Quantos amigos você tem? Em quem confia? Com quem divide os problemas, comemora as vitórias, desabafa? Quem chama para sair? Qual amigo será o padrinho da sua filha, a dinda do seu filho? A vida só tem sentido com conexões. Um estudo da Universidade de Oxford, na Inglaterra, liderado pelo zoólogo, antropólogo e psicólogo britânico Robin Dunbar, mostrou que, durante a pandemia de coronavírus, o ser humano precisou redesenhar o mapa das conexões. E o resultado surpreendeu ao mostrar que cada pessoa tem apenas cinco amigos.
A reportagem repassou a artigo para grupos de amigos em um aplicativo de conversa. Alguns mandaram mensagens no próprio grupo e apontaram que, ao parar para pensar, perceberam que podem contar realmente com menos de cinco pessoas. Em outro grupo, as opiniões também se dividiram: há aquelas pessoas que têm cerca de seis amigos para quem confidenciam até mesmo segredos e com quem podem contar nas horas boas e ruins, e aqueles que contam mais com familiares do que com as amizades.
As respostas geraram debates sobre o que é a amizade e quem é o verdadeiro amigo de quem. Outras pessoas optaram por falar no privado: um deles disse que tem cinco amigos, mas confia apenas na irmã para contar tudo de sua vida; outros dois relatam que têm quatro amigos, com quem podem contar emocionalmente e financeiramente, outra pessoa afirmou ter apenas uma amiga para as horas mais difíceis, e uma quarta conta que percebeu que não confia em ninguém e, às vezes, se sente sozinha.
A pandemia colocou uma lupa em todas as relações e isso fez com que muitas pessoas passassem a se analisar e também a analisar ao outro. Não poder estar perto dos amigos ainda fez com que os laços se estreitassem e deixou mais evidente de quem sentimos falta e até com quem podemos contar. Amanda*, 35 anos, lembra que percebeu quem eram os amigos verdadeiros quando foi contaminada com a covid-19. Da turma de amizades próximas, composta por pessoas com quem convive há mais de 20 anos, apenas uma falava com ela todos os dias e se preocupou em levar alimentos e deixar no portão de casa.
— Moro sozinha e ninguém da minha família fez o que ela fazia. Ela me animava, me fazia rir, e sempre passava no mercado e comprava comida e trazia. Sabe o que eu gosto de comer e escolhia com carinho. Nunca aceitou que eu pagasse, e eu sou grata porque somos irmãs de vida. Os outros amigos estão sempre comigo, mas sinto que posso contar com eles nos momentos bons. Nas barras, é só essa amiga que segura a minha mão.
Ricardo*, 44, também confessa que pode contar os amigos nos dedos de uma mão. Para ele, as amizades têm espaço conforme cada momento da vida: tem o parceiro de infância, que ama, mas com quem não tem mais nada em comum; o colega de faculdade, que é padrinho do filho e é parte da família; o companheiro do futebol, com quem está louco para voltar a vibrar no estádio; o colega de trabalho, com quem desabafa sobre problemas comuns; e a irmã, com quem pode contar, e que considera sua melhor amiga:
— Ela mora há anos em Milão (na Itália). Minha sobrinha nasceu em meio à pandemia, em março de 2020, tem mais de um ano e está caminhando, e ainda não pude ver ela pessoalmente. Somos gêmeos, eu e a mana, e talvez seja por isso nossa conexão. Minha esposa sentiu ciúmes no começo do nosso namoro, da cumplicidade com a minha irmã, mas hoje é piada interna. Ela entende que tem assuntos que não consigo falar para ela, e que a minha irmã irá saber como falar comigo, seja gritando em uma videochamada ou com toda a calma do mundo, rindo e me acalmando como quando éramos crianças.
*As fontes preferiram não se identificar, por isso, foram usados pseudônimos.
"Cada ser humano é singular"
Ao analisar o estudo do britânico Robin Dunbar a psicóloga especialista em Terapia Cognitivo-Comportamental Renata Royo avalia que o número de amizades que apareceu no relatório é uma média e, portanto, pode variar de pessoa para pessoa.
— Cada ser humano é singular. Existem diversos fatores que influenciam no tamanho e na qualidade do nosso círculo social. É importante diferenciar os níveis de amizade: existem os amigos mais próximos, com quem temos um apego seguro, que são aqueles que podemos contar em qualquer situação, e os amigos de ocasiões, aquelas amizades de bar, festas, jantas. Os amigos próximos costumam ser um número bastante reduzido se comparado ao número total de amigos — avalia.
No seu consultório em Caxias do Sul, ela constata que os adolescentes têm sido mais afetados pelo isolamento, porque nessa fase da vida eles se identificam com os demais para que se sintam parte de um grupo.
— Essa convivência social é um fator bastante importante no desenvolvimento do adolescente e, devido à pandemia, percebo que os pais têm apresentado dificuldades em contornar essa falta — diz ela.
O período de isolamento também serve como um “filtro de amigos”, que permite diferenciar as relações de amizade mais profundas das mais superficiais com maior facilidade.
— As amizades próximas continuam ao seu lado. Mesmo que você não veja ou converse com a pessoa com frequência, você sabe que ela estará disponível emocionalmente. Por outro lado, provavelmente, você tenha perdido contato com aquelas pessoas que só se encontrava em situações sociais e o vínculo emocional não era tão profundo.
