Às margens do Rio Tejo, de costas para as estreitas ruas de Lisboa, procuro na imensidão das brandas águas por onde andará Luís Vaz de Camões. Fito, de soslaio, uma senhora sentada na relva, cuja silhueta à contraluz parece-lhe colocar em uma outra dimensão de tempo e espaço. Parece brotar dali o excerto de um soneto de Camões:
"O tempo o claro dia torna escuro;
E o mais ledo prazer em choro triste;
O tempo, a tempestade em grão bonança".
À Lisboa perdura a sina de ver brotar gente como Camões, que deu à luz o ser português, com suas idiossincrasias, amores, devaneios, heroísmos e toda sorte de epopeias, fossem poéticas ou mesmo realísticas. Mesmo assim, recai a sina de ver brotar Camões e de enterrar o que ele escreveu. Há trechos de Os Lusíadas cravados no chão do Parque dos Poetas, em Oeiras. Mas raros são os que leem e muitos os que pisam sobre os versos.
Não longe dali, em Belém, chineses e outros tantos turistas fazem fila para entrar na Igreja Santa Maria de Belém, no Mosteiro dos Jerónimos. Ali jaz Camões, em um túmulo de pedra, adornado com sua escultura. E, na verdade, não há sequer um osso do poeta ali depositado, pois se perderam entre os maremotos da vida. A morte do poeta é mais quista do que a sua poética ou lírica. É quase um esmurrar as nuvens de tamanha ira desvalida. Camões já sabia que assim seria:
"Quando os olhos emprego no passado, de quando passei me acho arrependido;
Vejo que tudo foi tempo perdido, que todo emprego foi mal empregado".
Na vertigem dos dias e das noites mal dormidas, vagueando entre ruas e ruelas, entre avenidas e topos de arranha-céus, nada, absolutamente nada, nos remete ao rigor da poesia de Camões. A gente portuguesa com sua maneira de ser, seus heroísmos com cenas de requinte e bravura, foram todos cunhados à pena pelo poeta. Com o tempo, a poética perdeu-se entre os novos ruídos da pós-modernidade:
"Os meus alegres, venturosos dias. Passaram, como raio, brevemente".
Os tesouros que as naus traziam a Portugal não se comparam ao tesouro que Camões transpirava em versos. Mas, na mesma medida em que o ouro esvaía-se por entre os dedos da realeza portuguesa, a gente portuguesa sequer percebeu-se de que a voz do poeta perdeu-se n’algum canto. Por onde a voz ainda ressoa? Parece não haver resposta para isso, porque, afinal de contas, ele era um escritor lá dos idos 1500 e, nós, que somos mais modernos e vivemos em 2019, já nem entendemos o que ele dizia. Importa mesmo é se o PSD vai sobreviver à crise de identidade. Cá em Portugal, o Partido Social Democrata já não sabe mais se é de direita ou de esquerda.
Chove cá em Lisboa. Da mesma forma que a política tem das suas estripulias, que é quase como tentar caminhar (sem cair) pelas calçadas portuguesas molhadas, o clima frio e úmido é propício para uma paragem no Alfama. O bairro do fado pode nos trazer alguma pista da presença do nobre poeta entre nós. Talvez, e só talvez, porque a poética é a mãe das incertezas, a fadista Amália Rodrigues (1920-1999) tenha sido a última tentativa desesperada de trazer à luz da memória a majestosa obra de Camões.
A tríade voz de Amália, música de Alain Oulman (1928-1990) e poemas de Camões reavivaram a obra do poeta português. De pé, escorado na porta de entrada de um entre dezenas de restaurantes que prometem jantar ao som do fado, espero, ansioso, por algum verso que revele por onde anda o poeta esquecido. Entre uma e outra canção, com intervalo para os comes e bebes e conversas entre os convivas, o tédio corrói-me a alma. Antes que desistisse e partisse para dentro da noite inquieta, ouço um quase murmúrio:
"Erros meus, má Fortuna, Amor ardente".
