Daqui a pouco mais de um mês completam-se 80 anos de um dos episódios mais trágicos da história de Caxias do Sul: a explosão na antiga fábrica de munições da Indústria Metalúrgica Gazola Travi, ocorrida em 22 de julho de 1943. Antecipando a lembrança da data, por vezes esquecida ou “apagada” da memória da cidade, o Museu da Indústria Metalúrgica - Memorial Gazola promove uma ampla programação, que coincide também com os 10 anos do espaço, oficializado em 2013 (leia no texto mais abaixo).
O destaque, neste sábado à noite, fica com a apresentação do monólogo “Odila”, baseado na trajetória de Odila Gubert (1922-2003). Trata-se da jovem de 21 anos que sobreviveu à explosão, mas teve a perna direita amputada em função dos ferimentos.
Embora já tenha ocupado espaços como o Sindiserv e o Sindicato dos Metalúrgicos, a peça encenada pela atriz Tina Andrighetti ganha agora um contorno inédito. Será a primeira vez em que será encenada no exato local onde ocorreu o acidente: o pavilhão junto à BR-116.
Confira uma entrevista com a atriz:
Como e quando foi concebida a peça Odila? Você tinha alguma relação de proximidade com a família e a história da explosão de 1943?
Tina Andrighetti: Em 2016, dei início ao Projeto Identidades, uma ideia para impulsionar montagens sobre histórias reais. Iniciei com três histórias sobre três diferentes mulheres, uma delas, Odila. Sobre o fato ocorrido na empresa Gazola, quase nada sabia e tampouco conhecia a família. Mas, acredito que por morar próximo, cresci sabendo que ali havia acontecido uma tragédia. Quando a história me foi apresentada, pela historiadora Pâmela Cervelin Grassi, senti que era preciso contá-la, assumir o compromisso de torná-la conhecida. E está sendo assim.
Que aspectos sociais o texto procura privilegiar, a partir do ocorrido e durante a vida dela?
Direitos Humanos, a solidão de Odila diante da falta de amparo legal, a impotência da família. Tudo o que se refere aos direitos de cidadãos e cidadãs, em qualquer área da atividade humana, leva muito tempo para ser considerado. São necessárias muitas tragédias pessoais e coletivas para que, no mundo dos negócios, o cálculo aponte que elas dão prejuízo, seja financeiro ou moral. Os direitos trabalhistas começavam a surgir, o que não impedia a compaixão e empatia diante do sofrimento da vítima e de toda a família. Mas a ordem parece que foi de “limpar” as marcas e, até hoje é assim: “se ajudarmos estaremos assumindo a responsabilidade no ocorrido”.
Como foi seu contato inicial com a família da Odila?
A Tefa Polidoro (atriz) foi a orientadora artística dessa e das outras montagens. Assistimos juntas o documentário “Aos Olhos de Santa Bárbara”, do André Costantin, e ela viu semelhança entre a Odila e o músico Rafael Gubert. Fez contato com ele, que nos apresentou seu pai, se não me engano sobrinho, e ele nos deu contato de uma sobrinha de Odila. A partir disso, marcamos um café da tarde e então conheci parte da família: as irmãs de Odila, sra. Jurema e sra. Edite, esta falecida ano passado. De lá pra cá, aconteceram algumas visitas, entrevistas, conversa solta e muitas descobertas de ligações entre nossas famílias. As irmãs de Odila e outras pessoas da família assistiram a peça numa apresentação em Ana Rech. A sra. Jurema voltou a assistir no Sindiserv e agora quer ir no Memorial. Sempre convido a família, e ela parece sentir um prazer especial em participar. Na verdade, ela relembra os fatos com muita dor e precisa falar sobre. Fazer isso publicamente acredito que para ela significa honrar a memória de sua irmã.
Qual sua expectativa para encenar a peça, agora, no exato local onde ocorreu a tragédia de 80 anos atrás?
