamos vivenciado aqui, a um palmo do nosso próprio nariz. Eu vi amigos, parentes, vizinhos nos relatos do livro.
O livro me inspirou, me auxiliou e abriu caminhos nos meus pensamentos, ampliando horizontes, fez refletir sobre nosso contexto, envenenou meu rap e fomentou meus estudos acadêmicos. Lembro que eu carregava o livro comigo o dia todo, acordava e dormia com ele. Foi intenso. Aliás, depois desse livro eu nunca mais parei de rimar e estudar”.