A arte tem sido uma companhia acalentadora neste tempos de distanciamento social. Ler um livro, ver um filme ou uma série, escutar música e até visitar uma exposição de artes plásticas online são atividades que nos ajudam a enfrentar a realidade pesada dos dias. Mas a arte também pode ser uma ferramenta transformadora em outros níveis, buscando o apoio da psicologia. A arteterapia é um caminho possível há bastante tempo — Carl Jung já apontava para a função psíquica natural e estruturante da criatividade lá pelos idos de 1920 —, mas esse tipo de processo acabou ganhando ainda mais destaque agora, com a adaptação das sessões para o universo online e com um público sedento pela descoberta de mundos novos. Melhor ainda se esse “mundo novo” for o do autoconhecimento, para dar conta da brutal quantidade de conflitos que se apresentam na atualidade, certo?
— A todo momento a gente está voltando para essa coisa do artefato, da manufatura simples. A arte faz com que a gente volte de novo para a qualidade do nosso fazer, e muita gente se descobriu agora na pandemia fazendo comida, costurando uma roupa. Então, eu incluo a arte nesse próprio transformar o mundo mesmo. Nesse ponto, acho que a arte já é cura e terapia por si só — diz Gisela Cardoso, 56 anos, psicóloga clínica e analista junguiana que atua como arteterapeuta desde 2004.
Também durante a pandemia, a Universidade de Caxias do Sul (UCS) formou sua primeira turma na Especialização em Arteterapia: Processos Simbólicos. O grupo, composto em sua maioria por psicólogos, também contou com a participação de profissionais de outras áreas, o que comprova a abrangência do método. Uma das alunas foi Daiane Ramos Borges, 24, que é formada em Dança, mas sentia que sua relação com a linguagem artística podia ir além do que ela havia acessado até então:
— Escutei muito durante minha formação em arte e educação que a arte não precisa servir para alguma coisa, ela pode ser inútil. Eu concordo plenamente com isso, a arte não tem que nada, mas ela pode muita coisa e eu procurei a pós para explorar isso — conta ela.
Nos processos da arteterapia, expressões como a pintura, o desenho, a colagem, a dança, a música, o teatro, o artesanato e outras ainda podem ganhar significados muito intensos e transformadores. As sessões ocorrem em grupo ou no formato individual, e podem envolver de crianças até pessoas idosas. Cada arteterapeuta é livre para estruturar sua abordagem, mas uma ordem comum nesses encontros começa com uma atividade de desconexão com o mundo externo e conexão com o mundo interno. Pode ser pela respiração, pelo relaxamento, pode haver uma imaginação guiada. Depois vem a produção realizada com algum recurso da arte, geralmente o material é indicado pelo próprio arteterapeuta, mas isso não é uma regra. Depois, é feita uma atribuição de sentido àquilo que foi produzido, geralmente a partir do que o próprio autor da obra fala sobre ela. Esse é, geralmente, um dos momentos mais especiais da sessão.
— A impressão que eu tenho, sem fundamento científico, é que aparece para o participante aquilo que ele tem condições de lidar naquele momento. Por isso que a gente nunca fala: “tu não estás vendo tal coisa?”. É como se a pessoa fosse descortinando, abrindo camadas para a tomada de consciência. A gente não faz a leitura por ela — ensina a professora das áreas de Artes e Arquitetura da UCS e recém-habilitada como arteterapeuta na especialização Cláudia Zamboni de Almeida, 51.
Mas um dos bloqueios mais comuns quando ao assunto é arteterapia reside justamente no receio das pessoas em se expressar por meio da arte. Muitos seguem o raciocínio: “como vou trabalhar com arte se não tenho talentos artísticos?”.
— Nada tu precisa saber, não tem preocupação com o apuro técnico. Aliás, quanto menos se sabe, menos controle se tem, o que é positivo — garante Cláudia.
Por mais que as práticas de arteterapia muitas vezes resultem em obras que poderiam estar numa exposição, a pressão estética nessas criações é algo que realmente não deve existir.
— Precisa sair bonito? Precisa sair harmônico? Não! Às vezes a nossa vida também não é harmônica, né? — compara Daiane.
