Desde que conheci o Movimento Cartonero, uma iniciativa surgida na Argentina em 2003, passei a pesquisar essa fantástica articulação entre a produção de livros artesanais e as comunidades de recicladores que vêm se espalhando pelo mundo. Trabalhamos um projeto-piloto em 2016, com a Associação de Renais Crônicos de Caxias do Sul (Rimviver), época em que editamos dois títulos em benefício à entidade, mas a falta de recursos limitava nossas ações. Realizei algumas oficinas abertas ao público, ainda tentando entender o que aquela imersão em papel reciclado e tintas significava, enquanto seguia pesquisando e idealizando uma sede para um futuro ateliê cartonero. O sonho era trabalhar nos arredores do bairro Marechal Floriano, onde é intenso o movimento de papeleiros cuja atividade, apesar de sua grande importância no destino dos excessos de consumo da cidade, muitas vezes é associada ao caos, especialmente pelo preconceito e pela falta de um espaço adequado à separação dos resíduos, que tem sido feita na rua, a Cristóforo Randon, ao lado do estádio da SER Caxias. Este ano, por meio do Edital Criação e Formação Diversidade das Culturas, Lei n. 14.017/20, realizado em uma parceria entre a Fundação Marcopolo e a Secretaria de Estado da Cultura (Sedac-RS), foi possível ir ao encontro da comunidade, especialmente pelo viés inclusivo dessa chamada, e criar o ateliê Iara Cartonera.
Com auxílio do ator e produtor cultural Fábio Schmidt, que acreditou na ideia, mais munidos de afeto do que de prática, demos início às oficinas este mês, prontos a aprender com as pessoas e com o processo. Já na quarta semana de atividades, estamos vendo surgir uma coleção de quatro títulos, ao mesmo tempo que possibilitamos, graças aos recursos do edital, uma etapa formativa remunerada para 10 mulheres vinculadas à Associação Criança e Adolescente no Esporte (CAE) Beltrão de Queiroz, que desenvolve o projeto Ampliando Horizontes com as crianças, em turno inverso ao das atividades escolares. A seleção das oficineiras contou com a ajuda de Gabriela Ghellere, coordenadora da CAE, e da assistente social Simone Dias dos Santos Bresolin, convidando, prioritariamente, mães e avós de jovens assistidos, pelo critério de assiduidade nas atividades. A infraestrutura do Instituto Adão Borges da Rosa, na Rua Bento Gonçalves, 3.333, e a acolhida da equipe, entusiasmada com a proposta, foram imprescindíveis.
O próximo desafio foi ir em busca da matéria-prima: o papelão que dá corpo às coloridas capas, feitas uma a uma, com estilete, tinta guache e estêncil, peças únicas e imperfeitas que também sugerem uma outra estética – a da resistência. Reza o movimento que esse papelão venha dos catadores, forma de integrá-los a esse processo, remunerando-os melhor pelo material. As primeiras tentativas de negociação, no entanto, não deram tão certo. Foi preciso entender as lógicas internas dessa comunidade, já que o maior compromisso dos catadores é com as pequenas empresas que adquirem deles o papelão. Aos poucos, no entanto, a proposta foi acolhida e, generosamente, eu recebia pelo Whatsapp o aviso da chegada de alguma remessa de papel mais limpa e maleável, já separada para virar livro.
Percorrer a famosa rua tantas vezes em busca de papelão também me fez expandir a noção de que ali atuam pessoas sensíveis e que se sentem acolhidas pelo mero gesto de cumprimentá-las. Em uma dessas caminhadas, depois de estar entre papeleiros e, sim, muito lixo e trânsito tumultuado, voltei para casa pela Avenida Júlio de Castilhos e nesse trecho “nobre”, sofri assédio, perseguição de alguém de carro. Os veículos não costumam ser percebidos como a parte hostil da cidade, mas posso afirmar, como transeunte frequente, que os maiores perigos das imediações não se concentram na Cristóforo Randon.
Em função da pandemia de covid-19, as oficineiras trabalham em duas equipes de cinco, respeitando as normas de distanciamento. A atividade consiste, basicamente, em cortar, furar, costurar e pintar as capas dos exemplares. O grupo formado é bastante heterogêneo, e algumas têm mais dificuldades manuais. Tentamos conduzir o processo de forma construtiva: imperfeições no corte se tornam mais nítidas na etapa seguinte, a da dobra. Percebemos, assim, que a prática aponta os caminhos, subvertendo a lógica do controle de produção, que afrontaria os princípios dessa empreitada cujo foco é primeiramente colaborativo e criativo.