Enfim ressoam os primeiros versos cunhados à pena por Camões. O triste lamento é como bálsamo, porque dá um novo (mesmo que momentâneo) sentido à minha procura:
"De amor não vi senão breves enganos.
Oh! Quem tanto pudesse, que fartasse este meu duro gênio de vinganças!"
Antes do fim, dou meia volta, fecho o sobretudo, ajeito o chapéu preto sobre a cabeça, enfio as mãos nos bolsos e caminho debaixo da chuva fina. O frio impávido me acompanha até ao Largo São Domingos. Debaixo de uma marquise, fito o largo, de leste a oeste, e não há ninguém. Dentro de mim, ainda resiste o som do doce lamento do fado entoado e musicado sobre um poema de Camões.
Nesse mesmo largo, em 1553, o poeta que também era bom de briga, acabou envolvendo-se numa confusão e feriu um empregado da corte real. Era dia da procissão do Corpo de Deus, que no Brasil, por ser um país de mais elevada cultura do que cá em Portugal, recebe o nome Corpus Christi – afinal de contas, qual brasileiro não fala fluentemente o latim?
Depois de uma sequência de pow, pá e pum, Camões foi levado ao cárcere. Teve de abandonar a pena e cumprir pena na cadeia. Segundo o professor e escritor Justino de Mendes de Almeida, ex-reitor da Universidade Autónoma de Lisboa, e um dos intelectuais especialistas na obra de Camões, a prisão foi benéfica em se tratando da poética do autor:
“Camões é preso e vai para o tronco, onde fica nove meses! E a minha opinião? Lhe fizeram muito bem! Lhe fizeram muito bem, porque esse tempo na prisão assentou ideias acerca de Os Lusíadas”, revelou o professor, já falecido, no documentário Quem és tu Luís Vaz de Camões, produzido pela emissora portuguesa RTP, em 2002.
O poeta fora liberto pelo rei D. João III, que justificou o indulto por ser Camões "mancebo pobre" e como preço de fiança deveria servir à coroa portuguesa na Índia. Quem sabe viria desta cena burlesca a resposta em fina e espinhosa ironia, travestida de crítica à Babilônia:
"Cá, onde o mal se afina e o bem se dana, e pode mais que a honra a tirania;
Cá, onde a errada e cega monarquia cuida que um nome vão a Deus engana;"
Se Camões amava mais a Deus ou à monarquia não se sabe, ao certo se sabe que amava a vida (e as mulheres), e mesmo que as percebesse através de um olhar romântico, utópico e poético, soube como poucos dar rima aos dias e noites por meio de sua pena embebecida em tintas virulentas. O poeta migrou para diferentes cantos do planeta, como Índia, China e África, mas assim como as naus que partiam, Camões sempre acabava por voltar à terra lusitana.
E, afinal de contas, por onde anda Camões, se em cada esquina dessa Lisboa das luzes nos parece fazer despistar o caminho do poeta? Há aqui e ali qualquer coisa que parece fazer sentido ou nos remeter à virulência dos seus escritos. Mas quando perto estamos disso que parece nos dizer qualquer coisa que valha, escapa-nos às mãos como dissipa-se um nevoeiro na manhã outonal. Se não há a menor certeza de onde sequer esse homem tenha nascido, muito menos em que ano, qual certeza teríamos acerca da resistência da sua poética nos dias de hoje?
Alenquer, Chaves e Lisboa disputam com argumentos históricos tendenciosos às suas cidades para justificar onde teria nascido Camões. Nem mesmo há registro da data de nascimento. Há por aí uns que dizem que teria nascido em 1524, pelo menos 20 anos antes de William Shakespeare, outro gigante da literatura.