Relatos de transformação
— Eu tentava falar com as pessoas sobre isso, só que a palavra não parecia dar conta. Quando soltei o movimento, foi uma vivência que chorei por uns 20 minutos seguidos e dançando. Eu senti que estava tudo bem dançar sendo muito agressiva com o chão, podendo mostrar um lado de mim que minha turma nunca tinha visto.
O relato acima é de Daiane Ramos Borges, sobre uma de suas experiências enquanto participante de arteterapia. Ela conta que vinha passando por um processo de contenção de raiva muito forte e que dançar, naquele momento, a ajudou muito com essa questão. Mesmo sendo formada em Dança, o corpo em movimento de Daiane experimentou uma sensação diferente naquela prática. Foi ali que ela teve certeza do poder transformador da arteterapia. Agora formada como arteterapeuta, ela pretende investir no trabalho com grupos de mulheres, focando na dança enquanto ferramenta terapêutica.
— No atendimento em grupo, as coisas se diluem no coletivo e isso faz com que seja muito mais leve para todas. Tem momento em que a gente só tem que abrir os braços e as meninas começam a chorar. Porque não é tão simples assim: para quem estamos abrindo os braços? Para o mundo? Para as nossas dores? Para nossos desejos? O que significa abrir os braços para cada mulher que está perto de mim? Outro exemplo: mexer os quadris não é tão simples para todas. É um processo que não dá para antecipar, mas que dá para ir apoiando, questionando, “como tu se sente quando faz isso?” — reflete ela.
Para a estudante de Artes e criadora digital Renata Santos Finn, 22, a participação em sessões de arteterapia resultou em muitas descobertas profundas. Entre os vários trabalhos que a deixaram tocada, ela lembra de um exercício que resultou em um pequeno livro:
— A arteterapeuta mostrava imagens e tu tinha que escrever uma frase curta ou uma palavra. No final, eu fiz um livrinho, ali tem desde a textura do papel que tem um significado para mim, até a relação que fiz com aquelas imagens no momento instantâneo. É surreal mesmo — diz ela, que também guarda desenhos e outras linguagens artísticas criadas durante as sessões, que ocorreram no formato online, durante a pandemia.
Renata comenta que um dos aspectos mais interessantes do processo é justamente analisar o que foi produzido. Nem sempre é agradável, pois pode remeter a conflitos e dores, mas sempre denota transformação.
— Uma coisa é tu falar, outra coisa é visualizar. Aquilo surge de uma forma concreta, algo que tu imprimiu direto do teu subconsciente — relata.
Quem trabalha como arteterapeuta também vibra com o acesso dos participantes a emoções que antes pareciam acortinadas.
— É um processo lindo, são histórias que se espelham, dores, preocupações, questões trabalhadas mas que sempre se conectam de alguma forma. A arte escapa dos filtros do ego onde as palavras são manipuladas. Os relatos são uma delícia de ouvir, pois mesmo quem já está acostumado com algum tipo de terapia (psicoterapia ou alternativa) se emociona com novas descobertas que a imagem e a arte lhe traz — revela Iara Urbani, 44, que atende como arteterapeuta na região de Gramado e Canela.
A vida é arte
Antes de optar pela psicologia, Gisela Cardoso havia cogitado se inscrever no vestibular para Artes. No início dos anos 2000, os dois caminhos se cruzaram e a tornaram uma profissional muito mais completa e realizada. A busca dela enquanto psicóloga sempre foi no sentido de trabalhar as questões de análise do consciente de uma forma mais ampla. Foi assim que entrou em contato com a psicologia junguiana e, mais tarde, com a arteterapia.
— Quando eu juntei as duas forças, a arteterapia com a psicologia junguiana, me senti mais à vontade como psicóloga clínica porque aí eu tinha duas paixões minhas num único lugar e numa maneira de poder trabalhar com as pessoas. Então, eu ter mais contato com a arte me deu mais liberdade de ser feliz na minha profissão, eu podia ser mais autêntica, mais solta, mais livre. Há quase 30 anos, quando eu comecei, ainda tinha uma coisa muito fechada e certinha na psicologia, que eu não me encaixava —lembra ela.