A seleção dos títulos a serem publicados baseia-se no critério de domínio público (obras cujos direitos autorais já expiraram), e que tenham algum apelo comercial, uma vez que a renda será revertida à CAE. Também teremos um título local, Mapa afetivo, resultado das oficinas Narrativas da Memória, ministradas por mim em 2017 no grupo Órbita Literária. Os participantes desenvolveram textos ligados às memórias olfativas da cidade.
O projeto se encerra com a entrega de 500 exemplares prontos para a CAE. No entanto, os planos para a sustentabilidade do ateliê não se esgotam nos três meses que competem à iniciativa. Pretendo dar suporte à comercialização dos livros, levando-os para pontos de distribuição e eventos culturais da cidade, como a Feira do Livro, que este ano será realizada de 26 de novembro a 12 de dezembro. Outra forma de circulação coerente com esse sonho é a fixação dos livros nos carrinhos de catadores, para que eles possam, em seu percurso urbano, realizar a venda. Vanderson Machado, na foto abaixo com os primeiros títulos produzidos, disponibilizou-se como parceiro.
Iara, a costureira do XV
O nome do coletivo cartonero reverencia Iara Toledo, que por muitos anos foi costureira das fantasias que coloriram os carnavais da escola de samba Acadêmicos do XV de Novembro. Iara morreu em 2014 aos 49 anos, vítima de câncer, e deixou os filhos Germano Toledo Bonetto, 30, e Jana Toledo de Castilhos, 37. A neta, Martina, quatro anos, Iara não chegou a conhecer.
Emocionado com a homenagem, Germano recorda-se dos momentos de total imersão da mãe na confecção dos adornos, e da grande alegria que se renovava nos desfiles e festividades. A importância de Iara para a comunidade é nítida: toda vez que buscamos mais informações para incluir na apresentação da coleção literária nos deparamos com olhos marejados.
Germano destaca a necessidade do Carnaval para os moradores dos bairros Marechal Floriano e Euzébio Beltrão de Queiroz, que desde os anos 1960 vivem com o XV de Novembro não apenas os festejos, mas a cultura, os aprendizados musicais, a organização comunitária frente a tantas adversidades. É uma pulsão de vida em uma das regiões mais acometidas pela violência em Caxias do Sul.
— Pós-pandemia, o Carnaval em Caxias precisa ser resgatado — afirma.
Enquanto os tambores permanecem silenciosos, os planos literários colocados em prática reafirmam que a alegria contagiante e a união entre moradores ainda ecoam. Talvez tenha sido o burburinho da memória de carnavais passados que nos fez despertar da passividade para, então, poetizar o futuro com essa comunidade.
Da estética à ética
Diferentemente de uma obra editorial padronizada, o livro cartonero que chega às mãos do leitor como um fruto singular é todo ele um signo de inquietação. Nada no livro artesanal é passividade – seus enfrentamentos despertam os sentidos. Trabalhar com papelão descartado e lhe dar outra destinação é uma estética que pressupõe uma ética. O cartonero posiciona-se contrariamente ao belo enquanto norma. Sociabilidades no campo criativo induzem o sistema a se retroalimentar, em uma alternância de papéis. A proximidade derruba a aura de intangibilidade em torno dos produtos culturais: na simplicidade do papel recentemente descartado cabem novos sonhos. As oficinas cartoneras em desenvolvimento têm a pretensão de envolver seus participantes não apenas na confecção, mas na poética da criação que poderá, adiante, torná-los autores das narrativas. São processos que começam por essa aproximação despretensiosa com o “objeto livro”.
Eloísa Souza dos Santos, 38 anos, destaca a alegria em produzir livros com papelão, especialmente pela importância de despertar a consciência ambiental, de chamar a atenção para a reciclagem com esse ateliê. Outra participante das oficinas, Vanderleia Fernandes Ramos, 37, espera um resultado “incrível” desse trabalho:
— Que tudo prospere, que possam surgir mais oportunidades como essa. Trabalho em uma escolinha e lá eu já contei sobre esse projeto, pensando em, futuramente, levar essa ideia para produzirmos algo assim. Até já tenho ideias para escrevermos mais adiante. Estamos aprendendo e ao mesmo tempo é uma terapia, em meio a uma rotina tão cansativa que temos, com trabalho, casa e filhos. Sou muito grata! — diz.
Isabel Cristina Borges, 48, que conhece profundamente os anseios da sua comunidade, fazendo muitas vezes a ponte entre as famílias e a associação, entusiasma-se:
— Esse colorido dos livros, em minha opinião, traz dignidade para nossa comunidade, nos traz alegria, porque vai contar um pouco da nossa história em cores, flores e amores… Esse colorido é mágico! — afirma.