Da sua morte já dissemos que não se sabe por onde andam suas ossadas. Mas é atribuída como data de consenso 10 de junho de 1580. Qual é, afinal, o peso de uma biografia na avaliação da obra de um autor? Faz mais sentido poético Camões ter nascido em Lisboa do que em Chaves? É mais nobre o poeta que estudou filosofia em Coimbra? Da sua biografia é bom que se diga que nasceu antes de Shakespeare, a quem o crítico Harold Bloom atribuiu a “invenção do humano”. E quem ousa dizer que Shakespeare não leu Camões, e não depreendeu um pouco desse néctar humano através do olhar investigativo do autor português?
Penso em tudo isso enquanto me aproximo, já cedo da manhã, da Praça Luís de Camões. De longe é possível ver o poeta, em olhar altivo, retratado como um militar, adornado com uma coroa de louros, segurado com uma das mãos uma espada e, com a outra, um livro. O monumento é obra do escultor Victor Bastos, planejado como parte das comemorações do terceiro centenário da morte do poeta, inaugurado em 1867, na presença do rei D. Luís.
"Mil vezes determino não vos ver"
Teria nascido este verso acima de um olhar altivo como o da estátua de Victor Bastos? Ou seria o trecho do soneto a seguir?
"O esquivo desamor com que me tratas converte em piedade, se não queres que cresça o meu querer e o teu desgosto".
Não combina. Nem sequer faz sentido essa imponente estátua ao que foi cunhado pelo próprio amigo D. Gonçalo Coutinho, na lápide do poeta: “Aqui jaz Luís de Camões, príncipe dos poetas de seu tempo. Viveu pobre e miseravelmente e assim morreu”. O miserável altivo, o soldado da coroa portuguesa, o coroado vértice das letras de inspiração grega, de tudo o mais que possa se discernir na leitura da estátua, é pura alegoria.
Assim como é vã a tentativa de enxergar a poética e a lírica camoniana na Lisboa contemporânea, é vã a tentativa de justificar a obra pela vida do poeta. A resposta é direta e dispensa a explicação dos professores universitários: "os meus pensamentos, que são meios para enganar a própria natureza".
Camões não será encontrado em lugar algum, como jamais fora mesmo enquanto esteve entre nós, senão através do que escreveu. Camões entendeu a sugestão “conhece a ti mesmo” através da relação do papel e da pena como uma extensão de si mesmo e revelou a intensidade de quem é através do solitário e vertiginoso ato da escrita.
"É um contentamento descontente" chegar ao fim e perceber que não faz sentido a jornada para seguir os passos de Luís sem viver a obra de Camões. Senti-me nessa viagem como o poeta que escreveu: "É um andar solitário entre a gente". Ou ainda, sentir no peito a dor do poeta que cunhou antes da morte: "É ter com quem nos mata, lealdade".
Camões morreu pobre, cego (de um olho) e nu (vergonhoso). Mas deixou cravada no coração do povo português uma elegia à pátria, aos heróis e às gentes comuns, também aos amores que o desprezaram. A literatura de Camões segue leal a nós, mesmo em tempos de cólera em que gigantes como o autor português são assassinados diariamente, como em um ato de vandalismo cultural a exterminar a sua memória.
Longa vida aos que trazem sentido a ela como "amor é um fogo que arde sem se ver". Porque, no final, o que conta mesmo é que, apesar de "querer estar preso por vontade", "é servir a quem vence o vencedor". Ou, como versou Machado de Assis, "a paz nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação (…) Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas".
Quem foi
Luís Vaz de Camões foi um dos maiores poetas portugueses. Criador da linguagem clássica portuguesa, teve reconhecimento e prestígio cada vez mais elevados a partir do século 16. Camões escreveu poesias líricas e épicas, peças teatrais e sonetos. A maioria dos escritos do português são considerados obras de arte. Seus livros foram traduzidos para diversos idiomas (espanhol, inglês, francês, italiano, alemão entre outros).
Fragmentos
Os poemas citados na matéria são trechos de Amor é fogo que arde sem se ver..., Canção X, Sonetos CXXII, CXXIV, CLXXIX, O tempo acaba o ano, o mês e a hora; Erros meus, má fortuna, amor ardente.
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