Em meio à pandemia, é comum divergir do comportamento de um amigo ou conhecido próximo, ou até mesmo ser criticado por desrespeitar as regras de distanciamento, não usar máscara ou se posicionar contra ou a favor da vacina. Nesse momento, se acirraram as diferenças, seja com relação à política ou qualquer outro tema. E isso também pode afetar o relacionamento:
— Falando em termos cognitivo-comportamentais, nós, seres humanos, temos um sistema de crenças e valores que guiam as nossas interpretações. Essas crenças são ideias que consideramos como verdades absolutas e cada pessoa vê o mundo através das “lentes” da sua crença. Uma amizade é gerada a partir de interesses em comum. São pessoas diferentes, porém há algo que as une. É muito improvável que você seja amigo de alguém completamente diferente de você. Porém, algumas vezes, existe uma divergência significativa entre as crenças, o que pode levar ao termino de uma amizade — explica Renata.
Amizade é via de mão dupla
A pandemia obrigou todos a olharem mais atentamente para os relacionamentos. Nesse novo traçado, a amizade é um dos principais pilares. São relações profundas e verdadeiras ou apenas laços superficiais?
— Com as redes sociais parece que temos mil amigos e isso cria uma falsa sensação de amizade. Primeiro temos que definir bem os termos para não criar confusões sobre o papel que cada um exerce em nossas vidas. A relação de amizade é real, ela tem que ter reciprocidade. Eu brinco falando com meus pacientes que é como a Avenida Júlio de Castilhos, aqui em Caxias do Sul. É uma via que sobe e outra que desce — avalia a especialista em Terapia Cognitivo-Comportamental, Joselaine de Barros.
A psicóloga aponta que há diferentes tipos de amizades, da infância, da faculdade e do trabalho, por exemplo:
— Há aqueles que saem desses cenários e vêm para a tua vida. É a amiga que estará na tua formatura, o amigo que vai no teu casamento, que estará presente quando teu filho nascer, o que batizará tua filha. São amizades para toda a vida, que são tipo casais, que um conta tudo para o outro até sobre como foi o dia. A amizade eleva os nossos níveis de substâncias químicas do bem, como a serotonina e a dopamina, e isso leva a uma melhor qualidade de vida. Tem a empatia também: quando eu sou amigo de verdade eu sofro aquela dor, aquele perda, aquilo que ele sente dói em mim e se eu sinto dói no outro.
Quanto ao número de amigos, a especialista é categórica: o que importa é a qualidade dos relacionamentos, os vínculos criados, e não a quantidade de amigos.
— Tem pessoas cercadas de amigos, o bom vivant, por exemplo, que está sempre bem, mas que na verdade não quer encarar as questões que o incomodam, as mais profundas. Parece estar muito feliz, enquanto mascara os sentimentos. Com autoconhecimento, tu consegue te aceitar e olhar para dentro, e aí não se importa em ter cinco amigos, por exemplo, porque o que vale é a qualidade, é saber quem está do teu lado, com quem consegue se abrir e quem vai ter erguer quando cair — analisa a psicóloga.
Quem é importante e o que realmente importa
Um outro estudo liderado por Robin Dunbar, publicado em 1993, na revista Behavioural and Brain Sciences, afirma que há uma correlação direta entre o número de neurônios neocorticais e o número de relações sociais. Com base na observação de primatas, o britânico afirmou que os humanos podem conseguir se relacionar de forma próxima e pessoal com um grupo de aproximadamente 150 pessoas. Com a pandemia, Dunbar divulgou a segunda parte do estudo, esse que abordamos no início desta reportagem, que conclui que nós, seres humanos, temos a capacidade de manter uma média de cinco amizades íntimas.
Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professora da Universidade de Caxias do Sul (UCS), Aline Passuelo de Oliveira ressalta que não tem elementos para analisar a pesquisa científica de Dunbar, mas sim para avaliar, com base nas vivências dela e das pessoas próximas, que as amizades são constituídas por um pequeno grupo. Com a chegada do coronavírus, como as relações passaram a ser ainda mais mediadas pela tecnologia, sem os encontros presenciais, surgiu a reflexão:
— Conseguimos entender quem são essas pessoas e que de fato são poucas com quem podemos contar. Já temos entendido até mesmo que família, muitas vezes, são aquelas pessoas que escolhemos. Acredito que aprofundaram essas amizades, que são essas pessoas que realmente estão conosco diariamente.
Do ponto de vista sociológico, ela lembra que a premissa da sociedade capitalista é o individualismo: as sociedades eram pequenas e tradicionais, com redes restritas e fortalecidas, e se tornaram amplas, o que mudou também as relações. No século 19, Émile Durkheim, um dos fundadores da Sociologia, avaliou que as sociedades tradicionais tinham laços mais fortes, com a chamada solidariedade mecânica:
— A gente não parava para pensar se ia agir em prol daquele nosso igual. Era automático, simplesmente agiam porque era assim que aquela sociedade funcionava. Foi então que ele se fez uma pergunta: com o surgimento do capitalismo por que as pessoas continuam se relacionando e estabelecendo redes, se passamos por um processo de individualização? É é aí que ele analisa que as pessoas, de cada profissão, são interdependentes. Por exemplo, eu sou professora, mas preciso do agricultor que vai plantar os alimentos e nós precisamos da jornalista, que vai estar informando o que acontece na sociedade — avalia Aline.
Assim se desenharam novas relações, até o surgimento da internet, e o uso da tecnologia, que mudou, mais uma vez a forma de se relacionar. Até a sociedade tem que aprender um novo normal com a pandemia de coronavírus.