Nas primeiras visitas ao Memorial, no pavilhão, eu fui muito curiosa e objetiva. Ultimamente tenho dado espaço para sensações, e é muito interessante caminhar por aquele lugar e imaginar a empresa em funcionamento, trabalhadores e trabalhadoras transitando por ele, aquelas meninas tão jovens num ambiente predominantemente asculino. É possível trazer para o agora o cheiro do metal, o comportamento da época, sentir toda essa presença. Espero que o público sinta essa emoção, seja bem curioso e ajude a manter viva essa história da Odila, das mulheres que perderam a vida, da empresa, da cidade. É uma história nossa também.
Qual a mensagem que Odila, você e a peça querem deixar ao público?
Odila era uma mulher simples, de família muito humilde. Nos depoimentos de familiares, foi recorrente dizer que não tinham conhecimento do que podiam fazer, não sabiam reclamar pelos direitos da Odila, não se sentiam bem em pedir ajuda. Apenas sabiam que tinham muitas dificuldades. Acredito que ainda hoje existam famílias desamparadas pelo desconhecimento ou pelo medo de cobrar seus direitos, e isso é terrível. Em alguns aspectos, 80 anos passados não mudaram muita coisa. Por isso, embora haja muito a fazer, por exemplo, pela igualdade salarial entre homens e mulheres, hoje já temos muitas conquistas no que diz respeito aos direitos trabalhistas. Mas ainda há falta. E sejamos sempre vigilantes, por nós e por outros, sempre na tentativa de minimizar sofrimentos e fazer com que, na prevenção ou no reparo, vigore o respeito pelo ser humano e pela vida. Só um ser humano luta por outro ser humano. E precisamos saber que isso nos diz respeito, sim.
AGENDE-SE
- O quê: espetáculo teatral “Odila”, com Tina Andrighetti.
- Quando: neste sábado (17), às 19h30min.
- Onde: pavilhão junto ao Museu da Indústria Metalúrgica (MIM) - Memorial Gazola (BR-116, 1.018 - bairro Petrópolis - Caxias do Sul)
- Quanto: ingressos a R$ 20, disponíveis na Livraria Do Arco da Velha (Rua Dr. Montaury, 1.570 - Caxias do Sul).
- Apoio: Móveis Sular e Piazza Canova.
- Aniversário: a partir de julho, a programação de 10 anos do Memorial Gazola contará ainda com entrega de maquinário de época restaurado, exposição na Câmara de Vereadores, evento da Liga de Defesa Nacional e divulgação de trabalhos do Clube do Fotógrafo de Caxias do Sul - que destacaremos em detalhes neste espaço em breve.
Móveis Sular
Toda a programação, manutenção e difusão do acervo da antiga Metalúrgica Gazola contam com apoio da empresa Móveis Sular, que adquiriu a área da empresa em 2013. Na época, a direção da Sular deparou com o vasto acervo preservado em vários dos antigos pavilhões e escritórios da metalúrgica.
Começava aí um trabalho minucioso de resgate, limpeza, organização e catalogação de centenas de documentos, fotografias, catálogos, utensílios de cutelaria, artefatos bélicos e material referente à participação da Gazola Travi & Cia na Segunda Guerra Mundial, quando a empresa foi declarada de interesse militar pelo Exército Brasileiro. Hoje, o Museu da Indústria Metalúrgica (MIM) - Memorial Gazola é hoje um espaço de referência em preservação, pesquisa e educação para o patrimônio histórico, sendo um dos poucos do Brasil com um acervo tão rico.
Mantido pela Sular desde 2013, o MIM é dirigido pela sócia Maria de Fátima Valentini Canevese e situa-se próximo à praça onde são homenageadas, em um obelisco, as operárias da Gazola vítimas da explosão de 1943. É em torno dessa área que um amplo projeto de revitalização já está em andamento.
O objetivo é que o local abranja, além de todas as operações da Sular, um novo espaço de cultura e lazer para Caxias: a chamada Piazza Canova, com atividades nas áreas de gastronomia, eventos e entretenimento.