Gisela foi uma das primeiras profissionais a investir na arteterapia em Caxias, onde comandou diversas atividades com dançaterapia no espaço Giramundo (atualmente locado para outra profissional). A experiência na área a conduziu até a pós em arteterapia oferecida pela UCS, na qual ficou responsável pelo ensino da psicologia analítica, uma das partes mais fundamentais do curso. Isso porque a formação em arteterapia exige grande dedicação aos estudos terapêuticos, que dão base a todo o processo. Mesmo aberta a profissionais de outras áreas, como da Enfermagem, da Educação ou das Artes, a arteterapia prevê uma responsabilidade muito grande com o embasamento teórico da psicologia.
— O arteterapeuta precisa de um estudo muito aprofundado de alguma área da psicologia e precisa também da própria terapia, buscar análise para não entrar nessas questões que na psicologia a gente se preocupa tanto, que se dá entre a relação entre o paciente e nós. As mesmas questões que preocupam um psicólogo clínico, acho que o arteterapeuta também vai ter que ter esses cuidados — alerta.
Atualmente, Gisela tem atuado mais como psicóloga clínica, mas a marca da arteterapia está presente em sua maneira de enxergar a profissão para sempre:
— Para mim, a psicologia é a gente poder fazer da nossa vida uma obra-prima, no sentido que a vida é arte. A capacidade de transformar o mundo do meu jeito, dentro da minha possibilidade. Então, a psicologia para mim sempre foi arte, neste sentido, e não conhecimento puramente mental. Tudo pode ser criado de uma forma diferente se tiver o teu toque, é acreditar nesse potencial artístico, nesse sentido da criatividade, do lúdico na gente. Isso para mim é fundamental dentro da psicologia.
Novos arranjos sobre si
Para dar início a um processo de arteterapia não é necessário ter um objetivo específico, apenas estar aberto às descobertas que virão – e elas virão. Para a dançarina e arteterapeuta recém-formada Daiane Ramos Borges, um dos caminhos que podem ser trilhados é justamente o da exploração.
— A gente está se encontrando o tempo todo, numa tela, num desenho, num movimento de dança, numa música que cantamos, são resquícios da gente mesmo que encontramos numa materialidade fora. É como um quebra-cabeças, a gente não encontra tudo de primeira, vamos encontrando pecinhas — ensina.
A canelense Iara Urbani também celebra a arteterapia como uma “ferramenta fantástica de autoconhecimento”. Ela destaca o poder da arte como destravadora do processo criativo e agente na construção da autoconfiança.
— Através da arte utilizamos diversos sentidos e linguagens, não só palavras. Quem se entrega de fato ao processo tem progressos belíssimos, compreendendo melhor a si e ao outro — garante.
Iara se apaixonou pelo universo que envolve processo criativo e arte produzindo espetáculos numa das regiões mais turísticas do Brasil. Foi membro da comissão organizadora do Natal Luz de Gramado durante cinco anos e, de alguma forma, esse contato com os processos artísticos acabou por despertá-la para outra área:
— Na minha jornada de vida profissional e pessoal eu presenciei a força da arte como ferramenta de autodescoberta e desenvolvimento pessoal. Vi crianças, jovens e adultos se transformando, criando valores, se respeitando e respeitando o outro a medida que se expressavam e descobriam novas formas de se expressar e lidar com suas emoções. Busquei e encontrei na arteterapia respostas do que eu vivia na prática. Para mim foi transformador.
Listar os benefícios trazidos pela arteterapia também é tarefa fácil para Gisela Cardoso. Conforme ela, um dos principais ganhos da pessoa que participa de um processo assim é criar novas perspectivas sobre si mesma e sobre a vida.
— A pessoa começa a parar de ver a si mesma e ao mundo daquele jeito viciado. Vai percebendo que ela não precisa ficar fixada num único ponto de vista, numa única defesa, numa única resposta para o mesmo problema, vai realmente mudando a perspectiva —defende.
Para quem já viveu a experiência como participante, fica o desejo de que cada vez mais pessoas descubram os benefícios da arteterapia.
— Todo mundo deveria tentar, é um processo de cura, é muito bom — sentencia Renata Santos Finn.